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Terça-feira, 3/12/2002
O último Shakespeare
Jardel Dias Cavalcanti
+ de 10700 Acessos
+ 8 Comentário(s)

"Somos feitos da matéria dos sonhos." (Shakespeare)

Existem duas obras de Jackson Pollock, uma denominada Sea Change e a outra Full Fathom Five (canção entoada por Ariel em A Tempestade, de Shakespeare - a expressão "sea change" também aparece na canção), que sugerem um ambicioso clamor pelos poderes do mago, como os de Próspero, sobre um mundo em fluxo entrópico contínuo. Estas obras tragam e dominam o observador, preenchendo o seu campo visual com energia materializada e levando-o a ter a sensação de que está "na arena" da pintura, assim como o artista esteve no momento de sua feitura.

Estas pinturas, criadas no auge dos poderes do artista, apresentam uma energia magnificamente controlada. Porém, podemos descobrir evidências esmagadoras de acidente e deslocamento, uma mal contida representação de uma potencialidade caótica, de impulsos anárquicos para uma dissolução e uma desordem que se espalham implicitamente no espaço infinito além da borda da tela. Em qualquer direção, estamos contemplando não tanto uma representação de coisas na natureza, quanto uma representação do fenômeno da própria natureza. A disposição da tinta pela superfície foi determinada por suas energias, tornando-se ela própria uma imagem do paradoxo inelutável da natureza - sua proliferação irreprimível de formas e ritmos diferenciados e sua resistível tendência à entropia.

Pollock estava no fim da vida (ele buscava este fim) e suas obras desse período são belos e fascinantes exercícios que expressam sua preocupação com o sublime, com a verdade básica da vida, que é seu sentido de tragédia.

Também Shakespeare, no fim da vida, produz uma obra de sentido semelhante: trata-se de A Tempestade, agora editada no Brasil pela editora L&PM, em formato de bolso, traduzida por Beatriz Viégas-Faria.

Não é mera coincidência que Pollock, num momento extremamente fecundo, procure este diálogo com Shakespeare. Estão ambos mergulhados no mesmo universo de formas poderosas que não são apenas o tema destas obras, mas experiências geniais de artistas em busca do sublime em seu imperativo criativo. Nos dois artistas parece que estamos ouvindo as palavras de Próspero, no quinto ato, cena I, de A Tempestade: "Minha alquimia agora atinge seu ponto crítico. Não falham os meus experimentos, obedecem-me meus espíritos, e o Tempo traz em sua carruagem o minuto exato."

A peça de Shakespeare se abre com ruídos estrondosos de uma tempestade, acompanhada de trovões e relâmpagos. Esta tempestade é produzida e controlada por Próspero, como nos informa a personagem Miranda, filha de Próspero: "Se através de sua Arte, meu querido e amado pai, o senhor colocou as águas selvagens nesse rugir, abrande-as."

O objetivo desta tempestade é naufragar um navio e levar sua população à ilha onde habitam Próspero e sua filha. Para tanto, Próspero mobiliza as terríveis forças da natureza e alcança seu objetivo.

Próspero foi parar na ilha por causa de uma conspiração envolvendo seu irmão Antônio e Alonso, rei de Nápoles, que além de tomarem seu poder o lançaram ao mar com a filha Miranda. Na ilha, Próspero encontra o selvagem Caliban e o gênio aéreo Ariel. Os dois se submetem ao poder de Próspero e lhe servem na empreitada de vingança contra a tripulação do navio naufragado, composta pelos traidores que tomaram seu poder em Milão.

Caliban e Ariel podem simbolizar uma tensão entre as forças do ar e da terra, os desejos do corpo e os desejos da alma, o intelecto e os apetites sensuais. Próspero ama Ariel e despreza Caliban. Sabemos que Próspero perdeu seu reino no momento em que se dedicava ao aprimoramento de sua alma e intelecto exilando-se na sua biblioteca: "sabedor que era de meu amor aos livros, suprimiu-me com volumes de minha própria biblioteca, os quais eu prezava mais que meu próprio Ducado". Seu projeto pessoal é de elevação, de controle das forças naturais e, conseqüentemente, do desenvolvimento de sua capacidade de perdoar os maiores crimes (e não existe maior crime para um ser do que aquele que é cometido contra si próprio).

A peça trata, sem dúvida, da renúncia ao poder temporal em troca de um poder de outra ordem: o poder da criação. Shakespeare, mágico mais poderoso que seu Próspero, nos transporta a uma região de magia, onde somos arrebatados por um sonho delicioso; tudo ali nos envolve e encanta; no fim, desejamos que esse sonho não acabe, pois desejamos sonhar ainda mais.

Ao manipular diversos elementos da natureza, em busca de uma redenção do seu passado, Próspero acaba por encontrar o sentido máximo de sua existência, que pode ser traduzido em uma de suas frases: "não vamos sobrecarregar nossas lembranças com um peso que já não existe mais."

Ao "perdoar" seu passado (esse peso, que pode se transformar em história, matéria que segundo Nietzsche só nos faz pensar para trás) redime a si mesmo. A descrição dessa passagem na peça deve ser citada: "eclipsei o sol do meio-dia, convoquei os ventos amotinados e, entre os verdes mares e a abóbada azul-celeste, armei estrondosa guerra. Emprestei fogo ao trovão mais pavoroso e retumbante, e com seu raio parti ao meio o robusto e altivo carvalho de Júpiter. Sacudi nas bases o promonitório mais sólido, e arranquei, raiz e tudo, os pinheiros e cedros. Ao meu comando, sepulturas iam despertando os que nelas dormiam, abriam-se e, por minha poderosa Arte, deixavam-nos sair. Mas eu aqui e agora renuncio a essa mágica escabrosa; e quando tiver requisitado uma música celestial (o que faço neste instante) para ultimar o meu propósito sobre os sentidos desses homens, que para isso servem os sons encantatórios, quebro minha vara mágica, enterro-a em grande profundidade no solo (...)".Em A Tempestade, é o perdão dos humanos que propicia a clemência dos elementos.

Existe uma legião de pseudo-especialistas que vêem na peça de Shakespeare um tratado sobre o colonialismo. Caliban, por exemplo, seria o índio colonizado pelo conquistador europeu. Segundo Harold Booom, "os críticos de orientação marxista, multicultural, feminista e neo-historicista conhecem bem as próprias causas, mas não as peças de Shakespeare". Sejamos conclusivos: a mitologia de Shakespeare em A Tempestade é sobretudo poética, não tendo nada a ver com símbolos políticos ocultos. Para os frequentadores das obras de arte existe uma idéia comum, fruto da experiência da frequentação: a idéia de que o fim da poesia é o de nos colocar em estado poético.

Na verdade, a peça tem mais relação com as preocupações metafísicas do autor do que com questões de ordem sociológicas. Na própria peça de Shakespeare encontramos uma resposta a estes sociólogos de plantão: "Não consigo parar de me sentir maravilhado por aquelas formas, aqueles gestos e aqueles sons, expressando... embora carentes do uso de palavras... uma espécie de magnífico discurso mudo".

Podemos pensar na obra de Pollock e Shakespeare, nesse momento, como uma alegoria da vingança do artista contra sua irremediável condição de humano, trazendo para dentro de sua própria obra o trauma da consciência dessa condição. O que aprendemos com a peça é que o mundo inteiro não é mais que um espetáculo, podemos dizer filosoficamente, uma representação. Nós somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos e nossa vida terminará como ela começou, por um sono. A filosofia de Próspero confirma aquela de Hamlet, de que a vida não é mais que uma ilusão. O homem não é, portanto, mais que o sonho de uma sombra. E mais, eu não disse ainda, mas o digo agora, A Tempestade é uma tragi-comédia, no seu sentido radical, isto é, fazer rir do absurdo que é a aventura humana.

A filosofia do autor é clara: o real é feito da mesma matéria que a imagem, a vida não é mais verdadeira que a arte. Mas alguma coisa existe, uma verdade moral, a clemência de Próspero que é a indulgência de Shakespeare, que ama o bem e perdoa o mal.

Para ir além



Para aprofundar mais

Harold Bloom. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José r. O´Shea. Ed. Objetiva.
Germaine Greer. Shakespeare. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
F. E. Halliday. Shakespeare. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
Jean Paris. Shakespeare. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
Préface de J. J. Mayoux. La Tempête. Aubier: editions Montaigne.
Introduction de Joseph Aynard. La Tempête. s/l/ s/d.


Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 3/12/2002

Quem leu este, também leu esse(s):
01. Diogo Salles no Roda Viva de Julio Daio Borges


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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
3/12/2002
09h08min
bom acordar e ter um texto belo para se ler. Muito interessante sua comparação entre shakespeare e pollock. parecem irmãos espirituais na criação artística. feitos da mesma energia, do mesmo clamor, da mesma glória.
[Leia outros Comentários de claudia]
7/12/2002
03h37min
Em primeiro lugar acho errado falar de pinturas que não são lá muito conhecidas sem colocar uma reprodução delas ou indicar um link para tal. Em segundo é uma piada comparar um dos maiores artistas de todos os tempos com um pintor sem técnica, produto de uma forte campanha de marketing – sugiro a leitura do ensaio “Jack the dripper” de Affonso Romano de Sant`anna. Destaco um trecho de seu texto abaixo que é um exemplo de uso excessivo de jargões intelectualóides – com a inefável menção à entropia, citada em 9 de cada 10 textos sobre arte contemporânea – que não dizem nada, e para quem trabalha com pintura e desenho deixa claro que o autor não tem prática em nenhuma das duas matérias: “Porém, podemos descobrir evidências esmagadoras de acidente e deslocamento, uma mal contida representação de uma potencialidade caótica, de impulsos anárquicos para uma dissolução e uma desordem que se espalham implicitamente no espaço infinito além da borda da tela. Em qualquer direção, estamos contemplando não tanto uma representação de coisas na natureza, quanto uma representação do fenômeno da própria natureza. A disposição da tinta pela superfície foi determinada por suas energias, tornando-se ela própria uma imagem do paradoxo inelutável da natureza - sua proliferação irreprimível de formas e ritmos diferenciados e sua resistível tendência à entropia.” E por último, ao se falar de um navio, não se deve dizer população, (“O objetivo desta tempestade é naufragar um navio e levar sua população à ilha onde habitam Próspero e sua filha. Para tanto, Próspero mobiliza as terríveis forças da natureza e alcança seu objetivo.”)o mais adequado é tripulação.
[Leia outros Comentários de Ana Couto]
7/12/2002
14h10min
Ana, obrigado pelo comentário. Não pense que só espero elogios ao que escrevo, ao contrário, prefiro o confronto que a unanimidade. Não sou padre, desconsidero a verdade, seja religiosa ou qualquer outra. o que tentei fazer é aproximar o universo dos dois criadores. Não sou culpado se você não tem uma mínima biblioteca de arte (ainda mais se você for artista). O uso do termo "entrópico" relaciona-se ao movimento da pintura citada, como que voltando-se para dentro de si, numa espécie de auto-aniquilamento. e ao memso tempo, pelas bordas da tela, escapa uma intensa movimentação para fora. Como na peça de shakespeare, uma busca da destruição dos "tripulantes" e ao mesmo tempo o perdão. energias se movimentando para dentro e para fora. é preciso uma certa sensibilidade para perceber isso. pena que você nem conhece as pinturas de Pollock e ainda atribui algum valor destituido de crítica ao sr. affonso romano, como se ele fosse a maior autoridade em Pollock- ele não o é. é um ideólogo pensando a arte, tudo o que ele escreveu ou é amparado em questões marxóides ou freudiantas. isso você deve saber. Mas valeu sua interferência - isso excita o intelecto e as forças menos racionais que trazemos dentro de nós ao escrever, ler, pintar e sonhar. libere as suas.
[Leia outros Comentários de jardel]
8/12/2002
01h39min
Sua explicação do que significa entropia é desnecessária e mostra que vc não teve capacidade para entender sequer a crítica que estava sendo feita. Se em meu comentário acima eu destaco como clichê o uso de tal termo, logicamente não é por que ele me cause estranheza, justamente o contrário: é algo mais batido que perguntar a uma mulher qual o telefone do cachorrinho. Respondendo a sua questão, eu tenho uma boa biblioteca de arte. Mas vc não respondeu a minha: consegue desenhar um ser humano de forma adequada? Um cão? Pinta uma natureza morta? Se a resposta é não, como só pode se esperar de alguém que é ingênuo a ponto de idolatrar Pollock, eu sugiro a vc estudar um pouco desenho, há interessantes exemplos ao longo dos últimos 3000 anos de história da arte pré-Pollock. Só pra contextualizar, quando Shakespeare terminava A Tempestade, a ópera tinha acabado de nascer na Itália, Caravaggio tinha morrido há um ano, El Greco tinha acabado de pintar o Laocconte e Rubens pintava os Quatro Filósofos. Não há nada no século XX que possa ser comparado a este contexto - e misturar o patético Pollock nesta massa só faria sentido se o objetivo do texto fosse humilhá-lo. Não se compara ouro a miçangas.
[Leia outros Comentários de Ana Couto]
8/12/2002
17h40min
ana, parece que seu problema é com a arte do século XX. não creio que nossa sensibilidade tenha que se limitar a "amar" caravaggio e el greco e odiar a arte abstrata (no caso, o expressionismo abstrato - embora conceitos em arte não expliquem nada, são apenas camisas de força para tentar controlar o incontrolável). não pense que a única forma de expressão possível seja a arte figurativa. bom,shakespeare, que você quer incluir entre as grandes almas, no seu tempo era apenas arte popular - essa classificação de "classico" é posterior à sua existência. a resposta é sim, pois além de minha formação de históriador da arte sou desenhista, daqueles bem tradicionais, que, inclusive, faz cópias perfeitas dos desenhos de Da Vinci (que vendo a preços assustadores, você não poderia pagar), etc, etc. mas isso não limita minha aventura pelo universo fantástico da arte do século XX e , agora, do século XXI. Faça como Baudelaire, abra o olho para entender o heroísmo do seu próprio século. Se tem uma boa biblioteca de arte porque reclamou da flata da ilustração. Movimente-se... que geração conformista!!!
[Leia outros Comentários de jardel]
9/12/2002
06h44min
Estimado Jardel, Sem querer fugir do assunto, acho que o Affonso Romano de Santanna tem um mérito que não se pode negar: tem dito aquilo que pensa, com observações corajosas e inteligentes, algo que tem tornado raro em artes plásticas. Os seus textos, na minha opinião, que sou estudante de arte, têm sido os melhores sobre o assunto em muito tempo, e o seu pensamento vai de encontro ao de muitos outros jovens artistas.
[Leia outros Comentários de Eduardo Arruda]
9/12/2002
13h40min
Eduardo, não desmereci o affonso romano, apenas não concordo com as interpretações de obras de arte, por vezes forçadas, amparadas ou na psicanálise ou no marxismo. claro que admiro o livro dele sobre Drummond, mas o "canibalismo amoroso" é forçado por várias questões que não vou discutir aqui. quanto às reflexões sobre arte prefiro o Gullar (embora também equivocado em questões relativas à arte do século XX). um abraço, jardel
[Leia outros Comentários de jardel]
2/10/2007
19h03min
Esse texto tem muito conteúdo, mas não possui a informação que indica que tipo de pintura o pintor "Carlos Alonso" pintava. Saudações, Mila :)
[Leia outros Comentários de Camila ]
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