COLUNAS
Quinta-feira,
7/11/2002
Paisagens Originais & Detalhes De Um Pôr do Sol
Ricardo de Mattos
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Primeiro Paisagens Originais, de Olivier Rolin. O livro deste romancista e editor francês tem dois méritos: trazer ao leitor informações úteis dos autores sobre os quais fala, sem cair no anedótico, e estimular novas leituras. Sua proposta é buscar na infância de cinco escritores nascidos no mesmo ano - Hemingway, Nabokov, Borges, Michaux e Kawabata; o ano, 1.899 - elementos cuja presença seja notada em suas obras, mesmo naquelas da velhice. A base é declaradamente psicológica: conforme a intensidade, algumas ocorrências na infância podem mais tarde pontuar, de forma velada ou não, a vida do indivíduo. Em se acostumando com o estilo do autor, parece escrever dando risadinhas nervosas, temos um livro agradável e de alguma utilidade.
Quem não conhece alguns dos autores - nunca ouvi falar de Kawabata ou de Michaux - pode colher aqui seus primeiros dados. Lê com maior atenção a obra que lhe interessar mais depois da apresentação. Olivier Rolin visita os locais de nascimento, informa-se com contemporâneos acerca de animais, lugares, pessoas e relações marcantes para os futuros escritores e depois procura ecos de suas descobertas nas obras.
Ernest Miller Hemingway nasceu em 21 de julho de 1.899 na pacata e conservadora cidade de Oak Park, a mesma onde Edgar Rice Burroughs criou as primeiras histórias de Tarzan, e alcançou fama o arquitecto Frank Lloyd Wrigt. Veio ao mundo filho de um pai fraco e de uma mãe histérica, cuja mania era vesti-lo de menina para formar par com a irmã mais velha. O pai transmitiu-lhe o amor à caça e pesca, bem como o trágico exemplo do suicídio. Todavia é no Michigan, n'um chalé às margens do lago Wallon, onde Rolin buscou os elementos senão relevantes ao menos insistentes na obra do escritor. A caça, a pesca da truta, o bosque onde acampava para fugir do ambiente doméstico e no qual, sobre o chão coberto de agulhas de pinheiro, conheceu o amor com uma índia. A ligação feita por Rolin entre essas agulhas de pinheiro - folhas secas - e os cabelos cortados de algumas personagens precisa ser melhor examinada. Hemingway suicidou-se em dois de julho de 1.961 em Kechtum, Estado de Idaho.
Pulo Nabokov e continuo com Jorge Luis Borges (Buenos Aires, 24/08/1.899 - Genebra, 14/06/1.986). Quem tem alguma noção da biografia de Borges não encontra aqui grande novidade. Retoma-se seu fascínio pelos tigres - os asiáticos, ele fazia questão de diferenciar, não a onça sul-americana -, seu envolvimento com os livros da vasta biblioteca paterna, o surgimento dos labirintos, espelhos, admiração pelos antepassados e a contrastante atracção do menino intelectualizado pelos personagens rudes, muitas vezes assassinos, de Palermo. Aqui o livro de Rolin revela-se um pouco superficial, mas falei que serve para uma primeira apresentação. Além disso, pode ser lido em um só dia, o que não mata ninguém.
O poeta Henri Michaux (Namur, 24/05/1.899 - Paris, 19/10/1.984) não me era familiar antes, nem passou a sê-lo mais após a leitura. Neste capítulo o estilo do autor torna-se um pouco vago, confuso, um tanto impreciso. Ainda mais por tratar-se de um poeta: sabe-se lá onde foi buscar suas imagens, ou como apresentou em seus versos as trazidas da infância, se é que as trouxe. É apresentada a vida familiar composta por um pai caracterizado pela ânsia da ociosidade e de uma mãe amargurada e furiosa, a vida no internato, a descoberta das obras de autores místicos, alguma hesitação entre o uso do francês ou do flamengo.
Já o capítulo sobre Yasunari Kawabata (Osaka, 11/06/1.899 - Tóquio, 16/04/1.972) conduz satisfatoriamente o leitor, principalmente se desacostumado ou mesmo ignorante da literatura nipónica. N'um período de quinze anos Kawabata perdeu toda sua família e viu-se totalmente só no mundo. Os pais faleceram tuberculosos poucos anos após seu nascimento, impedindo-lhe qualquer referência em relação a este laço: eram-lhe em absoluto desconhecidos e fotografias nada diziam-lhe. Foi criado durante certo tempo pelos avôs idosos, mas a ideia segundo a qual "pai é aquele que cria", em vigor no nosso meio, não teve lugar em sua vida. Contudo, já não sei dizer se isso é uma idiossincrasia, ou mentalidade nacional. Doença e morte, portanto, encharcam sua vida e obra. Não só o acontecimento da Morte, mas os rituais fúnebres, o cadáver em si, com o acréscimo do medo de morrer jovem. Mórbido, doentio e franzino, exalta o Belo e demonstra seu fascínio pela beleza física, e a necessidade de tocar, cheirar, sentir os corpos. Escreveu um conto, As Belas Adormecidas, no qual parece misturar à morbidez esta busca do Belo. Curioso: como morreu inalando gás - respirando, portanto - seu filho adoptivo contesta a menção a um real suicídio, acto este a exigir maior derramamento de sangue, como o famoso haraquiri.
Agora sim, torno a Vladimir Vladimirovitch Nabokov (ou seja, Vladimir, filho de Vladimir Nabokov; São Petersburgo, 10/04/1.899 - Lausanne, 02/07/1.977) embora ele seja o segundo tratado no livro. Reparo no costume do autor em pesquisar os jornais do dia de nascimento dos escritores para verificar as notícias. Outro ponto: sempre cita na biografia de um alguma observação do próximo a ser estudado, de forma a bem ligar as cinco partes. Traz Rolin um pouco da infância aristocrática de Nabokov, os lugares percorridos em São Petersburgo, a casa da família com cómodos específicos, a presença dos trens, as jóias de sua mãe levando às cintilações e destas por sua vez à presença e observação das cores. O notável amor aos pais e pela família - e isso transparece no conto Armoles - e fugindo já da infância para a adolescência, o advento da Revolução Bolchevique de 1.917, fuga da Rússia e perda do fausto.
Detalhes de Um Pôr do Sol
Do próprio Nabokov temos o feliz lançamento do livro de contos intitulado Detalhes de Um Pôr do Sol. Pode-se procurar nele os elementos apontados por Rolin, é certo - e serão encontrados em profusão, como se ele houvesse lido apenas os contos deste livro -, mas isso deve enriquecer a leitura, não a empobrecer limitando-se a procurar borboletas aqui e ali. São doze contos escritos entre 1.924 e 1.935 um melhor que o outro, embora não sejam de leitura fácil. Nestas histórias fala-se muito da perda, e entre suas várias formas predomina a da terra natal. São contos escritos por um exilado, nos quais a maioria dos personagens são exilados, assim como o público específico dos jornais em que foram publicados - emigrantes russos.
Detalhes de um Pôr do Sol é um excelente convite à quebra da primitiva ligação feita entre Nabokov e Lolita, sua obra principal, muito mais comentada que lida. Do mesmo mal padece Balzac, escritor de uma obra monumental, porém conhecido pela pior delas, o terrível romance A Mulher de Trinta Anos.
São contos independentes entre si, mas percebemos uma inesperada ligação entre O Passageiro e A Campainha da Porta. Sugiro até uma leitura em sequência. No primeiro, um escritor e um crítico discutem o papel da Realidade na literatura, concluindo por sua suficiência e desnecessidade de acréscimos ao oferecido pela vida. Para chegar a esta conclusão, o escritor narra um facto ocorrido n'uma viagem de trem, interrompendo bruscamente a trama que estávamos a formar. No segundo conto somos pegos novamente de surpresa, tal como se Nabokov dissesse-nos: "Já não falei para não se antecipar antes de certo progresso da narrativa?". N'A Campainha ... as primeiras linhas mostram o personagem recordando-se de uma mulher e ansioso por reencontrá-la. Logo é revelado ser esta mulher sua mãe, e não sua amante. Nada de edipiano aqui (pode-se até indicar o "lugar-comum", seja qual for, como algo desconhecido pelo escritor): Nabokov apenas conta a estória de uma expectativa de sentimentos não correspondida na intensidade desejada. A conclusão pela suficiência da Realidade não impede seu adorno para a apresentação de uma circunstância, como n'O Temporal, no qual o recurso ao fantástico é apenas aparente.
Um livro guardado n'uma estante deixa-nos ver apenas sua lombada. Isso não é motivo para uma editora imprimir somente n'ela seu logotipo, nome do escritor e título da obra, e enrolar o volume n'uma tira de papel. Este óptimo livro de contos ficará em péssimo estado com o tempo mesmo seu proprietário sendo cuidadoso. Não é bom isso virar moda.
Gosto muito de contos. Permitem a manutenção diária da leitura. Li recentemente Padre Sérgio, de Liev - ou Leon - Tolstói. Um volume muito bem feito, mas no qual se poderiam acrescentar outras narrativas curtas - a exemplo d'O Diabo e Outras Histórias, exactamente da mesma editora. É a rápida narrativa do príncipe Kassátski desde a sua infância à sublimação religiosa, passando pela carreira militar, mosteiro e eremitério. Tolstói quer mostrar-nos que a Santidade não está necessariamente em uma vida santa, se essa vida segue apenas a formalidade de um culto estabelecido. Tem a subtileza de mostrar que não ocorreria da mutilação de um dedo pelo próprio personagem, caso sua fé fosse verdadeiramente sólida. A grandeza de Tolstói está justamente na agudeza utilizada para mostrar situações e inclinações muitas vezes despercebidas ou ignoradas - propositadamente ou não. Em Padre Sérgio lemos o duelo entre a Ostentação e a Sinceridade no pendor religioso, com a vitória da última, mais em conformidade com as ideias do escritor ao final da vida. Um pouco de crítica, sim, mas não é a cor predominante.
Dedico minhas noites à leitura exclusiva de Guerra e Paz. A mesma agudeza na observação das pessoas e relações. Olhando o mundo ao seu redor com a maestria característica, não é de se admirar a reviravolta de Tolstói em certa altura de sua vida. Como enojado de todo o visto e relatado, fugiu e tentou viver em consonância a princípios religiosos e filosóficos considerados verdadeiros. Quem muito vê, muito sofre, e talvez este grande escritor tenha sido sufocado em suas próprias observações. Levou sua determinação até o fim, mesmo não se saindo socialmente bem.
Para ir além




Ricardo de Mattos
Taubaté,
7/11/2002
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