Em recente artigo publicado no Mises.org, Alberto Mingardi faz uma relação de 10 livros sobre o Estado. Logo no início do texto, o autor responde brevemente a uma pergunta mais ou menos assim: por que o Estado? A resposta é muito elucidativa: "A principal divisão política de nossa época é entre aqueles que confiam no Estado e aqueles que não confiam. Podemos debater infinitamente sobre economia, regulamentação, comércio e guerra, mas não teremos tocado o cerne da questão até que formulemos as perguntas: o que é o Estado? e quanta fé, se alguma, devemos colocar nele?".
A princípio, não parece haver nenhuma novidade nisso. Exceto pelo fato de que, entre os livros da lista, ao contrário do que esperaria o leitor brasileiro médio, não figuram os livros de Rousseau ou Hobbes. Filosofia ou teoria política, no Brasil, se resume aos teóricos do Estado Moderno. Todo ex-estudante universitário concordará comigo nesse ponto, pois lembrará de seus dias de sala de aula. E justamente por isso não pode haver praticamente nenhum espaço nesse país para os livros citados por Mingardi, pois eles questionam profundamente aquilo que em nossas escolas é pressuposto inquestionável: o papel do Estado como regente de nossas vidas, protetor bonzinho dos cidadãos contra o malvado mercado e contra tudo mais, segundo a mentalidade latino-americana típica. O que quero dizer se resume em uma pergunta: como um estudante universitário poderá aprender o que é realmente teoria política se for introduzido a ela através do estudo único e exclusivo dos teóricos do Estado Moderno?
Ao invés de dar a resposta em forma de uma única frase, passo ao assunto seguinte, que não consiste propriamente em uma resposta, mas na sugestão de um método para se chegar a ela.
Todo professor universitário costuma falar que é preciso que o aluno se acostume a ler jornais diariamente, se quiser se manter informado sobre o mundo. Eu, particularmente, comecei meu itinerário lendo a Folha de S. Paulo e a Caros Amigos. Na Folha, lia sempre aqueles artigos na Ilutrada que promovem os livros dos próprios colunistas ou colaboradores do jornal, como Moacyr Scliar, Bernardo Ajzemberg, Carlos Heitor Cony etc etc. Logo percebi que havia algo errado. Além disso, sentia sempre um fastio enorme diante das reportagens de política internacional e nacional e raramente me interessava pela terceira página, de debates. O "Mais!", devo confessar envergonhadamente que me agradou por muito tempo, até o dia em que a encadernação mudou e a linha editorial se esquerdizou ainda mais, passando a configurar quase doutrinação pura. Então, finalmente saí de meu estado (com "e" minúsculo mesmo) de hipnose intelectual e migrei para o Estado de S. Paulo, que então tinha um caderno cultural bastante interessante aos Domingos. Comecei a sentir um fastio um pouco menor diante das notícias internacionais, que me pareciam ser um pouco mais que meras listagens exaustivas de fatos, uma espécie de enredo caótico de escola de samba, que nunca chega ao fim. Logo percebi que as matérias que me pareciam um pouco mais satisfatórias eram compradas de jornais estrangeiros.
Bem, quanto à Caros Amigos, minha hipnose durou até a época em que começaram a sair aqueles cadernos especiais. O primeiro foi sobre Che Guevara! E o "dia D" foi quando li um artigo de Gilberto Vasconcelos que falava sobre um sanitarista brasileiro que, lá pelos idos de 1920 (não me lembro bem), havia inventado uma privada sensacional, mais baixa que as de hoje e inclinada de modo que a posição de "defecação" era mais próxima daquela que o autor do artigo defendia como a "natural", que é de cócoras. Pois bem, não parou por aí. Vasconcelos afirmava que o vaso tinha sofrido a concorrência desleal e corrupta imposta pelo primeiro mundo e foi esquecido. Hoje usamos os vasos originalmente inventados pelos gringos, que são - ainda segundo o autor do artigo - "puritanos". Sabe por que? Porque neles nossas fezes rumam diretamente para a água assim que "saem de nós", coisa que não acontecia com o outro vaso, que tinha um sistema que separava a água do local de "queda" propriamente dito. Enfim, o autor expunha o que pensava ser uma manifestação, digamos, "suja" do imperialismo norte-americano no campo das necessidades íntimas! Para que eu saísse de minha hipnose intelectual, só mesmo com esse tratamento de choque!
Sinto uma imensa vergonha de ficar expondo aqui meu passado sujo e fedorento. Afinal, o leitor não tem a obrigação de "ouvir" essas coisas desagradáveis! Mas se o faço, é porque quero relatar meu itinerário tortuoso rumo ao que o Alceu Garcia denominou de "underground liberal-conservador da Internet".
Vou pular uma parte e dizer apenas que dois "elementos" muito contribuíram para que eu tomasse consciência definitiva de que não se pode esperar quase nada do jornalismo impresso brasileiro hoje. Os artigos de Olavo de Carvalho (é, aquele mesmo de quem niguém se atreve a falar, por medo de ser acusado de "discípulo") e o site O Indivíduo. Do primeiro não vou falar diretamente, porque ele já anda falando o suficiente por aí. Passo então ao segundo.
O site O Indivíduo fala, primordialmente, sobre o Estado e sobre seu "antípoda", o indivíduo. E fala através de outros sites, já que o editor, Alvaro Velloso, faz uma seleção semanal de artigos, ensaios e resenhas publicados em jornais estrangeiros. Tudo em inglês, é claro (não que isso me deixe feliz, muito pelo contrário, é uma prova de que quem quiser saber o que anda acontecendo no mundo precisa se acostumar a ler artigos em inglês). Em português há os artigos de Alceu Garcia e Martim Vasques, bem como de outros colaboradores um pouco menos assíduos, mas igualmente competentes. Até algum tempo atrás, o próprio editor publicava seus ensaios, aliás altamente recomendáveis.
O Indivíduo me valeu mais que 30 professores universitários. Foi o ponto de partida para todos os meus estudos posteriores. Se hoje sei um pouco mais sobre a Igreja Católica em suas relações com o Estado e conheço uma bibliografia ampla e séria de teoria política, "economia, regulamentação, comércio e guerra", devo quase tudo a este site.
Mas por que estou declarando tudo isso?
Para dar continuidade ao assunto do último artigo, só encontrei essa forma, direta e clara. Existe hoje no Brasil uma poderosa máquina jornalística de formação de opinião que monopoliza o debate público, aprisionando-o dentro do âmbito do Estado. Tudo que se discute hoje nesse país se restringe a uma questão de "políticas públicas". Então, posso dizer que meu argumento, que começou no dia 20 de agosto, só atinge o "cerne da questão" hoje. O movimento desarticulado e tímido que está nascendo na Internet e que é levado por indivíduos que não ganham um tostão em troca do que fazem tem sua origem na questão do Estado, como não poderia deixar de ser. As pessoas de que falei em meu artigo da semana passada sentiram um dia, de algum modo, que havia algo de errado no debate público brasileiro. E resolveram falar sozinhos a quem quisesse ouvir. E aos poucos as falas isoladas formaram um outro debate que um dia se integrará àquele, mesmo que esse dia demore a chegar e mesmo que os arautos do Estado - que se manifestam das formas mais diversas, desde ativistas do Greenpeace até militantes do PT - esperneiem como besouros de cabeça para baixo.
E esse debate já está bastante adiantado. Não se restringe a blogs e já conta com jornalistas e intelectuais experientes, como Alvaro Velloso, cuja recente entrevista foi parcialmente publicada no site Comunique-se. A entrevista certamente não poderia ser publicada na mídia impressa, pois esclarece uma série de questões que a comprometem imensamente e que dão continuidade a uma exposição feita por Olavo de Carvalho no Mídia sem Máscara. O fato é que o debate público brasileiro está paralítico, pois lhe faltam vários "pedaços". Todos esses pedaços existem no panorama europeu e norte-americano. Portanto, quem quiser ter noção do que se passa hoje no mundo deve se voltar para o exterior, pois aqui só encontrará a parte esquerda da realidade.
Apresentar um panorama completo do dito "underground" a que estou me referindo seria tarefa trabalhosa. A única maneira de conhecê-lo bem é mesmo clicando aqui e ali, lendo pequenos artigos, pedindo para ser incluído nos livros de endereços de algumas pessoas. Quero, entretanto, citar um trecho - embora um pouco longo - de uma entrevista do excelente articulista Martim Vasques, que explica bem o que estou tentando dizer:
"Contudo, o que falta é uma articulação geral do pensamento liberal-conservador, chamado aqui com a alcunha pejorativa de "direita". Um dia desses, um amigo me perguntou qual seria a diferença entre direita e esquerda e a única resposta possível, depois de ter analisado todas as vertentes do pensamento esquerdista, de Marx até Hegel, passando por Antonio Gramsci, foi que nunca houve uma direita organizada. A "direita" é um farrapo de homens isolados que, amparados por uma única coisa a não ser a ordem moral de suas almas, resolveram denunciar a desordem que corrompia a sociedade em que viviam. E, infelizmente, essa situação não parece mudar tão cedo.
Por quê? A resposta é muito simples: somos muito poucos perto dos milhares de imbecis que assolam as escolas, universidades e redações do país. A nossa "direita" é tão desarticulada que ela se reúne apenas em tentativas heróicas - para não dizer, quixotescas - na hora da confrontação. Mas isto não é uma desvantagem: na realidade, é nossa maior virtude, pois se fossemos um grupo organizado, com uma ideologia definida, perverteríamos todo o nosso trabalho, e aí sim seríamos iguaizinhos aos nazistas e aos fascistas a quem muitos tentam nos igualar".
Faço minhas as palavras de Martim e agradeço a ele e a alguns leitores que me mandaram bonitos e-mails de apoio e companheirismo. Abaixo está uma listagem de endereços do "underground". Não é uma lista completa, mas tudo que falta nela pode ser encontrado nas listas desses próprios sites.
Prezado Evandro:
Os seus textos no Digestivo Cultural mostram que a consciência individual ainda tem alguma chance nesta nação que caminha para o abismo. E, realmente, "O Indivíduo" vale por 30 universidades - e o trabalho de Alvaro Velloso realiza é de uma importância fundamental para os restos de uma intelectualidade ainda preocupada com a verdade e não com os interesses ideológicos.
Caríssimo Evandro,
Isso vai parecer depoimento de evangélico na TV Record, mas não há outra forma:
Óbvio que a WEB é apenas mais um meio. Mas, convenhamos, é um puta meio! Antes da WEB eu era refém de um mundo restrito. Via as sombras no fundo da caverna e achava que o mundo era só aquilo. Nos meus primeiros dias de WEB dei de cara o Álvaro Velloso e com o Pedro Sette Câmara. O método dos caras era violento, mas aquilo sinceramente não me assustava. Eu via que os caras se indignavam contra o pensamento engessado da esquerda. Eu começava a perceber que havia pessoas falando coisas diferentes. Onde moro, na periferia da periferia, as pessoas com quem eu podia falar e ser compreendido eram, em sua totalidade, "de esquerda" em algum grau. E depois de ver na WEB que aquele rapaz de inteligência ímpar não podia estar batendo em vão num sujeitinho fraco que nem eu, resolvi ir mais adiante e procurar na grande rede o pedaço que o Álvaro dizia estar faltando. Vi que havia muitos Álvaros pela WEB. Pessoas bem informadas e que mereciam ser lidas. O cara não tava blefando.
Resolvi fazer testes. Passei a colocar em xeque algumas de minhas convicções. Algumas resistiram, outras não. Coloquei mais algumas. Mesma coisa se deu. E assim se deu minha auto-cirurgia de catarata intelectual. Hoje ainda vejo de revés vários pontos colocados pelo Álvaro no seus artigos(se assim não fosse eu e ele seríamos a mesma pessoa, né?), mas não me sinto capacitado para discutir sobre esses temas com ele de igual prá igual. Ver-se incapaz de falar sobre algo é difícil de aceitar e ter que calar-se ante essa incapacidade é tão difícil quanto, mas depois a gente vê que faz um bem danado, e o desejo de mudar essa situação, longe de ser uma disputa movida pela vaidade, é um estímulo do desejo de se aproximar da verdade.
E o Estado? Pois é... seu texto já diz bastante. Aprender sobre o Estado a partir de teóricos do Estado é dose! Isso explica muita coisa, né? Talvez explique até porque o Brasil, sendo um grande exemplo de como o Estado pode se tornar um estorvo, comporta tanto estatólatra. Um paradoxo alimentado pela cegueira certamente.
E obrigado, Evandro, pela indicação. Como diria o Patativa do Assaré, "você é cabra bão"!
Abração
Rogério,
agora que você sublinhou, pode ser mesmo
que seu comentário evoque, ainda que
muito por alto, os testemunhos born-again de inspiração evangélica. But so
what... Está tudo de bom tamanho, na
medida. A gente percebe e se contagia com seu entusiasmo, com o otimismo do texto, diria até com a "adrenalina" ali presente. É verdade que uma corrida de fórmula I, por exemplo, também transmite adrenalina. Só que é o seu "depoimento", me parece, o mais sintonizado com a vida. Seja como for, concordo com o que se afigura ponto focal da mensagem, em outras palavras, reconhecer o serviço excepcional para a causa do bem que pode ser prestado pela grande teia. Também gostaria de saudar o Evandro Ferreira, de quem sou leitor, pela clareza de seu "O underground e o Estado" e agradecer o autor pelas indicações de "para ir além". Abraços.