COLUNAS
Segunda-feira,
16/9/2002
Casimiro de Brito
Maria João Cantinho
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A combinação e a diversidade dos registos, transcendendo em muito a linearidade de um simples diário. A inteligência da análise, conjugando-se com uma escrita intensamente poética, que se debruça com tanta atenção sobre o mais trivial facto da vida, como sobre temas metafísicos, existenciais e a literatura.
"Que espécie de consolação é essa de sabermos que em breve seremos 'pó de estrelas'? Como lutar contra o medo, a morte, o terror, a desaparição, a transformação, enfim, que tu dizes que não acaba? Resposta não tenho senão como poeta, neste ser poeta onde se derrama a vida toda, minha e dos outros. E só posso dizer o que venho dizendo há anos (...) que a morte não existe(...) no essencial, quero dizer isto, que a morte não existe mas que morrer dói." (p. 199)
Casimiro de Brito possui uma vasta obra que se reparte entre a poesia, a ficção e o ensaio e crítica. Nesta obra, procura levar a cabo uma revisão ou um balanço, efectuado, ao longo do ano 2000, em que se confronta o final de um século e se prepara uma nova era, avançando pelos acontecimentos triviais e banais do dia-a-dia, buscando a intersecção entre o quotidiano, a subjectividade da experiência e a objectividade dos factos que ocorrem. Intercala o seu diário com uma preciosa colecção de poemas da sua escolha.
O autor revela um olhar descrente e pessimista sobre a realidade humana, que nega a existência de um humanismo. Como o próprio poeta o afirma, "Sobre o que penso de um diário, deste, por exemplo, dou a palavra a Ballester, colhendo-a num dos seus livros em que mais vezes leio: «Puros fragmentos de um edifício inconcluso, arcos, colunas, abóbadas, paredes, que também podem ser ruínas. O diário de trabalho de um poeta manipula inevitavelmente a matéria poética, da qual resta, fímbrias, resíduos...» Matéria composta essencialmente por destroços do mundo e da letra que a ele, obsessivo, o homem vem colando". (p. 27).
Toda a obra nasce, portanto, desse desejo de reunião dos fragmentos, avulsos e, aparentemente desconexos, a que o autor procura devolver o sentido, inscrevendo-os numa nova ordem, reinstaurando uma unidade, por ele produzida ou (re)criada.
E é de uma barca que se fala neste livro. Uma metáfora ou imagem, cintilante e que concentra em si uma polissemia. De uma barca que navega entre a luz das palavras, da poesia e a poeira dos dias, nessa matéria volátil que resulta da existência, descobrindo-se na sua fragilidade. De uma barca caminhando em direcção à morte, tal como a barca egípcia, ritual, aquela que nos fascina nos túmulos dos faraós egípcios. E é da eminência da morte, do caos, das pequenas e grandes tragédias que percorrem os dias, que nos fala o autor, numa sabedoria humilde e fascinada pela leitura e pela infinita interpretação dos clássicos, pelo fértil diálogo com o pensamento e poesia orientais.
A Barca do Coração reflecte em si a vivência de alguém que pesa a justeza de cada gesto, descobrindo e celebrando o mundo na sua fragmentação, sabendo que o fragmento "é também um ir direito ao coração dos problemas, sabendo humildemente que não se chega lá." (p.144). Aquele que o celebra, conhece também a improbabilidade do gesto, do olhar da mulher que se ama, da filha que ensina a alegria, num convívio com a tristeza e o vazio dos dias que passam.
O que ressuma desta obra, em vários momentos tocante, é essa ars moriendi, que alimenta a escrita do poeta. Se entendermos a vida como um lento despojamento, então compreendemos que ela aparece, ainda, como a matéria que cria o mundo, matéria incandescente e com a qual é sempre difícil lidar: a existência.
A Barca do Coração surge, derradeira, pois o que escreve - efectuando esse gesto compulsivo de respirar os dias - é o que fica menos pobre, aliviando a poeira, transformando-a numa luz mansa que se dilui no rio, evocando a metáfora de Heráclito, a do rio acolhendo, na sua unidade, a multiplicidade das águas, a multiplicidade do tempo.
Resta-me a pergunta, após a leitura do diário: "O que pode salvar-se pela escrita, o que pode ela resgatar?". Encontro a resposta, tão breve, na p.271: "O meu tema é o efémero, o inesgotável 'agora'(...) O efémero e o inesgotável levados à sua última (e primitiva, também) essência.
Nota do Editor
Texto publicado originalmente na Revista Storm, editada por Helena Vasconcelos em Portugal. (Foi mantida intacta também a grafia original.)
Maria João Cantinho
Lisboa,
16/9/2002
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