As paredes de Havana estão descascadas. Os prédios residenciais da cidade, de aproximadamente três andares, transformaram-se em cortiços. Não há, internamente, divisão rígida entre os apartamentos ― famílias se organizam como podem. Ou não podem: e no espaço em que caberia um casal com conforto espremem-se, entre mofo e baratas, famílias com uma dúzia de integrantes. Sem água e sem colchão. Silêncio e privacidade, em Havana, são privilégios impossíveis. A população está preocupada com necessidades essenciais: como, por exemplo, comida.
A porção de alimento oferecida pelo governo não sustenta uma família por uma semana. É preciso comprar o resto, e os mercados de Havana vendem seus produtos em divisas ― ou seja, dólar americano ou a moeda cubana equivalente. A matemática é simples e triste: um dólar custa vinte pesos cubanos; um quilo de carne custa aproximadamente dez dólares; o salário mensal de um médico é de 400 pesos ― ou, convertendo, vinte dólares por mês. É ridículo, mas é assim. Ou, talvez, pior, se considerarmos que um policial havanero recebe 870 pesos por mês, o que é mais do que o dobro do salário de um médico. É desse modo que o governo preserva uma relação aparentemente pacífica entre os turistas e os cubanos: com um policial em cada esquina, literalmente. São eles, os turistas, que sustentam o país. É preciso protege-los e enganá-los, à força.
A relação entre havaneros e turistas é tensa. Gineteros abordam e incomodam turistas na cidade inteira, pelas calçadas e pelos bares, disfarçando simpatia em busca de dinheiro. Fingem amizade, porque, oficialmente, não podem servir como guias. E grudam na vítima desavisada, oferecendo uma variedade curiosa de serviços: restaurantes, drogas, charutos, rum, mulheres, etc. Tudo, claro, anunciado como o melhor negócio da cidade, com um discurso ininterrupto e confiante, de tão repetido. Bobeou e, ops, ele leva sua carteira. É difícil encontrar, sobre toda a superfície terrestre, uma espécie mais inconveniente. Do outro lado, ginetera significa prostituta. A impressão, caminhando por bairros residenciais de Havana, é que quase toda cubana está disposta a oferecer sua sensualidade latina em troca de cinco dólares. A aproximação é, mais uma vez, descarada, alternando entre assobios e olhares, tão forçados quanto constantes. Caminhar por Havana, apreciando a pureza do mar e beleza da arquitetura, poderia ser uma distração deliciosa. É, hoje, porém, uma irritação permanente.
Havana é uma cidade despedaçada e desperdiçada. A não ser por um único pedaço, Havana Vieja, restaurada recentemente e freqüentada quase com exclusividade por turistas e, claro, gineteros de ambos os sexos. Cubanos são proibidos de visitar ilhas e praias do seu próprio país, como Cayo Largo e Varadero (onde, por sinal, a esquerda brasileira, de Lula a Chico Buarque, gosta de se divertir, celebrando o suposto sucesso do regime cubano). Se não forem funcionários de hotéis e restaurantes ― que, aliás, contratam normalmente brancos, apesar da predominância negra em Cuba ―, jamais pisarão nesses ambientes. Havana Vieja é um dos poucos lugares de Cuba em que turistas e cubanos se encontram em plena legalidade. Para azar dos turistas, porque são sempre os gineteros que aparecem nesses ambientes; e, claro, para a sorte dos malandros. E quem recebe o trabalho, depois, é o policial, escalado para impor respeito e separar tipos suspeitos de turistas ingênuos. É difícil, assim, tomar um mojito em paz.
É nesse contexto confuso e complexo que vive, ou tenta viver, Ibrahim Torres, de 33 anos. Ibrahim nasceu e cresceu comunista. Nunca duvidou do sistema que o educou, e pelo qual seu pai arriscou a vida. Se, em Havana, as coisas não estavam excitantes ou entusiasmantes, também não iria estar em nenhum outro lugar do mundo, concluía. E, portanto, é melhor aceitar essa rotina, que, no fim das contas, nem é tão exigente assim: dificilmente um cubano trabalha dois dias seguidos. Todo mundo precisa estar empregado, dentro das estatísticas, e a solução, se não há emprego suficiente, é dividir o existente. Ibrahim distribui cartas, dia sim e dia não, em um turno de quatro horas, e recebe 200 pesos, no fim do mês. O que, na verdade, não o sustenta por duas semanas. Como quase todos os habitantes de Havana, Ibrahim tem um primo que escapuliu para Miami, e que envia 200 dólares anuais para a família pagar as contas. A isso, Ibrahim soma o que recebe da tradução que faz, por baixo do pano, para amigos holandeses, que visitam o país anualmente. Não é muito, mas assim Ibrahim conseguiu acumular uma poupança estratégica, para alguma eventualidade.
Foi por amor, como dizem. E Ibrahim jura que não tinha outro interesse quando decidiu sair de Cuba para morar no Brasil, a não ser se casar com Marina. Conheceram-se através de um amigo em comum. Apaixonaram-se. Ibrahim cuidou do longo processo burocrático, durante dois anos, para conseguir permissão para sair de Cuba ― e nunca mais voltar. Foi, ou, se quiser, veio, para Curitiba. Chegou e, depois de dois meses, Marina chutou-lhe a bunda: estava desconfiada que Ibrahim estivesse com ela apenas para fugir da Ilha. Ibrahim continuou no Brasil durante seis meses, desorientado e deslumbrado. Não acreditava no que via: na distância entre a realidade brasileira e o que ele aprendeu em cartilhas soviéticas sobre o Brasil. Pessoas normais saiam com os amigos, para beber cerveja boa e barata, e comer com fartura. Tinham carro e televisão, torciam para times de futebol, iam ao cinema. E falavam mal do presidente, em alto e bom som, totalmente despreocupadas com a polícia. O Brasil real não era apenas diferente do descrito pelo seu material didático. Era absolutamente diferente de Cuba. Era, enfim, o paraíso. Ou seria Cuba um inferno ― que, dentro dele, era impossível perceber?
Apesar de todas as qualidades do país, e da sua renovada empolgação com a vida, Ibrahim precisou voltar para Cuba, quando a poupança acabou. Podia, com facilidade, empregar-se numa escola de espanhol, mas não conseguia suportar a idéia de, durante toda a sua vida, ficar distante de sua mãe e dos seus irmãos. Precisava revê-los e contar o que viu. Mas sabia que dificilmente conseguiria sair de Cuba novamente; seria, ainda, observado e perseguido, como dissidente em potencial. Voltou, ou, se quiser, foi, mesmo assim ― para nunca mais voltar. Acabou-se a paixão por Marina. E nasceu em Ibrahim um sentimento inesperado e forte, de profundo amor pelo Brasil. É este o impacto que a liberdade provoca em quem nunca a experimentou: a sensação de nascer de novo. Ibrahim descobriu que, durante toda a sua vida, foi preso e enganado. Sua passagem pelo Brasil foi inesquecível e insubstituível. Ibrahim saiu da caverna.
E voltou para ela. Para viver, agora, sozinho, de lembranças alegres e idéias confusas, produto de sua permanência no Brasil. Não consegue mais aceitar o trabalho de carteiro. Seu único ofício é, durante duas semanas ao ano, os serviços de tradução que presta aos amigos holandeses. Não tem dinheiro para beber cerveja a vinte pesos a latinha. Não tem cinema para assistir. Está cansando da programação dos quatro canais de televisão estatais. Não suporta o incansável discurso comunista do Gramma, jornal oficial de Cuba, que filtra e distorce notícias. Não tem amigos para conversar sobre experiências no exterior. Não recebe notícias de amigos estrangeiros, porque o Comitê Revolucionário do quarteirão censura sua correspondência. E não pode reclamar de nada. Não pode, inclusive, comentar sobre o marasmo que o abate, nem mesmo com familiares. A simples imagem de Fidel Castro, no palco ou na televisão, faz com que Ibrahim trema e sue visivelmente. Sua rotina é um tédio insuportável, a ponto de ele confessar para mim: ou enfrenta o Caribe em uma balsa precária ou, em dois anos, explode seus miolos. Só é possível agüentar o inferno quando nunca se esteve fora dele.
Há exatamente dois anos estive com Ibrahim. E, desde então, não recebi nenhuma notícia sua, apesar das cartas que enviei. Pode estar vivendo com tranqüilidade em Miami; pode estar afogado no Mar do Caribe; e pode ter cometido suicídio. Não sei: mas a alternativa mais provável, considerando o estado em que estava quando nos encontramos, é a última. Não havia, para Ibrahim, expectativa de novidade ou esperança de renovação. 2003 seria necessariamente pior do que 2002, porque, com o tempo, seu espírito estava cada vez mais oco e seco, sugado e esmagado pelo regime a que está submetido. Seu chefe, agora, aliás, vem para o Brasil, prestigiar a eleição de Lula para Presidente da República. Lula ainda admira a Revolução Cubana e respeita a ditadura castrista. O Brasil está cheio de expectativas e esperanças, de palavras sedutoras e bonitas, aguardando, mais uma vez, o sucesso inédito de um governo onipotente. E não percebe o perigo dessa confiança. Pagará por isso. Só espero que não custe a liberdade que nos resta.
Caro Eduardo, entendo a sua preocupaçao com o futuro do nosso pais, mas e preciso compreender que a realidade historica atual e totalmente diversa dos tempos da revoluçao cubana. Nao seja tao burgues! Enjoy the party!!!
Eduardo,
Muito obrigado. Eu, como Ibrahim sou um havanero. Eu, como Ibrahim, passei por Brasil e conheci pela primeira vez a liberdade. Eu, como Ibrahim, demorei para entender que simples operarios fizessem churrascos aos domingos; embora eu, a diferenca de Ibrahim, fui para o Brasil sabendo que nao voltaria a Cuba.
E passei cinco, as vezes muito duros, mas sempre belos anos no Brasil ate que vim para os Estados Unidos o ano pasado. Checo varios sites brasileiros todo santo dia e sigo a situacao no Brasil. Ja, ja, ja sei de Palocci, e do compromisso com a responsabilidade fiscal e com a democracia, etc, etc, etc. Mas o meu instinto me diz que tem alguma coisa muito errada nessa tremenda euforia, nessas expectativas todas. Lula (nem mesmo Deus se virasse presidente) nao vai poder fazer o que prometeu, e pode se virar para a demagogia e o populismo mais aberto. E logo essas amizades, ne? Chavez y Fidel. Nao sei. Tambem muita coisa pode dar certo e o Brasil terminar de convertir-se num pais estavel. Mas acho que agora e vital que as pessoas alertem e que falem tambem dos riscos.
Ah, Eduardo. Sua descripcao da Havana e muito leal a verdade. Muito obrigado.
Eduardo
É extremamente revelador as duas postagens anteriores sobre o mesmo tema: Gui nos fala em "enjoy the party!!!" num mix de alienação-autohipnótica com embriaguês ideológica; Eduardo nos fala em realidade, sofrimento e esperança(a espera na confiança). Como pode a mesma coisa provocar "reações" tão diversas? A única resposta para tal dilema será uma e somente uma: um deles perdeu (ou seria, abdicou?) (d)aquele liame que nos une de forma indissociável(?) ä realidade, trocou a realidade pelo sonho utópico (do grego "lugar nenhum"); o outro sente, pensa e age como um indivíduo concreto, real e não como como uma "idéia".
"Quando os homens estão dormindo, cada qual está no seu mundo. Quando estão acordados, todos estão no mesmo mundo". Fugir para o sonho é a meneira mais fácil de se furtar ao dever que nos é imposto pela realidade: o da responsabilidade de ser nós mesmos, a responsabilidade autoral de arcar com o peso da existência individual, renunciar a ilusão de uma vida vazia e falsa, calcada na tranquilidade e segurança do sonho grupal ou no solipsismo do seu mundinho hermético, cercado da vacuidade, do mundo das brumas dos sonhos alheios.
" — Você acredita em Deus?
— Respondo como Henry Miller: o problema não é se eu acredito em Deus, mas se Deus acredita em mim.
A realidade de Deus é para mim uma evidência invencível, na medida em que Deus se identifica com a infinitude metafísica que é o fundamento de toda realidade possível. As pessoas hoje em dia têm alguma dificuldade de compreender isso porque se deixaram enganar por falsas lógicas (como a de Georg Cantor, por exemplo) e acabaram por perder todo sentido da infinitude metafísica.
A resposta de Miller significa que nossa vida é uma história escrita tanto por Deus quanto por nós mesmos, e que no enredo você corre o risco de escolher o papel de farsante, de mentiroso, de vigarista. É importante ter idéias verdadeiras, mas isso não é tudo. É preciso também viver no verdadeiro, isto é, não fingir que você sabe o que não sabe, nem que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se você não é fiel a essas duas exigências, sua vida é uma mentira e o conteúdo pretensamente verdadeiro de seus pensamentos não é senão uma parte da farsa total - aquela parcela de verdade de que a mentira precisa para se tornar mais verossímil. Aí Deus não pode acreditar em você, porque, no fundo, você não existe." Olavo de Carvalho.
Um abraço fraterno; MARCUS PIMENTA
"Aprimore seus dons, aceite-os como a pedra fundamental para a reconstrução do lar humano. Não tenha vergonha de querer ser bom, de acreditar na bondade, na corajosa bondade de espírito, na dadivosa inteligência.
Por fim, um pequeno teste para se saber se realmente o Final do Mundo irá lhe acontecer:veja se você é capaz de distinguir entre o certo e o errado, entre o bom e o ruim.
Se você é capaz de fazer essa distinção veja se é capaz de lutar pelo certo e pelo bom. Caso se convença de que é incapaz em ambos os casos veja, por fim, se é capaz de sentir culpa por isso. Se disso você for capaz há luz no final do túnel.
E tenha muito cuidado com quem pretender aliciá-lo para abandonar inclusive sua culpa. Que Deus [em Sua infinita misericórdia] nos abençoe e nos proteja tanto de nossa vitória quanto de nossa derrota".
Ronaldo Castro
"Quando uma pessoa não acredita em Deus, não é que ela não acredita em alguma coisa, é que ela acredita em qualquer coisa". Peço desculpas por não sitar o frasista - me esqueci -, mas esta pequena sentença desnuda estes modernos tempos de nublamento da inteligência. Um abraço fraterno. P.S.: A sentença do comentário anterior que não foi dada a fonte é de Heráclito.
Edu, mandou bem neste site, me fez lembrar dos nossos dias com nosso velho amigo. É exatamente isso, claro, na tua maneira de escrever. As vezes, imagino você também, penso como está nosso viejo amigo. Sem esquecer, há duas maneiras de conhecer Cuba, ou há duas maneiras de conhecer qualquer lugar, apenas visitando-o ou realmente sentindo o lugar, buscando conhecer sentimentos, mastigando e digerindo o ambiente e não apenas cheirando-o e achando o cheiro agradável.