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Sexta-feira, 13/12/2002
Fellini
Maurício Dias
+ de 3700 Acessos
+ 1 Comentário(s)

"Fellini é um garoto do interior que nunca chegou de fato à Roma. Ainda sonha com ela. E devíamos todos agradecer muitíssimo esses sonhos." Orson Welles, em entrevista a Peter Bogdanovitch.

O provincianismo de Federico Fellini pode ser notado em suas mais fortes influências, os quadrinhos - numa época em que os quadrinhos eram muito mais banais, salvo raras exceções - e o circo - ao qual prestaria homenagens em "A Estrada da Vida" (1954) e no semidocumentário feito para TV "I Clowns" (1971). A imagem por ele construída de sua mulher, a atriz Giulietta Masina, em seus primeiros filmes célebres, como "A Estrada da Vida" ou "Noites de Cabíria" (1957, Oscar de filme estrangeiro e prêmio de melhor atriz em Cannes) são definitivamente populistas, mostrando grande simpatia e comiseração pelos ingênuos e apalermados.

Mas vamos falar do começo. Fellini deixou a cidade natal aos dezessete anos, foi para Florença tentar vender charges para uma revista satírica, e acabou colaborando como desenhista de histórias em quadrinhos. Em 1939, foi para Roma estudar direito - e como bom garoto de província, foi acompanhado da mamãe, que era nativa da capital. Graças a uma confusão nos arquivos militares, conseguiu escapar de prestar serviço na guerra - mas, talvez, "confusão nos arquivos" seja um eufemismo para suborno ou troca de favores obtida por sua família. Ninguém em sã consciência quer o filho indo pra guerra.

Em Roma, escreveu esquetes para teatro, canções para o teatro de revista, monólogos para cômicos famosos. Chegou a trabalhar, até, em fotonovelas, assim como - pasmem - Michelângelo Antonioni. A Itália estava arrasada pela guerra, qualquer serviço era bem vindo.

Sua amizade com o ator Aldo Fabrizi o levou ao cinema quando Rossellini chamou Fabrizi para trabalhar em "Roma, Cidade Aberta" (1945), marco do cinema-mundial, filme chave do neo-realismo italiano. (Este movimento seria um dos grandes pais do cinema novo brasileiro, ao utilizar atores não profissionais e mostrar, num forte contexto social, todas as mazelas da sociedade, evitando-se ao máximo maquiar a realidade. No filme de Rossellini, por exemplo, mostra-se que Roma estava de fato arrasada, e a cidade-ruína é parte integrante da narrativa.). Fellini foi indicado para o Oscar como um dos roteiristas do filme. Voltaria a trabalhar como roteirista no filme seguinte do diretor, "Paisá" (1946).

Em seguida, escreveu roteiros para Alberto Lattuada, até surgir a chance de co-dirigir um filme com este, "Mulheres e Luzes" (1950).

Em muitos dos filmes de Fellini, podem-se ver as reminiscências de sua infância e juventude passadas na região da Emilia Romana, na cidadezinha de Rimini - o que nos possibilita chamar suas memórias de "Rimini-scências". No belo "Os Boas Vidas" (1953), mostra-se a juventude na província, e o drama dos que, por ambicionar algo maior na vida, têm que deixar a cidade natal - algo que sentiu na própria carne. Com este filme, ganhou prêmio em Berlim. Anos depois, em "Amarcord" (1974, Oscar de filme estrangeiro) - uma de suas obras-primas, em que o título significa "Eu me recordo" num dialeto local - voltaria a mostrar uma Itália governada por Mussolini - recheada com o culto à sua personalidade e a perseguição aos dissidentes, bem como a colaboração da Igreja em todo o processo. No entanto, ele os retratou com ternura e um humor peculiar.

Em "A Doce Vida" (1960), vemos uma sociedade degradada pela vida fútil e hedonista. O personagem principal - Guido, um repórter de fuxicos - vive à caça de notícias e mulheres pelas ruas da cidade eterna, ao mesmo tempo em que está preso a um relacionamento patético com uma neurótica ignorante. O único personagem do filme que pode ser descrito como alguém de índole aparentemente boa - o sujeito que recebia artistas e intelectuais em sua casa - enlouquece, mata seus filhos pequenos, e suicida-se em seguida. Marcello Matroianni, pela primeira vez, empresta seu belo rosto ao personagem que, no fundo, é Fellini - um Fellini ideal e sedutor, como o próprio diretor talvez desejasse ser. A cena de Anita Ekberg molhadinha na Fontana di Trevi é um dos clássicos do cinema. A modelo Nico, que depois viraria musa do rock nas mãos de Andy Warhol, aparece num pequeno papel interpretando a si mesma.

O melhor filme de Fellini, "8 e ½" (1963, Oscar de filme estrangeiro), mostra um diretor de cinema em crise. A ação se dá, sem distinções claras, no plano do presente, do passado e do delírio, algo como o que Nelson Rodrigues e Ziembinsky tinham feito aqui quase vinte anos antes, na célebre montagem teatral de "Vestido de Noiva". Um filme deslumbrante, onde o diretor tem a audácia de assumir publicamente o lado chauvinista, bígamo e neurótico que quase todo homem no fundo carrega dentro de si. Este filme, como "A Doce Vida", está disponível em vídeo. Mas perdem muito em tela pequena. Os clássicos tinham que ser reexibidos em circuito, ao menos, de cinco em cinco anos. O gosto do diretor pelo grotesco pode ser encontrado principalmente em seus filmes mais tardios, "Satyricon" (1969), "Casanova" (1976) - ambos algo enfadonhos - , e "Cidade das Mulheres" (1980). Felliniano virou adjetivo, amplamente usado.

Em Satyricon, ele começou também a onda de alojar seu nome já famoso ao título do filme (Ex. Casanova se chamou Il Casanova di Federico Fellini), no que pode ser visto como uma bela jogada de marketing - e também como culto à personalidade, como ele havia visto acontecer com o Duce Mussolini na década de 30.

Na década de 80, uma última obra-prima, "E La Nave Va", um filme extremamente lírico, onde um navio é um microcosmo da sociedade italiana à época da primeira guerra. Fellini brinca com a artificialidade do cinema, nos mostrando que o seu mar é, na verdade, plástico azul, e o navio só balança por força de engenhos hidráulicos.

Pouco antes de morrer, Fellini voltaria aos seus amados quadrinhos, escrevendo argumentos para os belos desenhos de Milo Manara. Na morte, sua eterna companheira Giulietta o seguiria em menos de um mês. Não podiam ficar muito tempo longe um do outro.


Maurício Dias
Rio de Janeiro, 13/12/2002

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01. O traidor Mark Twain de Urariano Mota


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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
14/12/2002
14h47min
Vi pela primeira vez o classico 8,5 numa mostra de cinema italiano no National Film Theatre aqui em Londres. Realmente magnifico. Quem vier passar as festas aqui, nao deixe de dar uma olhada... Ah, em janeiro, semanas e semanas dedicadas a outro genio, Bergman. Como a sala escura e a telona fazem diferenca... podiam fazer mais mostras retrospectivas no Brasil.
[Leia outros Comentários de Arcano9]
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