A memética teve uma origem muito pouco glamourosa: ao invés de uma grande obra inaugural, seu fio condutor seria pela primeira vez proposto en passant, em um livro sobre biologia. Richard Dawkins, em O Gene Egoísta, defende a desagradável idéia de que o comportamento e as paixões humanas são resultados da ação de genes com o único intuito de serem passados adiante. O homem, portanto, nada mais seria que uma artimanha daquelas moléculas de DNA de preservarem e espalharem sua informação. Dawkins propõe, em seguida, mais como uma provocação do que qualquer outra coisa, que um modelo parecido - de informação competindo, mutando e se replicando - poderia ser aplicado para o conhecimento humano: as idéias, também, se propagam, algumas com mais sucesso que outras, competem entre si, sofrem mutações a cada vez que se reproduzem e combinam-se umas com as outras gerando novas idéias. A fértil analogia de Dawkins acabaria por desenvolver-se, ironicamente pelos mecanismos por ela mesma descritos, para muito além de suas intenções. Até hoje, na verdade, Dawkins ainda é um tanto ambivalente quanto ao ramo de estudo e aspirante a ciência que acabou por criar.
(Um parêntese rápido, só para que se faça justiça: a memética já estava pronta na ficção de Burroughs, em The Ticket That Exploded, um livro anterior a O Gene Egoísta e ainda sem tradução - que eu saiba - para o português. Burroughs explora, neste romance do começo da década de 60, as angústias que hoje permeiam a discussão sobre memética e como conviver com ela. O curioso é que o livro é uma exploração da invenção da fita cassete e os gravadores disponíveis para o usuário doméstico, itens cujos significado e efeitos sociais são ignorados nos dias de hoje.)
É claro - e isto é algo que é muitas vezes esquecido - que a capacidade da informação de se propagar já era conhecida antes do Gene Egoísta, assim como todos estamos familiarizados com os mecanismos com que isto acontece, tendo ou não lido sobre o assunto. A própria palavra "propaganda" já evidencia em si a idéia de propagação. A memética não foi, de forma alguma, uma descoberta ou uma teoria, mas uma analogia interessante que tenta se transformar em um método de análise; dizer, como eu já vi mais de uma vez, que uma certa idéia se espalha "porque é um meme" não faz o menor sentido. O que a memética nos traz é uma linguagem em que se pode discutir esmiuçadamente como que estes processos conhecidos ocorrem: listar os recursos, como memes que utilizam de rimas ou sons agradáveis, invocação de efeitos emocionais intensos ou ligações forçadas com outros memes para infectar o hospedeiro; memes que, uma vez nele, protegem-se impulsionando reações violentas a idéias contrárias (o caso do fanatismo); memes que tomam conta do hospedeiro a tal ponto que sua vida passa a girar em torno de sua propagação (Testemunhas de Jeová, Krishnas e marxistas são exemplos clássicos). Além disso, memes que se atraem e cooperam entre si, formando "organismos" maiores de informação; um exemplo clássico de tal fenômeno é o gigantesco organismo representado pelas crenças cristãs.
Nos últimos quatro ou cinco anos, vem-se assistindo um esforço contínuo para dar à memética uma base científica mais rigorosa. Particularmente notável é o trabalho de Aaron Lynch, cujo artigo-chave, "Units, Events and Dynamics in Memetic Evolution" inspirou agitadas discussões sobre os limites até os quais tal rigor seria saudável para a teoria, ou até mesmo válido. Lynch define um elemento de memória que chama de "mnemon", evitando a imprecisão e restrições de "informação" e "idéia" (hábitos, atitudes, associações de idéias, disposições emocionais, vícios e mesmo sintomas psicóticos, diz ele, também são fenômenos mentais auto-replicantes que devem ser considerados); a partir daí, apresenta uma linguagem formal para a propagação de mnemons, explicitamente inspirada naquela usada para reações químicas, estuda um número de casos especiais e acaba por apresentar um conjunto de equações diferenciais parciais modelando a população de hospedeiros de um meme versus o tempo em um sistema composto de apenas dois memes - equações um tanto ameaçadoras, que nos fazem pensar na complexidade e na marcante não-linearidade de um sistema com quantidades imensas de memes, como uma roda de conversa, a internet ou mesmo toda a assim chamada "ideosfera". Meme, aliás, também recebe uma definição exata: A memory item [mnemon] , or portion of an organism's neurally-stored information, identified using the abstraction system of the observer, whose instantiation depended critically on causation by prior instantiation of the same memory item in one or more other organisms' nervous systems. ("Sameness" of memory items is determined with respect to [...] the abstraction system of the observer.) Encontra-se, inclusive, estudos de memética aplicada: como exemplo, considere-se o estudo de Paul Marsden, datando de 2001, Is Suicide Contagious? A Case Study in Applied Memetics.
Algumas dificuldades enfrentadas pela memética
A memética, como todo novato no universo das teorias científicas e "científicas", precisa passar por um grande número de provações antes de ser comumente aceita, algumas das quais sem nenhuma relação com sua validade. Dois dos obstáculos em seu caminho, inclusive, se encontram em pontos aparentemente opostos: por um lado, há os que defendem - eu incluso - que uma teoria para algo tão complexo e sutil não deve buscar rigor matemático e definições excessivamente abstratas, ou acabará por distanciar-se tanto da riqueza de fenômenos do mundo real que perderá qualquer utilidade; por outro, há os que reclamam - eu novamente incluso - da forma pouco rigorosa com que é freqüentemente tratada. A aparente contradição se explica pela adoção da palavra "meme" por marqueteiros, moderninhos e criaturas semelhantes como um hype sem muito sentido, utilizando-a prolificamente sem jamais se preocupar em ler os trabalhos ou tentar entender realmente do que se trata. Muito da má-fama da memética em certos círculos se deve unicamente a estes abusos.
A dificuldade principal para a aceitação da memética, apesar disso, não está em nada relacionada com sua validade ou - ai! - cientificidade: muitas das reclamações a seu respeito se referem à sua postura não-humanista e relativista, em que as pessoas são controladas pelas suas idéias e não o contrário, e o único valor de uma crença estaria em sua capacidade de propagar-se. Mais de um autor relacionou, guiado por estas impressões, a memética com a filosofia dita pós-moderna, e muitos a repudiam veementemente em bases menos científicas que morais. Para mim, faz todo o sentido do mundo que uma testemunha de Jeová seja uma pessoa que foi infectada por um meme bastante virulento que a impulsiona a andar de porta em porta tentando passá-lo adiante: mas diga isso a ela, e veja como reage. É bastante desagradável olhar para as suas próprias crenças como idéias egoístas cujo único fim é o próprio espalhamento e sobrevivência, e que apenas se utilizam de você e lhe controlam tentando infectar outras pessoas. As próprias palavras utilizadas para descrever este processo - infectar, hospedeiro, virulência - espelham esta imagem de parasitismo e perda da autonomia. E, no entanto, há tantas coisas erradas nesta interpretação que é até difícil saber por onde começar.
Antes de mais nada, e reforçando algo já dito anteriormente: a memética não é uma teoria, rigorosamente falando, mas uma estratégia de análise; quando me refiro a ela como uma "teoria", faço-o com pouco rigor e mais pela força do hábito. Desta forma, ela não afirma que todas as crenças possíveis tem o mesmo valor e faz assim um elogio do relativismo, mas simplesmente exclui a questão do valor como irrelevante para seus objetivos - da mesma forma, por exemplo, que uma análise sintática desconsidera o significado das sentenças estudadas. Para a memética, é perfeitamente possível que uma afirmação seja objetivamente verdadeira ou falsa - o que acontece é que elas se propagam da mesma forma, dependendo dos mesmos recursos em sua competição. Quem vence é o candidato com o melhor marqueteiro, não aquele que diz coisas coerentes com a realidade. A objeção de que a memética seria uma teoria anti-humanista, por apresentar o mundo em que os homens são escravos de suas idéias, e não o contrário, por sua vez, é mais um engano ocasionado pelo homúnculo de Descartes. Tal objeção apóia-se numa suposição implícita de que as crenças de uma pessoa seriam algo externo a ela, e não uma parte fundamental do sujeito. Quando as idéias de uma pessoa "fazem" - o motivo das aspas ficará claro adiante - com que ela tome uma atitude, foi a pessoa que tomou tal atitude, pois suas idéias não são distintas dela mesma. Finalmente, há um erro menos vulgar, mas igualmente perigoso, que consiste em atribuir intencionalidade a um sistema baseando-se em seu comportamento, e não em sua ordem interna: uma idéia não pode ser egoísta, não pode ter a intenção de se propagar, não pode usar as pessoas para o quer que seja, porque ela é apenas uma idéia, não um ser consciente; se tais expressões são apresentadas, é mais buscando a brevidade e a leveza que se falando literalmente. A propagação de memes não é algo intencional da parte do memes, é apenas algo que acontece; da mesma forma que a evolução das espécies não tem um fim, mas apenas acontece; da mesma forma que uma pedra não tem a intenção de cair; a queda da pedra simplesmente acontece. É bom reiterar, além disso, que uma teoria ser desagradável em nada impede que ela seja válida.
Finalmente, há uma última dificuldade, que de certa forma engloba todas as outras: a memética é uma 'teoria' jovem. O que vemos, hoje, são apenas os primeiros passos, os acertos e erros do que pode vir a ser, no futuro, um campo de estudo embasado e respeitado. É possível que estejamos vendo o "nascer de uma nova ciência", como tanto se diz por aí sobre várias coisas; é possível, também, que se descubra que se trata de uma teoria elegante, porém inútil, com pouquíssimas aplicações práticas - o que parece ter acontecido, por exemplo, com a Vida Artificial. A memética é, por enquanto, apenas uma promessa - mas que promessa instigante, e que fantástica teoria ela pode vir a ser!
Um dos melhores artigos introdutórios sobre memética que encontrei na web em português. Balanceado o bastante para respeitar as inúmeras incógnitas e ainda assim vanguardista. Adrian Leverkuhn está infectado pelo metameme, e muito bem infectado diga-se de passagem. (Dê uma alavanca à memética e ela revolucionará as ciências? =)