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Quarta-feira,
6/11/2002
O Replicante: um problema para ciborgues
Adrian Leverkuhn
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[Continuação de "O Pesadelo De Moravec".]
Há um problema que emerge do ciborgue de Moravec. Ele consiste no seguinte: suponha, agora, que, ao ser retirado do seu corpo, você (o programa) é instalado não em um, mas em dois suportes diferentes. Quando os dois despertarem, qual dos dois é realmente você? Para qual foi a sua consciência? Esse dilema (aparentemente insolúvel) é resultado da transformação essencial que caracteriza o ciborgue de Moravec, da mente (consciência, identidade) de um homem em informação pura. Antes de atacar a pergunta diretamente, portanto, vamos investigar no que consiste, de fato, esta transformação.
1. O que, afinal, é informação? Em "A Mathematical Theory of Communications", Claude Shannon definiu informação como sendo uma função de probabilidades sem materialidade e sem ligação (necessária) com significado. O trabalho de Shannon voltava-se, originalmente, apenas à transmissão de informação por meios elétricos (o que concerniria, portanto, apenas a engenheiros); no entanto, o contexto em que a teoria foi apresentada (as Macy Conferences, em que desde físicos até psicanalistas se reuniam para discutir as tecnologias então em desenvolvimento) e a semelhança entre algumas das equações e as que descrevem a Entropia na Termodinâmica levaram o trabalho de Shannon a ser generalizado, ao menos por analogia, para diversos tipos de comunicação. Norbert Wiener (outro monstro sagrado da cibernética, também com grandes contribuições à Teoria das Comunicações e da Informação) diz, em "Cybernetics: or, Control and Communication in the Animal and the Machine", que "informação é informação, não matéria ou energia. Nenhum materialismo que se recuse a admitir isto tem chances de sobreviver em nossos dias." ***
O resultado é que a informação é vista como algo não apenas distinto, mas independente do mundo físico - ela não precisa, nem mesmo, estar falando dele, ou de qualquer coisa (há situações interessantes em que, paradoxalmente, a quantidade de informação no ruído é maior do que em mensagens com significado). Informação passa a ser um jogo de padrão e ruído que passa virtualmente inalterado por qualquer meio e qualquer suporte, e que continua o mesmo em qualquer contexto. O interessante nisto é que a informação, separada da materialidade, tem a capacidade única de se replicar indefinidamente (na verdade, a própria noção de "padrão" já engloba a idéia de repetição, e daí para a replicação é um passo): informação, ao ser passada adiante, não se perde, mas se duplica. Eu lhe informo de alguma coisa: você ganha essa informação, e eu continuo tendo essa informação. De certa forma, se todos "libertam" seu conhecimento, todos saem ganhando, pois todos saem com mais conhecimento do que antes. O estudo de como e em que situações a informação (numa perspectiva não-Shannoniana) é replicada nos leva à poderosa analogia da "memética": informação vista como um conjunto de seres vivos, disputando entre si qual será passado adiante pelos humanos que lhes servem de suporte. (Uma falha em aceitar esta característica da informação também já levou muitos a idéias equivocadas, como quando Richard Barbrook fala das redes peer-to-peer como um "potlach da informação".)
2. Já a consciência e a identidade pessoal não são, geralmente, encaradas como sendo replicáveis. O indivíduo possui, naturalmente, sua dimensão de informação (talvez até a mais importante), mas sua unidade sempre foi um efeito do seu isolamento corporal - a impossibilidade não só de replicar, mas também de conhecer o que acontece dentro da mente se não for você quem está dentro da mente. Além disso, o indivíduo também pressupõe uma materialidade - não só "eu sou o meu corpo", mas também a inscrição no tempo e no espaço, e como ser com ações intencionais. Não são afirmações sobre o que é, afinal, o indivíduo, mas o cenário a partir do qual este conceito emerge. O ciborgue de Moravec ou teria que abandonar sua individualidade, ou buscar uma nova forma de articulá-la condizente com sua atual condição.
Mas isto não responde a pergunta, não é mesmo?
3. Descartes foi um dos primeiros a separar a consciência do corpo, quando a retrata como um "homúnculo" que assiste a atividade da mente e toma decisões. Em perspectiva, é fácil ver como este modelo é falho: ele não responde a nenhuma pergunta, mas apenas as disfarça mergulhando, no jargão cibernético, "um nível abaixo na simulação" (como esta consciência vê? como que ela toma as decisões, como ela tem consciência de si mesma?). A separação entre o sujeito e o seu corpo, porém, encontra aí sua primeira formulação teórica clara (e será fundamental, ironicamente, para o nascimento do "sujeito liberal" que declaramos ameaçado, no tópico anterior). Seria apenas no final do século XIX, com Nietzsche, e depois no século XX, com Freud, que o corpo voltaria a ter espaço na discussão da identidade e a importância da consciência, no todo da mente, a ser questionada e relativizada.
Conjuntamente com o desenvolvimento das tecnologias que nos induzem a levantar estas questões (robótica, vida e inteligência artificiais, mecanismos de interação com a assim chamada "realidade virtual", sistemas de telecomunicações etc.), modelos teóricos para o funcionamento da mente humana começam a ser formulados que diminuem, consideravelmente, a importância da consciência para o comportamento humano. Daniel C. Dennet, um dos expoentes da ciência da cognição, descreve a consciência como "a ilusão que o usuário do cérebro tem de si mesmo" (the brain user's illusion of itself). O contra-argumento imediato, de que seria preciso que uma consciência já estivesse lá para ver a ilusão e ser enganada por ela, é simplesmente descartado: para Dennet, a idéia de uma consciência/Self central que observa o funcionamento do cérebro e toma decisões é apenas um mecanismo de organização, uma ilusão de um ponto central que unifica todos os processos de percepção, decisão e intencionalidade, na qual o cérebro, por mera fatalidade biológica ou pragmatismo, decide acreditar. Paul Churchland, outro proeminente estudioso da cognição, chega a dizer que a consciência como geralmente se entende hoje pertence a "folk psychology", e que será simplesmente descartada no futuro, enquanto Stephen Toulmin argumenta que a internalização da vida mental é responsável por "muito do que deu errado" desde Descartes. Pierre Lévy, conhecido por seus livros sobre internet e cibercultura, coloca a consciência como um mecanismo da memória de curto-prazo, e traça um modelo para a mente humana como um amontoado de fluxos e "interfaces" por onde elas passam (o que, afinal de contas, não é nada realmente novo, mas uma releitura simplista das máquinas desejantes de Deleuze). Diversos pensadores, a maioria intimamente ligada à cibernética por um caminho ou outro, propõem uma solução à nó górdio para o dilema do replicante.
4. A consciência, e por extensão o Self, nesta perspectiva, é tão replicável quanto o resto da mente! (Observe que se coloca uma comparação: replicar o resto da mente pode ser, da mesma forma, tão impraticável quanto replicar a consciência.) O mecanismo que opera a ilusão de um self central, e mais o self central como informação, são transmitidos para todos os suportes, e passam a rodar, sobre eles, da mesma forma. Todos eles despertam para descobrir que são você, ou, inversamente, você desperta para se descobrir dentro da máquina em todas elas. Perguntar "para onde" foi o Self é como perguntar para onde foi a glândula pineal, agora simulada em todas as máquinas, mas fisicamente presente em nenhuma; ou para onde foi a lembrança de algum evento, também transmitida para todas, mas presente (como wetware) em nenhuma. Esta aparente solução, na verdade, suscita problemas maiores - a distinção entre estar morto e estar vivo, por exemplo, perde muito do seu significado original (antes ela estava condicionada ao corpo, depois à consciência - e agora?), e a questão de como viver em tal cenário, como seria a ética dos ciborgues de Moravec (Dennet coloca que, se um dia robôs alcançassem verdadeira inteligência artificial, teríamos que lhes conceder direitos civis equivalentes aos humanos) permanecem ainda sem resposta.
Conclusão: O Pós-Humano
Foucault, em "As Palavras e As Coisas", argumenta que o homem é uma invenção recente, da qual o fim talvez já esteja próximo. O homem, entendido como um constructo social e não um organismo biológico, poderia ser apagado "como um rosto desenhado na areia, próximo das águas".
É muito provável que o ciborgue de Moravec jamais seja alcançado - e mesmo que o for, um dia, será em um futuro remoto, não dentro dos prazos sufocantemente próximos que os entusiastas costumam arriscar (30 anos? 50 anos?). Ainda assim ele permanece lá, como um fantasma, figura simbólica que incomoda por nos expor, hiperbolicamente, a coisas muito reais, vivenciadas diariamente. A própria internet, onde este texto veicula, é pródiga em exemplos: as estranhas formas de coletividade e individualismo que se observam nas comunidades virtuais; a identidade pessoal e o que acontece com ela na sala de chat; a cibercultura, a Ideologia da Califórnia e o hacktivismo, com slogans como "A Informação Quer Ser Livre" (que levaram até Hakim Bey, referência constante ao se discutir desobediência civil via novas mídias, a retrucar embaraçosamente que "nós não somos capazes ainda de digerir cobre", lembrando a importância óbvia do mundo material) são apenas os exemplos imediatos. O ciborgue de Moravec nos fala, de forma geral, daquilo que se convencionou chamar de "Pós-Humano": o homem alterado a tal ponto pelas tecnologias (por ele mesmo criadas) que não possa mais ser chamado de humano. Alguns colocam o pós-humano como algo já presente; outros o usam para invocar mais uma transformação que um estado, colocando-o como um futuro possível; outros, ainda, usam o pós-humano (entendido como um estágio utópico alcançado via tecnologia) como algo a ser almejado, transformando o "trans-humanismo" (a "jornada" do homem ao pós-homem) em uma ideologia mais do que uma teoria (o exemplo mais conhecido de tal abordagem é o Extropy Institute). O "Monstro de Moravec" (como, em seu tempo, o "Monstro de Frankenstein") nos obriga a meditar sobre os rumos da tecnologia e o planejamento de seu uso com a urgência devida; mais ainda, ele se oferece como um "paradigma" (esta palavra tão maltratada) do que deve ser a investigação dos efeitos da tecnologia: partindo do corpo, do que acontece com o indivíduo ligado à máquina, diante da tela, e então prosseguindo para os efeitos secundários, de fenômenos e tecnologias específicos. A inversão desta seqüência e a recusa de levar em conta as questões que o pós-humano apresenta são responsáveis por muitas das tolices que se diz sobre cibercultura, em manifestos e ideologias tão obcecados com os mínimos detalhes que nem percebem o chão que se move, inexoravelmente, sob os seus pés.
Nota
*** uma teoria com foco distinto foi proposta por Donald Mackay, mas nos reteremos ao modelo de Shannon e Wiener, já que este se tornou o modelo dominante.
Nota do Editor
Adrian Leverkuhn é também editor do blog Apeirophobia.
Adrian Leverkuhn
Brasília,
6/11/2002
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