COLUNAS
Quinta-feira,
21/11/2002
Sobre Três Novelas
Ricardo de Mattos
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À Patrícia Anália Rovida, com um afectuoso abraço.
Há no mercado livreiro nacional uma colecção cujo objectivo é trazer conhecimento do leitor brasileiro autores e obras do Leste Europeu. A Coleção Leste foi iniciada com A Exposição das Rosas do húngaro István Örkény e tem sua continuidade garantida pelo recente lançamento de O Idiota, de Fiódor Dostoievski. Os cinco últimos volumes são dele, e além do título citado temos Memórias do Subsolo, O Crocodilo, Crime e Castigo e Nietotchka Nieszvânova. Várias obras da colecção foram traduzidas por Boris Schnaiderman, mas há traduções assinadas por Paulo Bezerra, Aleksandar Jonanovic e outros.
Da dúzia de volumes já publicados há o predomínio de Dostoievski, um grosso volume de contos de Tchekhov, A Dama do Cachorrinho, e outro bem fornido de Aleksandr Púchkin, A Dama de Espadas, já misto de contos e poemas. Estes os mais famosos. Há outros escritores menos conhecidos, tal como Dezsö Kosztolányi e Óssip Mandelstan - O Tradutor Cleptomaníaco e O Rumor do Tempo, respectivamente. Por fim, autores talvez totalmente desconhecidos até então, ou cuja obra se alguma vez traduzida, esgotou-se e não foi reeditada. Tais autores são o já mencionado Örkény, o tcheco Karel Tchapék e o russo de origem polonesa Sigismund Krzyzanowski - o segundo com Histórias Apócrifas e o terceiro com O Marcador de Páginas.
Tenho um volume da Antologia do Conto Húngaro elaborada por Paulo Rónai e prefaciada por João Guimarães Rosa, no qual este demonstra intimidade com a língua húngara. Menciono-a pois nela podemos encontrar mais contos de Kosztolányi e um de Sándor Márai - para aproveitar a deixa - autor de livros periodicamente lançados no Brasil, como As Brasas, O Legado de Eszter e Veredicto em Canudos. É uma agradável surpresa descobrir que este profundo escritor conheceu Os Sertões de Euclides da Cunha e entusiasmou-se o suficiente para criar um romance a partir dele.
Não há uma ordem cronológica na colecção, mas vários escritores nasceram no final do século XIX e avançaram pelo século XX. Alguns testemunharam as duas grandes guerras mundiais, outros apenas uma. Örkény foi parar em um campo russo de concentração, Mandelstan morreu louco a caminho da Sibéria, e com Krzyzanowski conheceu particularidades do mundo soviético só agora divulgadas em detalhes. Isso sem repetir a famosa história de Dostoievski, livre do fuzilamento quando já tinha os olhos vendados, mas sem escapatória de umas férias também na Sibéria, o que leva os estudiosos a dividirem sua obra em dois períodos: um anterior e outro posterior à prisão. Todos estes escritores, mas todos, possuíram e desenvolveram um tão incómodo quão preciosista olhar clínico dos subterrâneos da alma humana. O ser humano é examinado em suas particularidades mais constrangedoras e o resultado exposto ao público, quer agrade, quer não. Exclui-se uma intenção maldosa deles, o objecto de suas análises que não é grande coisa.
O humor é presente em algumas obras e seu grau é variado. Todavia, é aquele humor oriundo da dor: "A fonte secreta do humor não é a alegria, mas a mágoa, a aflição e o sofrimento. Não há humor no céu" (Mark Twain). A partir desta premissa, temos narrativas que levam do meio sorriso à gargalhada. Este o humor a permear A Exposição das Rosas, de István Örkény (1.912 - 1.979). São duas as novelas: a que intitula o volume e A Família Tóth.
A Exposição das Rosas. Esta novela escrita na década de sessenta do século passado é interessante por narrar a produção de um documentário para a televisão, tendo como tema o instante da Morte. A desculpa é auxiliar o público a entender e temer menos este facto. Hoje encontramos vários documentários de cunho científico sobre o assunto, sobretudo nos canais fechados, e alguns de bom nível. Nesta novela, entretanto, o personagem Iron Korom aproxima seu programa do actual "Reality Show", preocupando-se mais com a fama e reconhecimento que com o tratamento sério do assunto. Está mais próximo de um mórbido Big Brother que de um sóbrio Enigmas da Morte.
Três os moribundos seleccionados: o professor Gábor Darvas, a operária Mikó e o escritor de segunda J. Nagy. Como o professor morreu antes de iniciadas as filmagens, coube a sua viúva narrar diante das câmeras seus últimos momentos. Encerrada sua apresentação, tudo é preparado para o acompanhamento dos últimos instantes da senhora Mikó e logo depois de J. Nagy. "Não adiantava discutir com a morte (...) porque ela não representava uma interlocutora; afinal, ela sabe dizer apenas uma única coisa: 'não'", resignava-se o professor Darvas. Por seu lado, a operária preocupava-se com o destino e conforto de sua mãe cega. Devorada pelo câncer, reflectia: "No meu caso, a morte é uma questão de dinheiro, doutor, porque o que será de minha mãe, se ela ficar sozinha? É isso que preciso resolver". O escritor, boémio e bonachão, não planejava falecer tão cedo, mas aceitando participar do trabalho do amigo Korom, acaba morrendo para não o desamparar. Dedicação absoluta.
A segunda novela, A Família Tóth, narra bem ao estilo "pastelão" o transtorno causado pela hospedagem concedida a um militar. Trata-se do major Varró, superior do soldado Gyula Tóth. Este quem, evidentemente almejando vantagem pessoal, pede à família que abrigue o superior. Nem a família, nem o soldado auferem benefícios desta estadia, pois Gyula morre em campo antes mesmo da chegada de Varró à aldeia. Sua morte é omitida pelo carteiro louco que, tentando poupar a família, joga o telegrama com a notícia dentro de um barril de água estagnada.
Após todo um rosário de ridículos e constrangimentos, o major parte. Quando a família Tóth imagina restabelecida a paz doméstica, ele retorna alegrinho, contando não haver trem pelos próximos três dias e pedindo pouso durante mais este período. Acaba sendo esquartejado. Este final imprevisível, ao qual são dedicadas as últimas linhas do texto de forma a reforçar a surpresa, faz toda a estória repetir-se rapidamente em nossa memória e questionar a comicidade das cenas anteriores. Onde encerra-se o cómico e inicia-se o trágico? É o humor com o qual Örkény talvez queira superar as aflições sofridas n'um campo de concentração. Resta apontar nesta obra a representação de um servilismo radical, de pessoas despreocupadas com a preservação da própria dignidade, dês que garantida a recompensa.
Duas novelas de Örkény e uma de Ivan Turguêniev: Ássia. Preocupações profissionais na última quinzena só permitiram dedicar-me a obras breves.
Ássia é uma obra menor de Turguêniev, russa no tratamento da matéria, mas afrancesada na forma. Seu principal romance é Pais e Filhos, ainda encontrável no mercado, embora eu prefira esperar por uma edição mais caprichada. Trata esta novela de um quase romance de estação quase ocorrido entre o personagem narrador e a que dá seu nome à obra. Turguêniev passou viajando boa parte da sua vida e neste caso trouxe seus personagens também para o exterior, pois a trama desenrola-se em uma cidadela alemã. E de fora, o escritor observa seus patrícios, colocando suas observações nas bocas de suas criaturas. Exemplo disso é a fala de Gáguin, meio irmão de Ássia, referindo-se a sua vocação artística:
"- Sim, sim - assentiu ele com um suspiro -, tem razão, tudo isso está muito ruim e imaturo, mas o que posso fazer? Não estudei como deveria, e há a questão da indolência eslava. Enquanto a gente sonha com o trabalho, paira como a águia: é como se pudesse mover o mundo; mas quando passa à execução, a gente se sente fraco e cansado".
Indolência eslava. Ássia foi escrita em 1.957. Oblomov em 1.959, e é atraente imaginá-lo como uma resposta interna e concordante. Pode até não ser, pois se Turguêniev era amigo pessoal - ainda que tensa esta amizade - de Dostoievski na Rússia, e de Zola e Flaubert na França, nada indica que tenha conhecido e travado relações com Gontcharov. É inevitável, todavia, a lembrança do romance durante a leitura da novela.
Para ir além
Colecção Leste. Vários Autores. Editora 34
Ricardo de Mattos
Taubaté,
21/11/2002
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