A idéia da criação dos Parangolés aparece para Oiticica no momento de seu envolvimento com o samba. O interesse por esta dança, por sua vez, nasceu, segundo o artista, de "uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão". O samba leva o participante a uma imersão no ritmo, na verdade, a uma identificação completa e vital do ato com o ritmo, fazendo com que o seu intelecto permaneça obscurecido diante das imagens móveis, constantemente improvisadas, rápidas e inapreensíveis durante a dança. Esta experiência da "lucidez expressiva da imanência", obtida na dança, leva Oiticica a criar o Parangolé.
Parangolé são capas, estandartes, bandeiras para serem vestidas ou carregadas pelo participante de um happening. As capas são feitas com panos coloridos (que podem levar reproduções de palavras e fotos) interligados, revelados apenas quando a pessoa se movimenta. A cor ganha um dinamismo no espaço através da associação com a dança e a música. A obra só existe plenamente, portanto, quando da participação corporal: a estrutura depende da ação. A cor assume, desse modo, um caráter literal de vivência, reunindo sensação visual, táctil e rítmica. O participante vira obra ao vesti-lo, ultrapassando a distância entre eles, superando o próprio conceito de arte.
Mas que fique claro, ao vestir o Parangolé o corpo não é o suporte da obra. Oiticia diz que se trata de "incorporação do corpo na obra e da obra no corpo". Nessa espécie de anti-arte, diz Oiticia, "o objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora".
Com o Parangolé Oiticia propõe ao espectador (agora participante) em lugar de meramente contemplar a cor, vestir-se nela. Este simples ato, que libera o participante do domínio da sensação visual, produz uma "maravilhosa sensação de expansão", criada pela incorporação dos elementos da obra numa vivência total do espectador.
O crítico Mário Pedrosa comenta a origem da criação do Parangolé por Oiticica: "Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para a experiência de tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade".
Dá-se início a uma nova visão de como o ser humano e uma obra de arte podem integrar-se: a morte do espectador e o nascimento do participante.
No Parangolé, portanto, o motor ontológico é a capacidade de revelar a necessidade da ação. O vestir contrapõe-se ao assistir. Oiticica explica: "O 'ato' do espectador ao carregar a obra revela a totalidade expressiva da mesma na sua estrutura: a estrutura atinge aí o máximo de ação própria no sentido do 'ato expressivo'. A ação é a pura manifestação expressiva da obra". Para que a ação aconteça, exige-se a participação inventiva e improvisada do expectador, como acontece no samba.
A partir daí, o próprio conceito tradicional de exposição desaparece, pois nada significa "expor" Parangolés. Por isso, dizer que o Parangolé de Oiticica está sendo exposto é um contra-senso. O que importa agora é a criação de espaços livres para a participação e invenção criativa do espectador. O objetivo da participação, nos indica Hélio Oiticica, "é dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de 'experimentar a criação', de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado."
O que o Parangolé nos propõe é o deslocamento da experiência do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial. E isto só é possível com a radicalização da vivência através da manipulação, do movimento e da utilização plurisensorial da "obra". Novamente damos voz a Oiticica: "O que interessa é justamente jogar de lado toda essa porcaria intelectual, ou deixá-la para os otários da crítica antiga, ultrapassada, e procurar um modo de dar ao indivíduo a possibilidade de 'experimentar', de deixar de ser espectador para ser participador."
Parangolé, portanto, não é uma "obra", mas o "lugar" no qual a experiência artística se funda. Seu objetivo é uma intensificação da vida, da agitação do pulso, da batida do coração, levando o indivíduo a trocar a percepção artística pela expressão artística.
Num primeiro momento, Oiticica aproxima-se de Marcel Duchamp no tocante ao questionamento do estatuto da arte: a obra de arte é apenas o ato artístico mumificado em um museu. A proposta da "antiarte" consiste em sensibilizar o cotidiano através da repotencialização do "coeficiente" criativo do indivíduo, sem pretender impor um padrão estético. Funda-se aqui uma ética para a qual a liberdade reside numa tentativa constante de autodesprendimento e auto-invenção.
Num segundo momento, superando a idéia duchampiana de que o que determina o valor estético já não é um procedimento técnico, um trabalho, mas um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade, Oiticica leva o espectador a explorar a própria "fonte" da linguagem, ou melhor, recapturar a linguagem em sua fonte. Despojando a arte de qualquer fim transcendente ou estético, faz com que subsista apenas o mero ato artístico.
A arte agora está livre para assumir-se como um objeto de experiência, anunciando, inclusive, o fim da instituição da autoria. O Parangolé, decididamente anti-retórico, materializa-se enquanto experiência e desmaterializa-se enquanto arte. O desejo de uma experiência artística única, intransferível, entra em choque com a instituição da arte, o consumo mercadológico do objeto artístico, o primado da técnica e a emoção "estética". Deixa de ser puramente arte para virar um embate com o "mundo" da arte.
O que é proposto por Oiticica é uma estética da existência e não dos objetos, das formas de vida, não das formas de arte, sendo a obra apenas o ato de fazer a obra. Ou seja, uma ética do compromisso com formas constituídas de experiência, de libertação pessoal para a invenção de novas formas de vida (ou para ser mais certeiro, uma estética da auto-invenção).
Oiticica nos leva a pensar que a arte contemporânea traz em si mesma as fontes de todas as artes, que toda obra anterior nada mais é do que uma antecipação alegórica daquela. Com o objetivo de superar a distância entre arte e vida, propõe a experiência como eixo condutor do ato artístico. O objetivo é tirar o indivíduo da atitude meramente contemplativa e submergi-lo na sensibilidade ativa. Destruindo o consumidor pequeno-burguês da cultura, o homem da cultura asséptica, com sua tagarelice ociosa (séculos de interpretação), o indivíduo será levado à fonte irrepresentável ou não discursiva da experiência.
O interesse de Oiticica, ao criar o Parangolé, não foi outro senão o de levar o indivíduo ao dilatamento de suas capacidades artísticas, para a descoberta de seu centro interior criativo, de sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano. E, termino aqui, com as palavras de Bergson, que sintetizam a experiência Parangolé: "Ao libertar e acentuar esta música, eles hão de impô-la à nossa atenção; farão com que venhamos a inserir-nos nela, como passantes que entram numa dança. E por aí impelir-nos-ão a vibrar nas profundezas de nosso ser, algo que só estava esperando o momento de vibrar".
Para saber mais:
FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992.
CATÁLOGO: Hélio Oiticica. Centro de Arte Hélio Oiticia. Rio de Janeiro; Galerie nationele du Jeu de Paume, Paris.
OITICICA, Hélio Oiticia & CLARCK, Lygia. Cartas: 1964-74. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1898.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
JUSTINO, José Maria. Seja Marginal, Seja Herói: modernidade e pós-modernidade em Hélio Oiticia. Curitiba: Ed. da UFPR, 1998.
SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticia: qual é o parangolé. Rio de Janeiro: relume-Dumará, 1996.
“Os parangolés surgiram a partir do momento em que Hélio Oiticica passou a freqüentar a escola de samba da Mangueira. É algo muito pobre se você comparar com a roupa de uma porta-bandeira, colorida, barroca, popular. É uma arte que remonta ao século 17. Aí o Hélio botava a roupa em um passista e pedia para o cara rodar e falava que com isto ele estabelecia uma relação da forma com o espaço e a luz. É pura teoria. Qualquer objeto rodando mantém uma relação com o espaço e a luz.”
Ferreira Gullar, como pode ser lido em
www.revan.com.br/catalogo/0058b.htm
Hélio Oiticica era um artista medíocre, se chegou a tanto, e seu discurso era falho. Espero que o século 21 não tenha a mesma dificuldade para enxergar o óbvio que teve o século 20.
Conceitos como "a obra de arte é apenas o ato artístico mumificado em um museu" não significam nada.
caros renata e eduardo,
vocês contribuem para um momento importante: iniciar uma crítica à obra de oiticica. está, realmente, na hora de avaliar algumas obras "pobres" do hélio. coisas que se fazia em 1920 e que o Hélio só descobriu em 1960-70, repetindo o procedimento. projetos que aparentam uma inovação, quando na verdade não passam de apropriações de idéias já "antigas" dentro do projeto das vanguardas internacionais. mas é bom que a crítica seja consistente.
um abraço,
jardel
A arte em si não é uma novidade. Ela é, antes de tudo, uma renovação, uma nova maneira de estetizar o velho, uma releitura contemporânea. O Parangolé renova o conceito carnavalesco que estabele uma ponte da estética carnavalesca com a história ou com o cotidiano. A carnavalização se dá, ocorre, sempre que se muda de máscara. E esta mudança o Parangolé estabele com maior simplicidade do que a instituição carnavalesca atual. Para mim, Oiticica é um artista plástico representativo da contemporaneidade. Tanto é que, meio século depois, pessoas sérias continuam discutindo e comentando os seus trabalhos.