Há poucos dias o jornal O Estado de São Paulo publicou uma matéria com a seguinte chamada: A felicidade, numa fórmula matemática. Pesquisadores ingleses montam equação que mede o estado emocional. O artigo ainda dizia: se você é feliz e tem consciência disso, então seu estado de ânimo é o resultado de P+5E+3A. É a fórmula da felicidade. Havia um teste a responder e quanto mais pontos você fizesse, próximos de cem, mais feliz seria. Fiz o teste: 50 pontos, ou seja, estou no meio, mas longe de ser feliz.
O tema da felicidade é quase que abandonado por pensadores sérios da atualidade. Agora temos um que se aventurou no assunto. Eduardo Giannetti é um escritor corajoso. Quem ousaria, na atual conjuntura das excessivas e calhordas publicações de auto-ajuda, escrever um livro cujo tema seja a felicidade?
Outra questão interessante: quem ousaria comprar um livro cujo título, grafado em preto sobre um fundo abóbora, seja Felicidade? Fico imaginando uma legião de leitores mal-avisados, em busca de uma saída fácil para suas desgraçadas vidas cotidianas, comprando este livro e se decepcionando com sua leitura difícil para um leigo.
Pois bem... O livro existe e o que interessa é debater parte de seu conteúdo. Trata-se de Felicidade: diálogos sobre o bem-estar na civilização, de Eduardo Giannetti, publicado pela Companhia das Letras.
O livro é escrito em forma de diálogos. O termo Diálogo apresenta-se como uma forma literária na qual o autor procura transmitir idéias através de uma discussão de viva voz. Os exemplos mais antigos dessa forma são os diálogos de Platão, seguidos pelos de Xenofonte e mais tarde pelos de Aristóteles. No período tardio da literatura grega o escritor Luciano transformou essa forma literária num veículo para suas sátiras. Na literatura romana os melhores exemplos são os tratados de Cícero e Tácito (autor de Dialogus de Oratoribus, um diálogo sobre as causas do declínio da oratória).
No livro que ora tratamos, o autor reúne quatro ex-colegas de universidade que passam a se reunir para discutir questões relativas à problemática da felicidade no atual estágio de progresso civilizatório em que nos encontramos. São eles: Leila, estudiosa de ética clássica, militante do movimento ecológico, mãe de três filhos e professora universitária; Otto, economista liberal bem-sucedido, positivista e amante do golfe; Alex, filosófo analítico, ex-marxista que ganha a vida como roteirista; Melo, erudito historiador das idéias que leu demais e acha-se em dificuldade para acreditar em qualquer coisa, atualmente desempregado.
A partir de um primeiro encontro o grupo decide estabelecer uma regra básica para o debate: a cada encontro um dos participantes escreveria um texto e destribuiria uma bibliografia básica para ser discutida no próximo encontro. No cerne do conjunto dos debates firma-se basicamente a seguinte questão: até que ponto a civilização moderna tem promovido ou dificultado a busca da felicidade? Para resolver a questão (ou ao menos tensioná-la) é chamado um grupo de pensadores tais como Giordano Bruno, Baco, Kant, os iluministas, Freud, Nietzsche, Marx, Mill, Weber, entre tantos outros.
É simplesmente impossível resumir o livro em apenas poucas páginas, dado o grau e quantidade de questões que vão surgindo ao longo dos diálogos. Aos pensadores e suas idéias acrescenta-se, ao longo do livro, resultados de pesquisas sobre o que gera a felicidade ou o que a limita. Da realização profissional e amorosa à busca da felicidade pelo uso de drogas - todas tentativas meio que desesperadas - o livro discute o assunto de forma interessante e abrangente. Mas... para o leitor que busca encontrar qualquer espécie de discussão que o leve à uma solução segura, avisamos, pode tirar o cavalinho da chuva, pois o livro só aumenta nossas inquietudes.
As conclusões são variadas: nem a razão, nem o delírio podem nos leva à terra prometida; a riqueza, segundo pesquisas, também não é nenhuma tábua de salvação (embora proporcione alguma alegria, também gera mais incertezas e requer mais atenção - que por si inibe o prazer); os materiais tecnológicos ultramodernos também não proporcionam aumento da felicidade, não produzem o doce sentimento da existência. Ou seja, estamos perdidos no mundo que construímos. Nosso projeto civilizatório não pensou no essencial: a busca da felicidade humana. Se pensou, fracassou, pois estamos em meio a um mundo atroz, ainda perdidos nessa busca do mais elementar sentimento humano: a felicidade.
Aumentar o nível tecnológico do planeta resolveria nossa principal tensão existencial que é, afinal, vivermos em um constante bem-estar? Veja-se as seguintes questões colocadas pelo livro: I - será que os gostos e preferências dos consumidores não vêm sendo sistematicamente distorcidos por um bombardeio de estímulos e uma máquina de propaganda mais ferozes que qualquer poderio militar? II - a TV a cabo chegou ao Butão. De agora em diante, as crianças budistas estão expostas à radiação colorida da Cartoom Network e MTV. Em breve, os jovens butaneses estarão freqüentando shows de rock, comendo nos fast-foods e protestando contra a globalização - lutando com os jovens de todo o planeta por um mundo melhor. É patético.
Se você perguntar para um grupo razoável de pessoas o que traria felicidade, você obteria a resposta de que o dinheiro resolveria tudo, ou ao menos, ajudaria mais que tudo a trazer felicidade.
Segundo o livro de Giannetti, baseando-se em pesquisas e material filosófico, político e sociológico, a conclusão dessas pessoas está errada. Não é o dinheiro que traz felicidades.
Atente para a grande questão: o comercio internacional de drogas movimenta cerca de 400 bilhões de dólares por ano, ou seja, oito por cento do fluxo mundial de comércio ou o equivalente do turismo e petróleo. Quem consome esta droga? Sabe-se que a maior parte desta droga é consumida por pessoas que têm um nível de vida acima do médio. Afinal, riqueza produz realmente felicidade? Se sim, porque essa busca desenfreada por uma evasão química auto-destrutiva? Quem recorre às drogas está buscando algum alívio ou paraíso artificial, ou seja, está em busca de meios químicos que proporcionem o que o seu ambiente social e os seus próprios recursos espirituais não são capazes de satisfazer. O sujeito toma a droga e pronto - não há mais do que reclamar. Resignação e êxtase. Ou seja, o pão e circo pós-moderno do novo império romano.
Segundo Adam Smith, para a maior parte das pessoas ricas a principal função da riqueza consiste em poder exibi-la. Ou seja, só interessa a posse do que pode despertar inveja. Então, se os pobres rissem e escarnecessem da riqueza e da ostentação dos ricos, o circo desabaria. Desse ponto de vista, se o rico não tiver seu expectador ele se tornará um frustrado permanente.
Para Smith, a verdadeira felicidade mora mais na imaginação das pessoas e na obtenção de uma certa tranqüilidade de espírito do que na satisfação ilusória da vaidade associada a níveis maiores de renda e consumo.
Esta é uma das afirmações do livro. Elas são variadas, esquentam o debate entre os personagens, fazem nossa cabeça refletir sobre o mundo que construímos, sobre a vida que construímos, sobre os desejos que achamos que podem nos levar a um tipo de satisfação perfeita. Não resolvem muito, não nos induzem a seguir uma trilha, mas produz a tensão essencial que precisamos para não nos deixar enganar por fáceis soluções.
Infelizmente a pesquisa sobre o tema a partir das tensões que a literatura e as artes em geral trazem não é feita, ficando essa dívida do autor para com seus leitores. Quem sabe num próximo volume o assunto não poderia ser discutido à luz da poesia, do romance, das temáticas musicais e operísticas?
De qualquer forma, vale a pena entrar em contato com o vasto universo de idéias sobre a felicidade, agrupadas de forma inteligente pelo livro de Giannetti.
Quando o assunto é felicidade, lembro-me sempre de uma frase do psicanalista Wilhelm Reich (aquele que afirmava que a função do orgasmo é produzir alegria, saúde psíquica e um contato com a energia cósmica). Ele dizia que viver na plenitude é abandonar-se plenamente ao que se faz, pouco importa que se estude, se ame, se dirija um carro, se faça um passeio ou plante um jardim. O que importa é o mergulho total no que se faz, mergulho apaixonado e, até, pode-se dizer, inconsciente.
Dessa forma, a felicidade existe somente e principalmente para aqueles que não sabem que são felizes. A máxima de Fernando Pessoa se aplica aqui: para ser feliz é preciso não saber-se feliz.
Vou terminar este texto com um poema do escrito Heinrich Heine, já que o autor nos deixou em falta nessa área. Trata-se de um poema que dá o que falar, intitulado FELICIDADE. Vamos a ele:
FELICIDADE
Oh, que dama fácil, a felicidade!
Mal se acostuma num lugar, ela já sai...
Afaga teu cabelo, cheia de vaidade,
beija-te às pressas, bate as asas e se vai.
Dona infelicidade, ao contrário,
te prende ao coração a ferro e corda.
Para ir embora, diz não ter horário,
senta-se contigo à cama e borda.
Desculpe discordar do início do texto. Mas a felicidade é discutida por pensadores serios da atualidade sim. André Comte-Spoville, filósofo frances, escreve sobre ela em Felicidade Desesperadamente. Um ensaio delicadissimo, e ainda aborda o assunto em Bom dia, Angustia! e ainda podemos ver a Felicidade em vários títulos do Dalai Lama. Além disso, temos atuais (sempre!) A arte de ser feliz, de Schopenhauer, e A Arte da Prudência (ou Oráculo Manual) de Baltazar Gracian. Todos reeditados no ano passado em formatos e preços populares (cerca de 10,00 cada). E por aí vai. A felicidade é atual e sempre. Porque é uma busca constante do ser humano. Por ela gira as únicas certezas humanas, sua realidade e seu destino (se há).
Quanto à fórmula da felicidade, Epicuro, Aristotéles, o próprio Schopenhauer descrevem a seguinte fórmula: Paz de espírito, Serenidade de espirito e Sáude, além das necessidades naturais satisfeitas e outros mimos nem tão necessáriamente naturais assim, mas importantes para a obtenção de certa felicidade, mesmo que temporária. Enfim, a ausência de dor acrescentada de paz, serenidade e boa saúde já é uma bruta felicidade! A descoberta do tesouro pode estar aí: na consciência dessas coisas simples (as vezes nem tanto!). Enfim..
abraços!
Lucia Helena
Cara Lucia Helena,
obrigado pela leitura do texto e pelas sugestões. Só não gostei da inclusão do Dalai Lama, não o vejo como um pensador, aliás as posturas dele me desagradam. Mas a felicidade... Como dizia Nietzsche: "a dor diz "- passa!", mas a alegria quer toda a eternidade".
abraço,
jardel
Adoro todos os livros dele, são especiais e sempre tem algo mais a ensinar, já li Auto-Engano, Nada é Tudo e agora estou lendo Felicidade, ele além de um excelente economista também escreve muito bem.Adoro sua maneira de escrever sempre colocando pensamentos e grandes nomes da literatura e da história mundial. Eduardo Giannetti PARABÉNS!
Li o livro recentemente e foi uma surpresa incalculável. Sou portuguesa e tenho (confesso que tento despegar-me deste defeito há muito) imensas dificuldades em ler livros em português do Brasil. O que equivale a dizer que li muito pouco da literatura brasileira. Mas este senhor soube pegar em mim com tamanha cautela, que me deixou soberbamente envergonhada por esta minha inépcia tonta! É, sem dúvida, uma obra de referência da filosofia contemporânea. E, já agora, permita-me discordar, em relação à falta de poesia... esse poema que transcreve não diz mais do que um verso repetido no texto, em bom português: "Tristeza não tem fim, felicidade sim".
O Eduardo Giannetti é um craque. Seus livros são fonte de puro prazer intelectual. Escritos com erudição e objetividade, respeitam o leitor, deixando espaço para que cada um tire suas próprias conclusões a respeito do tema abordado. Quanto à questão da felicidade, a melhor metáfora que eu conheço é a da cenoura colocada com uma vara de pescar na frente do burrinho para que ele continue em frente...