Em 2002, o cinema brasileiro vendeu cerca de sete milhões de ingressos, sendo 3,1 milhões deles para ver Cidade de Deus, que já se tornou o filme brasileiro mais visto dos últimos 12 anos. Essa constatação, juntamente com o fato de que outros dois milhões de espectadores foram dos filmes de Xuxa (contados apenas os dados referentes a 2002) - Xuxa e os Duendes, lançado no final de 2001, e sua continuação Xuxa e os Duendes 2 - No Caminho das Fadas, lançado há um mês - mostra que muito da força do cinema brasileiro está em poucos títulos. Enquanto três produções abarcaram mais de cinco milhões de pessoas (72% do total do público), outras 29 não levaram mais de dois milhões de pessoas aos cinemas. Se o ano não foi desastroso em termos absolutos, o foi no que tange à concentração de público, deixando a maioria dos filmes ao léu, sem distribuição, visibilidade e exibição - o que deixa um filme sem razão de existir.
O fenômeno Cidade de Deus já foi objeto de análise aqui no Digestivo por diversas vezes, inclusive minha, mas convém reiterar sua posição surpreendente de maior público da Retomada do cinema brasileiro, além de sua capacidade de chacoalhar o país em debates fervorosos, com gente endeusando-o e outras pessoas execrando-o por sua suposta "falta de ética". A fita de Fernando Meirelles, que antes do sucesso havia apenas dirigido em parceria Menino Maluquinho 2 e Domésticas, O Filme, terminou o ano com mais de 3,1 milhões de ingressos vendidos, superando megaproduções americanas como Sinais e Star Wars 2 - Ataque dos Clones. Cidade de Deus só perdeu em público em 2002 para Homem-Aranha, O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel, Homens de Preto 2, Scooby-Doo e, mais recentemente, Harry Potter e a Câmara Secreta. Independente do que cada um pensa do filme, é um feito digno de configurar na recente história do cinema brasileiro.
Além de Cidade de Deus, convém relembrar alguns dos melhores filmes nacionais exibidos no decorrer do ano passado nos cinemas, uma safra de alta qualidade que deve ser vista por quem gosta de cinema.
Bom retorno de crítica e público, dois dos que considero dos melhores filmes lançados em 2002 no Brasil: Abril Despedaçado, de Walter Salles, e O Invasor, de Beto Brant. São produções antagônicas em sua estética, mas absolutamente competentes e ousadas em sua concepção. A primeira é um típico representante da "cosmética da fome", termo cunhado pela estudiosa Ivana Bentes que se popularizou com a estréia de Cidade de Deus; o outro faz parte da nova linhagem de cunho social, que se foca no caos urbano para discutir a realidade social do Brasil.
Em Abril Despedaçado, uma das coisas que mais salta aos olhos do espectador é a exuberante fotografia. Walter Carvalho, seu diretor de fotografia, utilizou filtros que ressaltam as cores azul e marrom, uma do céu e outra da terra. No sertão árido nordestino, tais características são acentuadas e dão à imagem a transparência de uma grande pintura. Cor e brilho fundem-se e chamam a atenção para o "cenário", que não deixa de ser uma extensão do drama vivido pela família Breves.
Além disso, a câmera de Walter Salles assume posições inusitadas, ora apelando para o close up (no rosto de Tonho, banhado de suor do trabalho na moenda da cana, e na expressão viva e inocente de Pacu, quando voando e sonhando sobre o balanço), ora para a panorâmica ou para a imagem estática ao longe, compondo um cenário homogêneo e único.
Com Pacu, o narrador da história, a câmera por vezes busca o olhar subjetivo: por seus olhos vemos os fatos. É assim em seu final grandioso e trágico, quando a morte irá trazer a redenção. Claro que um filme só consegue o resultado final, tanto estético quanto narrativo, pontuado com uma trilha sonora digna de uma tragédia grega no sertão. Não há vozes, apenas a música instrumental que soa límpida e dita o ritmo das nossas emoções.
Impossível não destacar a força poética que o filme adquire com a decorrência da história. O drama que o protagonista enfrenta, dividido entre o dever de esperar a morte ou fugir para viver o amor, está rodeado de metáforas e simbologias.
Sua contrapartida está muito bem encarnada em O Invasor, sobre o qual neste espaço já escrevi.
Parceiro de Walter Salles que agora debuta na direção é Karim Aïnouz. Sua estréia, o longa Madame Satã, foi absolutamente válida e merecedora de honras e do rótulo de promessa do cinema nacional. Assim como com Sérgio Machado, que pesquisou e montou o poético documentário Onde a Terra Acaba, Salles e a Videofilmes, sua produtora, deram apoio técnico e dicas valiosas de direção. Madame Satã é um prodígio de imagem (a fotografia foi de Walter Carvalho, o antigo parceiro de Salles e hoje o homem que mais entende de fotografia cinematográfica no mundo), um primor de roteiro e interpretação, que não caiu nas soluções fáceis típicas hollywoodianas e se fez intenso e espetacular. Madame Satã não teria a excelência que tem se não fosse, além de direção, montagem e fotografia impecáveis, a presença de Lázaro Ramos como o personagem-título. Por seu papel o jovem ator já recebeu diversos prêmios no Brasil e no mundo.
Da Lapa carioca da década de 30, passamos às praias do Rio Grande do Sul com o talento inaugural em longas de Jorge Furtado. O autor de Ilha das Flores e veterano curta-metragista escreveu e dirigiu a comédia romântica juvenil Houve Uma Vez Dois Verões. Filmado no formato digital em Porto Alegre e em praias do litoral gaúcho, é uma comédia romântica envolvendo dois adolescentes e a descoberta do sexo. Chico e Juca são amigos e passam o verão na praia. Um dia, Chico encontra uma guria, Roza, e acaba por perder a virgindade com ela na praia. Ele se apaixona, mas no fundo ela é uma vigarista que usará de uma falsa gravidez para lhe tomar dinheiro. A situação parece banal, mas Furtado tem o talento imperioso de imprimir à fita um ritmo sólido, com piadas bem colocadas, faro raro para as palavras certas e o humor sensível e eficaz, sem cair na baixaria. A trilha sonora é de bandas do Rio Grande do Sul e ver a lindíssima e charmosa atriz Ana Maria Mainieri falando com o típico sotaque gaúcho é sedutor e cativante. O filho do diretor, Pedro Furtado, traz os melhores momentos de humor do filme.
Do Sul ao Sudeste, chega-se a São Paulo, não aquela cidade cantada por Caetano Veloso, mas sim a retratada por Ugo Giorgetti em O Príncipe. Depois de sua saudosa fita sobre os bons tempos do futebol, Boleiros, Giorgetti escreveu e filmou outra obra que pode ser considerada nostálgica. De volta a São Paulo depois de 20 anos em Paris, Gustavo encontra uma outra cidade, decadente e em ruínas. Sua expressão quase sem expressão apenas circula pelos bairros da cidade, revendo antigos amigos, cada um debandado para um lado, mas todos desiludidos e descontentes. Donos de espíritos exaltados por um mundo melhor na juventude, Gustavo e seus companheiros chegam ao século 21 com o espírito do pragmatismo e do conformismo. Ilustrativo desse sentimento é a dica que o amigo "agitador cultural" dá a ele: relembrando ser Gustavo um estudioso de Maquiavel, lhe sugere cursos para executivos levando idéias do autor ao mundo dos negócios. No fundo, O Príncipe é um exercício nostálgico e um tanto cético para uma cidade esquecida e hoje colorida pela fuligem da industrialização e dos escapamentos dos automóveis.
Contraponto a essa cidade de concreto mostrou a cineasta Suzana Amaral. Idealizadora de um cinema autoral e simples, filmou no interior de São Paulo Uma Vida em Segredo. Através da jovem e inocente Biela, a pacata vida do interior nasce como uma alternativa à freneticidade do mundo moderno. Pode ser visto também como uma metáfora da discussão que tomou o cinema brasileiro atual. Suzana Amaral, com Uma Vida em Segredo, estabelece a possibilidade de se ter um cinema sem efeitos e fórmulas hollywoodianas - resultado da modernização e do avanço tecnológico - capaz de contar uma história com sensibilidade e ritmo, sem perder a inocência e o sentido de arte da produção audiovisual.
Outro paulista que merece destaque no ano que passou é o policial baseado em livro de Tony Belloto, Bellini e a Esfinge, de Roberto Satucci. Seus maiores trunfos: uma Malu Mader pra lá de sensual no papel da prostituta Fátima e cenas noturnas realizadas na Rua Augusta.
2002 marcou o apogeu do documentário brasileiro nos cinemas. Foram nada menos que 11 novos filmes lançados em pelo menos uma sala de cinema no ano passado. O formato se viu representado com excelência por uma tríade que uniu destreza de direção com temática diversificada.
Edifício Master parte do pequeno para se atingir o universal. Focando-se no cotidiano de moradores de um condomínio residencial de classe média do Rio de Janeiro, o filme vai aos poucos revelando mundos distintos e seres humanos aparentemente simplórios, mas com tamanha riqueza de espírito, personalidade, histórias de vida, lição de coragem etc.
Janela da Alma é mais filosófico e, em termos de público, foi a grande sensação da temporada - mais de 130 mil pagantes. Traz uma reflexão acerca do olhar e da cegueira, com depoimentos de gente de alto calibre como o cineasta Wim Wenders e o escritor português José Saramago. As idéias no filme inseridas casam com imagens bem captadas e editadas, além de personagens que narram situações vividas ligadas à questão do ver/não-ver.
Em termos de impacto, nada foi mais estarrecedor do que a experiência de se assistir a Ônibus 174. O filme de José Padilha mergulha no caso do seqüestro de um ônibus no Rio de Janeiro, ocorrido em junho de 2000, que culminou com a morte de uma refém e o posterior assassinato por parte da polícia do seqüestrador Sandro do Nascimento. Mesclando imagens veiculadas na televisão ao vivo no dia do episódio a depoimentos e a reconstituição da história de vida de Sandro, desde ter presenciado a morte a facadas da mãe a ser um dos sobreviventes do massacre da Candelária, Ônibus 174 aproxima-se de um estudo sociológico em forma de imagens. Parte o coração ver os estudiosos citar que Sandro e os meninos de rua em geral são os invisíveis da sociedade, aqueles que queríamos que não existissem e que agimos como tal, fechando o vidro do carro ou virando o rosto. Eles só existem quando fazem o que Sandro fez. Ônibus 174 é chocante, construído como documentário, causa maior impacto ao vermos que o que ali acontece é obra da realidade e não da ficção. A melhor trilha sonora para o filme seria O Meu Guri, de Chico Buarque. Sandro do Nascimento foi o guri da sociedade brasileira.
Expectativas para 2003
Para este ano, espera-se que o cinema brasileiro tenha o respaldo do público e que as produções que já geram expectativas possam ter oportunidade de mostrar seu valor, assim como os filmes independentes que sofrem com o problema da falta de exibição. Como o mercado exibidor não deverá estar tão inflado quanto esteve em 2002, com menos blockbusters a estrear em mais de 500 salas e ocupar quase todo o circuito, deverá haver maior espaço e chances para o cinema brasileiro. A confirmada estréia de filmes populares apontam para menor concentração de público em determinados filmes, e o novo governo - mais preocupado com a realidade social nacional - deverá acender maior interesse ao filmes que tratem disso abertamente. Sem contar com a participação da Ancine, que em seu segundo ano já terá condições mais concretas de brigar por seus anseios de "industrialização" do cinema no Brasil. O panorama inicial é de que teremos um ano com filmes de peso capazes de colocar o cinema brasileiro no caminho do sucesso junto a sua população. Em termos de qualidade, já se provou ser possível crescer; torçamos para que a burocracia da distribuição e exibição seja amenizada e possamos ver a nossa cara de novo e cada vez mais nas telas.
Eis alguns filmes que estréiam nesse primeiro semestre:
Separações, de Domingos Oliveira Deus É Brasileiro, de Cacá Diegues Cristina Quer Casar, de Luiz Villaça Seja o que Deus Quiser, de Murilo Salles Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes Carandiru, de Hector Babenco Durval Discos, de Anna Muylaert O Homem do Ano, de José Henrique Fonseca Gaijin 2, de Tizuka Yamazaki Tempestade Cerebral, de Hugo Carvana 1972, de José Emílio Rondeau Os Narradores de Javé, de Eliane Caffé Desmundo, de Alain Fresnot Dois Perdidos numa Noite Suja, de José Joffily O Homem que Copiava, de Jorge Furtado
Gostei do exercício de revisão. Faz-nos retonar às locadoras para assistir novamente vários filmes nesta perspectiva de comparação.
Mas faria uma pergunta. Quais os reais motivos para concentração tamanha de público em poucos títulos brasileiros? Amplio a questão se colocarmos como parâmetro os títulos estrangeiros que, certamente, tiveram distribuição de público maior.
Talvez os números no começo do texto pudessem também trazer as razões para tais distorções, demonstrando como realmente funciona a "cadeia" cinematográfica brasileira, onde o marketing e os distribuidores, em minha opinião, fazem uma enorme diferença.
E de forma subjetiva, seria interessante analisar também a composição temática dos títulos brasileiros e estrangeiros, o que deve influenciar também a decisão do público.
No mais, sempre é bom revisar anos anteriores, mas pensando em melhoras para os anos seguintes. Falta-nos estrutura e conhecimento de mercado para alcançarmos a competência mercadológica de outros países. E isso só vem da análise profunda destes números.