Nada expõe com mais precisão a personalidade de uma pessoa - seu gosto, sua preferência, sua inteligência, etc. - do que a atividade a que ela se dedica em seu tempo livre. Nada é mais eficiente, então, quando se pretende conhecer melhor alguém, do que descobrir o que ele faz quando não precisa fazer nada - a não ser aquilo que, sem nenhuma pressão externa, ele voluntariamente se dispõe a praticar. Profissionais e estudantes são sistematicamente obrigados a dedicar parte de seu tempo a tarefas que, com algumas exceções, são desgastantes e desagradáveis. Mas nem o estilo da profissão nem o tema de estudo são suficientes para tirarmos conclusões superficiais sobre alguém. Um chaveiro pode, na aconchego de seu lar, passar o fim de semana lendo Evelyn Waugh; um motorista de táxi pode freqüentar assiduamente exposições de orquídeas selvagens; um diretor de banco pode preferir, ao movimento urbano, uma pescaria em uma lagoa distante. E nesse momento de lazer, sem exigências e sem compromissos, é que profissionais, competentes ou não, revelam quem realmente são, sem poses forçadas ou máscaras felizes.
Porque, além dos prováveis exemplos citados, há também o chaveiro viciado em cocaína; o motorista de táxi que, ao chegar em casa, costuma espancar a mulher; e o diretor de banco que, em vez de pescarias tranqüilas, gosta de brigar em boates. E vivem por conta dessas preferências. Essas opções são, evidentemente, mais confiáveis para a análise de uma personalidade do que a atividade a que, no horário comercial, as pessoas são obrigadas a se dedicar. No ambiente acadêmico, desde escolas primárias a cursos de pós-graduação, a relação é mais ou menos a mesma: ou seja, praticamente não há relação entre as notas obtidas por um aluno e seu verdadeiro interesse extra-curricular. Normalmente, alto desempenho curricular está mais ligado a uma personalidade suscetível a cumprir obrigações do que a um legítimo interesse em aprender sobre, por exemplo, o processo de reprodução dos protozoários. Um aluno com boas notas pode ser tão imbecil quanto um executivo baladeiro e briguento. Insisto: não é a nota, como não é o salário, o que esclarece com mais fidelidade o estilo de vida de uma pessoa. Parece óbvio.
Não é. Bons alunos, como os pais querem e as escolas exigem, são quase sempre os que tem naturalmente mais capacidade de armazenar dados - e não, ao que parece, os que realmente são movidos por um irreprimível interesse em ampliar seus conhecimentos, para, assim, entenderem melhor como o mundo funciona. Uma coisa é acumular dados dispersos e conseguir reproduzi-los quando exigido. Outra é a habilidade para coletar e selecionar informações, relacionando assuntos e idéias, e, depois, extrair conclusão original sobre o tópico analisado. E é essa segunda capacidade que falta aos bons alunos convencionais - e também, não é preciso dizer, aos maus alunos normais -, porque exige o que, na maioria das vezes, a escola não entrega e não estimula: ampla cultura geral; curiosidade por temas diversos; dedicação ao estudo solitário; necessidade de desenvolver e expressar opiniões próprias. E essas qualidades pessoais são, cada vez mais, desprezadas e anuladas, por um rebanho intolerante e agressivo. É preciso, então, antes de tudo, vontade e coragem para se distanciar do rebanho.
O que percebo com nitidez, no entanto, por experiências pessoais - em ambientes, eu diria, cientificamente adequados - , é que a diferença entre um aluno aprovado no vestibular do curso mais concorrido de graduação do Brasil e uma dançarina de axé incapaz de articular uma frase de forma correta é, em muitos casos, quase nula. E, quando existe, é mais comum que seja uma simples questão de gosto musical - se a dançarina é "apaixonada por axé", o estudante é "viciado em rap". O estudante, por sorte - ou, talvez, azar -, á capaz de decorar datas e fórmulas, e, em alguns casos, por hábito ou obrigação, dedica parte do seu tempo a isso. A dançarina completou o colegial, mas, por esses acasos naturais, tem dificuldade em acumular informações e em se concentrar regularmente. Conclusão: enquanto um prefere as atividades acadêmicas, em que tem facilidade, o outro deriva para a "carreira artística", onde pode desenvolver seus talentos e esconder seus defeitos. Suas personalidades são aparentemente divergentes. Aparentemente, apenas. No fundo, porém, os interesses se fundem.
O trote aplicado em diversas universidades brasileiras é, aliás, um exemplo claro de semelhança entre jovens absolutamente incultos e estudantes supostamente educados. A severidade do vestibular não tem a menor ligação com a civilidade do ritual. Ou tem, mas inversa: parece mesmo que existe uma correlação positiva entre a pontuação exigida pelo vestibular e a barbaridade da recepção dos alunos. Basta visitar um baile funk - ou, para aproveitar o caso anterior, um show de axé - e, depois, o churrasco de recepção dos bixos de uma faculdade concorrida. As coincidências são óbvias: adolescentes semi-nus, de todos os sexos e preferências; desconhecidos se beijando calorosamente; fundo musical horrível (o mesmo, normalmente); insinuações de posições eróticas e esfregações pornográficas. É verdade, e pode servir como desculpa: os hormônios, nessa idade, estão a todo vapor. Mas não há nada que justifique a insistência obsessiva em brincar quase exclusivamente com prostitutas, travestis, cueca, calcinha, vibrador, foto e imagem de gente pelada, algemas e correntes. Entre tantas possíveis opções, a escolha por esse único assunto parece menos erupção libidinosa do que barbarismo espiritual. A principal intenção dos organizadores desses churrascos é, afinal, que todos se divirtam ao máximo.
E o estudante com currículo brilhante se diverte exatamente do mesmo modo que sua ex-colega de escola, que alimenta sua prole dançando semi-nua. Os dois são assíduos espectadores de Big Brother - mas preferem, cada um, um participante. Ambos lêem devotamente John Grishan e Danielle Steel - mas preferem, cada um, um livro. Ambos apreciam estilos de música que, sob um exame mais rigoroso, dificilmente seriam considerados música - mas preferem, cada um, um estilo. Ambos idolatram personalidades famosas, cada um em seu ambiente, sem reservas ou revisões - um, Marilena Chauí; outro, Hebe Camargo. Pode ser que, para quem vive com os mesmos modelos e referências, essas personalidades sejam inconciliáveis, quase opostas.
Como se existisse diferença profunda entre participantes do Big Brother, e não houvesse uma uniformidade evidente em pessoas desinteressantes e vendidas. Como se autores ruins conseguissem produzir obras realmente distintas, e não estivessem condenados pela homogeneidade medíocre. Como se, enfim, Hebe Camargo e Marilena Chauí, afora os gostos em maquiagem, não fossem essencialmente semelhantes: péssimo gosto para roupas; relação infantil com política; distância oceânica dos debates atuais e internacionais; chatice inesgotável e insuperável - a não ser por elas mesmas. A diferença que existe, então, no fundo, entre o estudante exemplar e a dançarina de axé é, mesmo com sutis divergências, praticamente nula: os seja, quase a mesma que separa Hebe Camargo de Marilena Chauí.
O saco que as embala pode, portanto, apresentar ligeiras alterações. Mas a farinha é a mesma - e a data de vencimento também.
Edu, parabéns, ótimo texto. Concordo com o que você escreveu. Inclusive, esse foi um assunto no qual discuti, com alguns amigos, no final de semana, pois participei do último churrasco dos 'bichos' da faculdade onde estudo. Se por um lado havia gente que estava ali para se divertir e dar boas vindas aos novos estudantes, havia outras muitas que estavam para amolá-los e sacaneá-los. E foram em pequenos gestos em que pude perceber atitudes de grosseria, egoísmo e infantilidade.
Àqueles que costumam a julgar o próximo e àqueles que julgam o quão desprezíveis são as músicas e as bandas de rap e axé, antes deveriam fazer uma auto-análise. Isso serve para demonstrar o quanto nossa sociedade é hipócrita, uma vez que costumamos a cobrar posturas e atitudes das pessoas as quais nem nós mesmos temos capacidade de realizar.
Concordo com o texto só queria acrescentar que geneticamente somos uma verdadeira salada de frutas e o meio que convivemos geralmente é o mais prejudicial para uma boa formação. Sendo assim quem se atreve a jogar a primeira pedra num trabalhador ou num calouro que se revolta contra a sociedade que lhe é imposta.
Caro Eduardo, seu texto é interessante. eu, como aluno de pós-graduação em História, tenho notado a mesma coisa. Os alunos tornaram-se meros pprofissionais do curso que escolheram, em busca do diplominha, lendo e pensando apenas o necessário a esse objetivo, descuidando-se de conhecer o "cânone ocidental"(ao menos isso) e mostrando-se extremamente reacionários em questões como aborto, droga, religião, política. Na verdade, desatualizados do debate. Se enveredarmos pela cultura filosófica, literária, cinematográfica, política, científica - é o fim. O máximo que fazem é cumprir a obrigação de lerem a famosa "referência teórica" que precisam para justificar a camisa de força que usarão para aprisionar nacos mínimos do tema que estudam. Conversar com esses seres é dificílimo: 99% das palavras referem-se a dinheiro e a possibilidade ou impossibilidade de comprar novos objetos tecnológicos (celulares, DVDs, telas planas, etc). A cultura, como experiência viva, como vivência mesmo, perdeu-se nestes meios. é notável a total falta de fusaõ e adequação de suas vidas com a cultura. são apertadores de parafuso da vida acadêmica - e com uma arrogância digna de um trabalhador do cais do porto. como não sabem a medida da cultura universal, que passa de Homero, Dante, goethe, shakespeare, mallarmé, bach, debussy, berio a tantos que não cabem nesta página, o que eles fazem, os apertadores de parafuso? desconhecendo esta medida, medem tudo pelo insignificante umbigo que têm e se acham "demais!"(expressão típica do grupo). Seu texto é um alerta geral. por isso, valeu.
jardel
Eduardo, achei o texto muito interessante, principalmente porque concordo com os princípios dos quais vc partiu para escrevê-lo....
Porém acho que nunca deve-se julgar alguém por qualquer atividade, uma pessoa q assiste Big Brother pode muito bem estar procurando algo para se entreter durante alguns minutos, falo porque assisto Big Brother, mas nem por isso deixo de me interessar por coisas cultas e com um grau de inteligência um pouco mais elevada, como por exemplo esse site...
Existe hora pra todos os tipos de diversão.
Caro Eduardo. Um bom texto, sem dúvida, pois não livra a cara dos pretensos "atenados com a cultura", uma vez que estão no mesmo saco das dançarinas de axé. O movimento ladeira abaixo de nosso preparo intelectual é gritante e é um fenônemo mundial. Evito em falar de falência cultural, pois cultura é cultura, não é qualitativo posto que é somente substantivo, com resultado de todos os movimentos e atividades de um povo, seja lendo "O vermelho e o negro" ou ouvindo "Minha eguinha pocotó", infelizmente. O propalado empobrecimento cultural só é visto por poucos, cada vez menos. No futuro, dado que o nivelamento por baixo será inevitável, os que quiserem ler Adous Huxley ou Philip Roth terão que fazê-lo escondido...Abs. Bernardo Carvalho - Goiania-GO