COLUNAS
Sexta-feira,
6/9/2002
Martin Bauman
Helena Vasconcelos
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"Martin Bauman ou Uma Presa Segura" ("Martin Bauman or A Sure Thing", um título que, no original, dificilmente traduzível, remete o leitor para uma referência subtil a um termo carregado de ironia abusiva) é a tentativa do escritor americano David Leavitt de captar, numa sátira "swifteana", o "Zeitgeist", o "espírito do tempo" da sua geração de escritores deslumbrados pela fama, rapidamente elevados a um estatuto semelhante ao das estrelas de cinema e dos músicos pop. Em luta renhida pelo título de campeão, ombro a ombro com pesos-pesados como Bret Easton Ellis e Jay McInerney, Leavitt, que entretanto foi viver para Itália, seguindo os passos de Gore Vidal, ficou sempre um pouco aquém do "glamour" brilhantemente explorado pelos seus pares. A sua cruzada em torno da imagem de uma homossexualidade assumida faz dele um moralista e as suas personagens acabam por ser o reflexo dessa atitude, transformando-se cada vez mais, com o tempo, em representantes de uma classe média que deseja viver "bem" e, ao mesmo tempo, agir de acordo com as regras. Enquanto os autores que descreviam as luzes ofuscantes de cidades povoadas de seres "abaixo de zero" avançavam por caminhos cada vez mais perigosos e vertiginosos e acompanhavam, a um ritmo louco, o frenesim dos finais do século XX, Leavitt preocupava-se (e preocupa-se) em abordar até à exaustão o tema das implicações, no espaço familiar e social, da homossexualidade, retirando-a de guetos, dos urinóis públicos e dos espaços fechados dos preconceitos que a eclosão da sida contribuiu para exacerbar.
Esta atitude perfeitamente louvável faz no entanto com que os seus personagens carreguem um peso moral que os torna suficientemente desagradáveis para agirem como donas de casa dos subúrbios com as suas paixões inspiradas pela televisão, amores obsessivos, cansaço de relações, traições, adultérios, desesperos, depressões e consequentes divórcios. A citação que se segue, retirada de "Martin Bauman" , "... a homossexualidade é uma disciplina cujo estudo avançado necessita, por assim dizer, da sua própria transcendência e é por isso que todos os alunos afincados dispensam totalmente a terminologia e concentram as suas atenções unicamente nos aspectos específicos das vidas humanas", é reveladora de um discurso eivado de referências a Henry James mas pouco característico deste romance em que a linguagem tem mais afinidades com as colunas de "gossip" do que com o género romanesco tradicional.
Martin Bauman é a história de um jovem que, tal como Leavitt, vai parar a Nova Iorque (Bauman de Seattle e Leavitt de Palo Alto, Califórnia) à procura do seu lugar na flutuante e variegada comunidade académica. Na Universidade que frequenta, o destaque vai para a "visibilidade gay", que é ostentada como bandeira com certo sabor a "marketing". Grupos mais ou menos sofisticados, de homens e de mulheres, estabelecem os seus rituais e os seus territórios, trocando entre si relatos de experiências, formas de linguagem, tiques e subculturas que constituem uma gramática em que o corpo é levado a um paroxismo de excitação, de ridículo, de tragédia e da mais hilariante ironia. Desde a utilização dos "glory holes" (cuja descrição se encontra na pág. 45), passando pela indumentária em tons de cinza e negro, até ao consumo imoderado de cigarros, impensável na América de hoje, tudo contribui para fazer deles "adeptos voluptuosos de Spaghetti-O, epicuros do Quarto 222, connaisseurs de 'Aeroporto 1975'", sinais de uma época durante a qual Martin experimenta a sua iniciação, sexual e literária.
Bauman "desperta para o mundo" nos anos Reagan, quando, depois da derrota surpreendente de Carter, a América efectua uma curva de 180 graus e substitui rapidamente as aspirações dos liberais que, tolhidos de espanto, vêem as aspirações dos anos 60 a desmoronarem-se pelos jovens que decidem votar no actor de Hollywood porque "... intuem que, sob a sua liderança, terão mais probabilidades de enriquecer..." , o que, na realidade, acabou por acontecer.
É neste ambiente que Martin compreende rapidamente que o dinheiro é o único valor a alcançar e a competitividade é a nova palavra de ordem. Com esse objectivo em mente, o jovem aspirante a escritor segue atento e participa avidamente no curso de Stanley Flint, um carismático professor que sabe utilizar com igual vigor a crueldade de uma crítica arrasadora e a extravagância de um elogio exagerado. Flint, que é decalcado da figura de Gordon Lish, o verdadeiro professor de Yale quando Leavitt por lá passou, atravessa o livro como a figura paternal em relação à qual, a princípio, Martin sente uma admiração sem limites, que o leva a procurar desesperadamente, e até servilmente, o seu apoio e apreço.
Mas o deslumbramento da juventude que se reflecte por um instante breve nas expectativas em relação à própria cidade de Nova Iorque - onde Martin sonhara encontrar pessoas inteligentes, cultas e afáveis, com conversas interessantes sobre literatura e filosofia - é rapidamente aniquilado para dar lugar a uma realidade bem diferente. Enquanto Flint passa de objecto de admiração para a qualidade de "castrador" e "devorador", mais um adversário na corrida ao ouro do reconhecimento literário, Martin publica o seu primeiro conto (explicitamente "gay") na revista ("New Yorker"), enquanto trabalha numa editora sob as ordens desse mesmo Flint. De um dia para o outro, transforma-se numa celebridade, mais um adorno extravagante da cidade que, subitamente, se apresenta como um lugar fechado, uma espécie de recreio confortável onde ele experimenta o seu poder.
A fama "sobe-lhe um pouco à cabeça" e tanto ele como os amigos fazem gala em portar-se mal, agindo como crianças traquinas que "bebem água pelo copo da desconhecida sentada à mesma mesa" - que por acaso até era "prima da Jacqueline Onassis" - e aparecem de "T-shirt" e "jeans" nos jantares formais, para causar sensação. É claro que tudo isto funciona como uma crítica e Leavitt mostra estar na sua melhor forma quando escreve frases assim: "Não há no mundo cidade mais provinciana do que Nova Iorque, nem outra arte mais provinciana do que a literatura, nem uma comunidade mais provinciana do que os escritores que se dão bem com os editores e são, em certa medida, homossexuais" (pág. 282).
Desencantado, "blasé" e cada vez mais possuído pelo ambiente que o rodeia, Bauman movimenta-se entre festas e reuniões caseiras com o seu companheiro Eli e a amiga Liza, uma escritora promissora lésbica que acaba por casar com um homem (o que suscita a indignação e o repúdio de Eli), manipulando as influências e fazendo o jogo de poder. Liza é uma especialista do "diz-se que...", passa horas ao telefone, sabe tudo sobre "toda a gente".
Os escritores são avaliados pelo o que está escrito nas badanas dos livros, julgados a partir da fotografia e pelo o que se ouve nos bastidores, enquanto somas elevadíssimas são atribuídas, à partida, a obras classificadas como "importantes", anunciadas com pompa e circunstância, e das quais só existem alguns parágrafos dispersos do primeiro capítulo.
Não se lêem livros mas sim recensões, críticas e até, para ganhar tempo e poupar esforços, não se avança para além das críticas às críticas - há mesmo revistas especializadas nessa área de grande contenção logística - que servem perfeitamente para alimentar as conversas de circunstância. As dedicatórias são escrutinadas em busca de pistas e até quando a obra-prima de Flint é finalmente publicada, revelando muito da sua personalidade, Bauman folheia rapidamente as páginas produzidas pelo seu antigo professor e ídolo apenas para descobrir qual o personagem que poderá ter sido inspirado por ele próprio.
Entretanto, nas editoras, os velhos senhores do lápis encarnado que faziam tremer os escritores novatos com as suas correcções e desprezavam os lucros em prol de um ideal de literatura, expurgada de vícios e resplandecente de afinação formal e esplendor de conteúdo, são rapidamente trocados por ambiciosos homens e mulheres de negócios que tratam de se livrar dos trastes velhos e dos bota-de-elástico, substituindo-os pelas suas "presas seguras" que rendem milhões. Esses escritores que descobrem uma fórmula que "vende" são alimentados por um mito de grandeza que eventualmente se restringe a uma pancadinha nas costas e a um esquecimento tenaz, no momento em que deixam de produzir os "ovos de oiro". (O título do livro de contos que "lança" Martin Bauman é "Travessa de Ovos".)
Neste universo em que o acessório representa o essencial - as pessoas são avaliadas pelos apartamentos em que vivem e pelas roupas que usam -, Martin desenvolve uma relação desigual com Eli, na qual a sempre presente Liza completa o indispensável triângulo de "amizades leves" características da época, é elevado à categoria de celebridade e acaba por experimentar o sabor amargo da decadência, da traição e do afastamento.
David Leavitt, através do seu alter-ego, Martin Bauman, entrega-se aqui a uma verdadeira orgia confessional, referindo, ao longo do livro, uma lista de "pecados" que equivale a uma expiação até ao final dos tempos. Desde a altura em que, quando jovem estudante, tinha propensão para copiar nos exames ("não fui para a universidade para aprender mas sim para atingir um objectivo"), Bauman segue um longo trilho de maus costumes, que passam pela traição em relação às pessoas que mais o amam e mais confiam nele, pela calúnia - tenta que Stanley Flint seja despedido da editora, denunciando-o como mulherengo por ele ter desprezado o seu primeiro romance -, pelo aproveitamento da morte da própria mãe como instrumento puramente literário e por um comportamento caprichoso, errático e compulsivamente narcisista.
Em 1993, David Leavitt, então com 32 anos, viu-se a braços com uma contenda que provocou enorme agitação nos meios literários, por causa da publicação do romance "While England Sleeps", uma história passada durante a Guerra Civil de Espanha. A razão de tanta controvérsia foi a reacção do irascível Sir Stephen Spender, que se sentiu demasiado exposto ao ler uma versão romanceada da sua vida - o próprio Leavitt diz que se baseou em cerca de dez linhas de "World Within World", a autobiografia de Spender -, em que a homossexualidade é o fio condutor da história.
O libelo de Spender não foi para diante, mas Leavitt exibe, ainda hoje, com um certo impudor, as marcas de uma luta que o expôs como plagiador, em posição de desvantagem em relação a figuras veneráveis como Spender e Isherwood. Num artigo escrito em Abril de 1994, quando a polémica já havia arrefecido um pouco, Leavitt explicou como lhe tinha surgido a ideia de "While England Sleeps" e como é possível usar material que, em seu entender, é pertença de todos e não dos escritores, estabelecendo, assim, a sua opinião sobre a exploração de dados biográficos, não só referentes à sua pessoa mas também à de outros escritores. Com ironia, comentou que pessoas da idade de Spender podiam ter problemas em relação a tais práticas, mas que ele, Leavitt, considerado como o escritor do "Brat Pack" que pela primeira vez ousou publicar uma história explicitamente "gay" no "New Yorker", não se importaria nada de que um jovem escritor utilizasse a sua vida (dele, Leavitt) como ponto de partida para uma história.
Entretanto, como parece que ninguém se apresentou no sentido de aproveitar a sugestão, ele próprio tomou a decisão de o fazer e "Martin Bauman ou Uma Presa Segura" é, na realidade, uma autobiografia . Já em "Arkansas", um volume de contos, David Leavitt utiliza-se como personagem em várias histórias, chegando ao ponto de criar um tal David Leavitt que se refugia em Los Angeles enquanto decorre um processo contra ele e que, desocupado, em crise de criatividade, conhece Eric, que lhe faz a proposta de lhe ceder sexo em troca da escrita de trabalhos escolares de grande importância.
Este tipo de "candura" é o mapa onde se desenha o universo de Leavitt, que vê em Oscar Wilde uma "alma gémea", alguém em quem admira, para além da ironia, o estoicismo na adversidade e a capacidade de transformar as tragédias em farsas. Nos seus escritos, Leavitt faz referências óbvias a outros autores cuja homossexualidade foi mais ou menos claramente expressa, de Forster a Lawrence, passando por Willa Cather e Henry James, sem esquecer Melville e Ambrose Bierce. Desde "Dança em Família" que os temas são os mesmos: o amor e consequente irritação e impaciência, recriminações antigas e ressentimentos reprimidos, a atitude predadora de amantes, os malefícios de amizades fugidias, o sexo comprado e casual, o cansaço e monotonia do ambiente doméstico, que, no entanto, parece ser a sua única aspiração e futuro promissor, uma espécie de porto de abrigo contra as intempéries vivenciais.
"Martin Bauman" é uma história leve e divertida, contada num tom coloquial e ligeiramente enfatuado e talvez venha a ser considerada, daqui a umas décadas, como a imagem real e verdadeira do espírito de fim de século que marcou a euforia dos últimos anos.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Publicado originalmente na Revista Storm, editada por Helena Vasconcelos em Portugal. (Foi mantida intacta também a grafia original.)
Helena Vasconcelos
Lisboa,
6/9/2002
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