O grande psicoterapeuta Viktor Frankl, de quem já falei em meu artigo anterior, costumava dizer o seguinte a seus alunos. "Não procurem o sucesso. Quanto mais o procurarem e o transformarem num alvo, mais vocês vão errar. Porque o sucesso, como a felicidade, não pode ser perseguido; ele deve acontecer, e só tem lugar como efeito colateral de uma dedicação pessoal a uma causa maior que a pessoa, ou como subproduto da rendição pessoal a outro ser".
Pode-se duvidar de que certas pessoas não busquem unicamente o sucesso, e de que algumas delas não o alcancem. Programas como a "Casa dos Artistas" são um bom exemplo disso. Mesmo assim, muitos daqueles atores realmente acreditam que não estão buscando o sucesso, mas alguma coisa maior. Só que eles não conseguem explicar que coisa é essa. Então fica mesmo parecendo apenas auto-engano. Mesmo se for auto-engano, isso ainda comprova a tese de Frankl.
Entretanto, não há dúvida de que uma pessoa que atinge um certo sucesso em uma profissão mais digna - como, digamos, articulista - geralmente só o consegue porque nunca se preocupou muito com isso, mas sim com os assuntos de que sempre tratou em seus artigos, esforçando-se por abordá-los de uma maneira competente. É claro que existem os articulistas vaidosos e boçais. Acredito até que as redações de nossos jornais estão cada vez mais povoadas deles. Mas existe um tipo de articulista que não almeja o sucesso de forma alguma, senão como esse "efeito colateral" de que falava Frankl.
Esse articulista de que falo é o que tem-se encontrado com cada vez mais frequência na Internet, em blogs, revistas eletrônicas e sites pessoais.
Seu objetivo principal não é atingir o sucesso, mas sim contribuir para o aumento da sanidade mental do debate público, o qual já se despediu da realidade há muito tempo. Suas opiniões não coincidem com as da maioria bem-pensante dos politicamente-corretos, multiculturalistas e coletivistas que habitam a grande mídia. E por isso ele dificilmente consegue emprego em redações de jornais e revistas impressas. E se consegue, sente-se sempre à margem e encara o próprio emprego apenas como um ganha-pão.
Obviamente, estou me incluindo aqui. Não porque esteja sentindo um desejo de auto-promoção, mas simplesmente porque alguém tem que falar desse novo grupo que está surgindo. Então, vou falar de mim, mas na verdade estou falando de muitas outras pessoas que conheço e que acredito que subscreveríam o que estou falando.
Meu principal problema não é com o sucesso, mas com o "dia de amanhã". A passagem que conheço e que melhor ilustra isso está em Mateus 6, 25-34 (por favor, não vá nenhum leitor me rotular de conservador ou evangélico). Aconselho a leitura da passagem inteira. Mas vou transcrever apenas uma parte: "Eis por que eu vos digo: Não vos preocupeis por vossa vida, com o que comereis, nem por vosso corpo, com o que vestireis. A vida não vale mais do que o alimento, e o corpo, mais do que a roupa? (...) Não vos preocupeis, portanto, dizendo: 'Que comeremos? que beberemos? com que nos vestiremos?' - tudo isso os pagãos procuram sem descanso - pois bem sabe o vosso pai celeste que precisais de todas essas coisas. Procurai primeiro o Reino e a justiça de Deus, e tudo isso vos será dado por acréscimo. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã: o dia de manhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal".
Gosto desse trecho porque ele é análogo ao de Viktor Frankl, porém mais profundo. Retrata um problema mais profundo. Mesmo depois que você se liberta da vontade de sucesso, ou mesmo que você não tenha nunca tido essa vontade, ainda assim você encontra milhares de barreiras a cada segundo que passa, pelo simples fato de que não quer se prostituir intelectualmente. E o que machuca mais é o fato de que essas barreiras são humilhantes, por dizerem respeito a coisas com as quais um ser humano não deveria se preocupar: o que comer e o que vestir? Como conseguir sustento?
Ultimamente tenho me refugiado na tela do computador, simplesmente porque cada nova conclusão que tiro de minhas leituras me levam a uma nova barreira com respeito a esse assunto do sustento. Lá, no fim de todas as barreiras, está o meu salário, inalcançável. A cada dia que passa tenho mais claramente diante de mim que para ter um lugar ao sol nessa sociedade é preciso ter um diploma de mestrado e ser dotado do mesmo conjunto de concepções gerais sobre o mundo que aquele dos professores universitários. Se você não tiver essas duas coisas, é melhor desistir de estudar e escrever. Arranje uma profissão que dependa apenas de um saber técnico.
Por outro lado, tenho dentro de mim esse sentimento de que, se eu me render, minha vida perderá o sentido de uma vez por todas. E finalmente, quando eu tiver 80 anos de idade, vou olhar para trás e ver que eu fui vencido pela vida. Vou ver que fui vencido pelas pessoas que me perguntavam "o que você é", pela família que desejava que o filho escolhesse uma profissão socialmente prestigiada e bem remunerada, pelo tempo e pelas demandas por atenção daqueles que me cercavam. Tudo isso está simbolizado no "dia de amanhã". Todos me perguntam o tempo inteiro se eu não penso no dia de amanhã. Bem, posso dizer que penso em ter dinheiro para comer, me divertir um pouco e comprar livros. Mas, no que diz respeito à minha realização pessoal, eu penso no dia de hoje e de ontem. Penso que o dia de amanhã será, um dia, o "ontem". E quando eu olhar para o "ontem", vou querer achar que valeu a pena. E só terá valido a pena se eu tiver realizado um pouco desse meu desejo de conhecer. A rendição a um outro ser também ajuda, mas não basta por si só, ao menos não em todas as ocasiões. Nesse ponto, discordo de Frankl.
Então continuo me debatendo. E tenho encontrado muitas outras pessoas que também estão se debatendo. E são todas pessoas incríveis, inteligentes, cultas e criativas. Elas estão dispostas a dialogar, interessam-se por minhas idéias, identificam-se umas com as outras. Enfim, estão cada vez mais unidas. E eu tenho um palpite de que elas estão querendo fazer da Internet uma solução para esse problema do ter o que comer e o que vestir. Mas eu ainda não consigo visualizar uma luz no fim do túnel. Por enquanto, a Internet continua esse local maravilhoso, onde posso falar tudo que penso e ser ouvido pelo menos por algumas pessoas; onde posso acessar informações que a mídia impressa não revela; onde posso ler livros sobre o neoliberalismo que os petistas acham que sabem o que é; onde posso comprar livros que não são traduzidos para o português simplesmente porque não refletem as opiniões de nossa classe esquerdista bem-pensante.
E, ultimamente, tem sido também o lugar onde encontro pessoas que querem realizar alguma coisa juntas, algum projeto intelectual, mas ainda estão meio confusas e perdidas em um mar de dificuldades práticas com o "dia de amanhã". A realidade é dura: a Internet não representa um meio de sustento para os articulistas e jornalistas. A propaganda não parece ser capaz de trazer esse sustento, como acontece na mídia impressa. Por outro lado, os leitores não estão dispostos a pagar pelo conteúdo, e com uma boa dose de razão. Afinal, como pagar para ler cada um dos artigos que você encontra na rede? Ficaríamos todos pobres.
Então, o indivíduo de que estou falando é, de modo resumido, aquele que quer pensar sozinho, sem ter que aderir a uma instituição muito grande, que se sobreponha à sua liberdade de expressão. É, por exemplo, a pessoa que não quer entrar numa universidade porque sabe que não vai poder contradizer seus colegas de profissão, mesmo que as teorias deles estejam erradas e que ele descubra isso. Dentro de uma faculdade de filosofia, por exemplo, cada um é especialista no seu filósofo. Então ninguém pode questionar aquele professor que estuda Wittgenstein, já que ele o estudou por toda a sua vida e não vai querer abrir mão de toda a sua trajetória em prol... da verdade!
Mas esse indivíduo está menos isolado agora. Ele já é capaz de se organizar em pequenos grupos. Ele já consegue criar e manter revistas eletrônicas e blogs coletivos, por exemplo. Ele quer empreender, mas existem muitos obstáculos à liberdade de expressão, então ele tem que registrar domínios "www" no exterior, para não ser processado aqui no Brasil por falar verdades que ninguém quer ouvir. Além disso, se ele quiser lançar uma revista impressa, não haverá leitores, já que os poucos que existem só aceitam ler revistas acadêmicas. Então ele precisa se refugiar na Internet, onde o reduzido número de leitores não impede a "circulação" da revista.
Enquanto isso, os professores estão lá, do alto de suas cátedras, criticando a sociedade de consumo e o capitalismo, mas com seus salários garantidos, ainda que baixos. Estão "in". Todos gostam do que eles falam.
Muito tempo ainda vai se passar até que o universo brasileiro de idéias e concepções de mundo se amplie o suficiente para que esse indivíduo solitário possa viver mais calmamente. Afinal, ele próprio é que vai ter de divulgar essas idéias, vindas dos mais diversos lugares. Ele vai ter de traduzir livros que hoje ninguém sabe que existem; vai ter de abrir escolas que ensinem o que não se ensina mais por aí; vai ter de aguentar todas as vozes violentas dos que acham que a mentira vence a guerra contra a injustiça e a desigualdade social. E vai ter de trabalhar sozinho ou em pequenos grupos contra um gigante chamado Estado, que comanda um outro gigante chamado universidade, que comanda um outro gigante chamado opinião pública. E para isso, ao menos por um bom tempo, não vai contar nem mesmo com o auxílio de um quarto gigante, chamado mercado. Pois este, em sua versão livre, está sob fogo cerrado dos outros três; e, em sua versão regulada, está a serviço deles.
Eu queria deixar aqui uma série de links para esses indivíduos. Mas estou com medo de que alguns deles não queiram aparecer, ou simplesmente não concordem com muito do que eu falei. Afinal de contas, por estar falando do futuro (embora fundado no presente), é inevitável que eu esteja errado em alguns pontos. Portanto, peço encarecidamente a todos aqueles que leram esse artigo e que se identificaram - em termos gerais - com o que eu disse aqui: coloquem aí embaixo - na parte dos comentários - seus próprios endereços na Internet (blogs, sites, etc), ou então me enviem por e-mail. A liberdade - e eu - agradecemos pela atenção.
Ôpa, Evandro
A WEB é sem dúvida um espaço essencialmente libertário. Victor Hugo dizia que "tudo que aumenta a liberdade aumenta a responsabilidade". E é bom que tenhamos a oportunidade de testar nossos padrões de responsabilidade. Acho que os blogs, além de permitir que grupos afins se encontrem à margem do debate institucionalizado, cuja rota é traçada sobretudo pelas universidades, permite ainda a exposição de informações um pouco mais organizada que a WEB em si. A WEB é desordenada, não há uma classificação de assuntos. Não há como eu "pegar" facilmente o segmento da WEB que fale sobre anarquismo, por exemplo. Se eu procurar por anarquismo através de uma ferramenta de busca qualquer, vou ter que passar ainda por uma segunda filtragem, pois muita coisa não me servirá. Sei que os blogs não têm atributos de classificação bem definidos, pois normalmente se propõem a mostrar o universo inteiro de cada autor, e qualquer autor anarquista sempre é maior que o anarquismo em si. Mas os blogs têm uma pele porosa que facilita a aderência a outras peles cuja estrutura porosa é similar. Não acho que a liberdade e o mínimo de organização sejam conceitos antagônicos, desde que essa organização não seja o fim em si. As comunidades que se formaram através de blogs não vivem se esforçando para manter a organização, pois a tal organização é inerente nessa estrutura e nada cobra por estar ali. A aderência se dá no nível das idéias e não de lemas que devam se adotados sob pena de expulsão da comunidade. Sei que antes dos blogs já existiam os grupos de discusão. Mas sua natureza era meio esotérica, acho.
Eu sou um sujeito que ganho a vida fazendo com que sistemas de computadores respirem. Sou um técnico de software, sou um técnico de profissão, mas sempre tive isso como algo periférico, secundário, não obstante tirar daí o sustento de minha família. Não era pequena a ânsia que me dominava por não encontrar no meu convívio pessoal as pessoas com quem eu quisesse comungar novos caminhos a seguir. O sucesso que tenho obtido em encontrar pessoas pródigas nas tentativas de expandir as possbilidades do pensamento não foi planejado. Foi a conseqüência natural de habitar um território em que a liberdade não é relativa. E se a URL de meu blog servir de assinatura para tudo isso e se minha exposição é o preço que tenho a pagar pela minha liberdade, aí vai: http://pradomacedo.blogspot.com
Abraço
Queridíssimo Rogério! Entre, sente-se, a casa é sua. Há muito que não recebo uma mensagem como a sua. As coisas andam meio frias por aqui. Os leitores não estão querendo se manifestar. Muito obrigado pela sua aparição. Leio sempre o seu blog e gosto muitíssimo dele. Já temos agora mais um ponto a favor da liberdade de expressão. A propósito, já participei de alguns grupos de discussão e sempre achei que os integrantes ficam mais preocupados em não congestionar suas caixas de correio do que em dialogar. Mas o mais engraçado são os grupos de discussão acadêmicos. Alguns discutem o futuro da informação na Internet, as possibilidades e perspectivas infinitas desse meio. E, no entanto, os grupos são cheios de regras e delimitações de conteúdo!
Provando que você não está sozinho nesta guerra, Evandro: www.oindividuo.com e leiam os artigos de Alvaro Velloso de Carvalho, Alceu Garcia e Marcelo Tostes.
Querido Evandro!
Eu me identifiquei muito com o seu texto. Nos cursos de graduação que passei, sempre aconteceu isto. Mesmo entre professores excelentes, existe uma vaidade e uma certa resistência em abordar temas novos, seja para discussão ou para desenvolvimento de trabalhos científicos. Talvez seja o medo de se expor.
Abraços,
Rodrigo
http://br.groups.yahoo.com/group/encontrosdorod/
Me identifiquei completamente, Evandro. E esse foi um dos melhores textos que já apareceram no Digestivo. Um abraço - Alexandre Soares (cujos textos também aparecem, quando a preguiça deixa, no Digestivo.)
maravilhoso! realmente devemos acreditar no nosso potêncial como profissional e não nos cercarmos de vaidade e de sucesso repentino. Estou no 3ºano de jornalismo vejo como os meus colegas de classe são vaidosos e por isso estão se deslumbrando com a carreira, enquanto que eu deixo o barco correr cada um tem a sua estrela e seu cometa. O dia de amanhã só a Deus pertence.