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Terça-feira, 25/2/2003
Steven Spielberg
Maurício Dias
+ de 4800 Acessos

Spielberg. Um nome, uma grife. Um homem que, como Disney, criou um universo próprio - e, no seu rastro, surgiram vários imitadores. Tão americano e emblemático quanto McDonald's ou Coca-Cola. Cinema é arte ou comportamento? No caso de Spielberg, a pergunta perde o sentido. Ele é mais um garoto que cresceu vendo filmes na TV, que deglutiu o mundo de séries como Twilight Zone e Star Trek e regurgitou-o na tela. Mais ou menos a mesma receita que os modernistas da semana de 22 e os tropicalistas de 68 seguiram. Só que Spielberg o fez em cima da mitologia pop americana: TV e cinema. É curioso que até hoje não tenha feito um faroeste, "o" gênero americano por excelência (e que exportou uma versão idealizada de um território daquele país para o imaginário coletivo de pelo menos cinco gerações no mundo todo). Mas pagou tributo ao gênero ao filmar o início de Indiana Jones - A Última Cruzada no Monument Valley, cenário celebrizado por John Ford em seus filmes com John Wayne. Com direito a cavalo perseguindo trem e tudo.

O fato de ter se criado via TV e cinema é que fazem com que seus filmes não-sérios sejam tão divertidos. E seus filmes sérios, tão tolos. Ao sair de um filme como Império do Sol ou Soldado Ryan, temos a sensação de que ele nunca leu um livro decente na vida. Kafka? (Ah, o roteirista daquele filme de Orson Welles...) Shakespeare? (O sujeito que namorava Gwyineth Paltrow.) Para ele o mundo só existe via cinema, e só faz sentido dentro dele. Até porque, no mundo real, os maus nem sempre são punidos e as crianças - o xodó do diretor - têm sua criatividade sufocada pelos pais e por aquele ser mítico cruel, a realidade.

Sua visão de mundo, infantil e ocasionalmente melosa, contribuiu para tornar o cinema americano mais "burro" a partir da década de 80 (vide meu texto sobre Coppola). Mas o cara tem talento. Sua capacidade para manipular a platéia é inquestionável.

Encurralado (Duel, 1971), feito para TV, é um suspense muito bem feito, com pouquíssimos recursos.

Louca Escapada (The Sugarland Express, 1974), sátira à América caipira baseada em fatos reais, ganhou prêmio de roteiro (escrito pelo próprio diretor) em Cannes.

Tubarão (Jaws, 1975) mereceu elogios de ninguém menos que Alfred Hitchcock. Steven Soderbergh, o diretor de Sexo, Mentiras e Videotape e Traffic, disse que resolveu fazer cinema depois de ver esse filme. (Este que vos escreve é fã confesso - já devo ter visto umas trinta vezes.)

O filme, dentro das limitações de sua história pobre, é brilhante. Direção, trilha sonora - aqui, mais que nunca parte essencial da trama. John Williams consegue uma trilha tão marcante quanto os melhores momentos de Bernard Herrmann, o compositor das trilhas de Hitchcock -, atores maravilhosos, diálogos bem escritos: a seqüência em que os três se embriagam no barco e o personagem Quint conta a história (absolutamente verídica) do USS Indianápolis é inesquecível.

E mesmo a trama pobre é veículo para uma temática antiqüíssima, tão velha quanto a humanidade: o confronto homem versus forças da natureza. John Huston, após filmar Moby Dick na década de 50, disse que o grande livro de Melville era, na verdade, inadaptável para o cinema. Tubarão é o mais perto que se chegou de se realizar essa façanha na tela.

E mais uma vez comentando a interface cinema/mundo real, o filme quase levou a espécie californiana do tubarão branco à extinção, pois todo panaca comedor de hambúrguer que tinha um barco resolveu que era prova de macheza matar um desses animais - coisa que aliás, é parodiada dentro do próprio filme.

Com essa obra, Spielberg desbancou O Poderoso Chefão do topo da maior bilheteria de todos os tempos e criou o que se tornaria a tradição do filme de verão norte-americano (até então essa temporada era menosprezada pelos produtores e distribuidores). Com Tubarão viu-se que era possível lançar mega-hits nesse período, e desde então é acirrada a disputa pelas gordas bilheterias e por espaço nas telas (cada possível hit é lançado em mais de duas mil salas de projeção, então meia dúzia de filmes ocupam todos os cinemas do país, não sobrando espaço para as produções pequenas no mesmo período).

Em seguida veio o soberbo Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters Of The Thid Kind, 1977), outro hit. Aqui, Richard Dreyfuss, que já trabalhara com o diretor no filme anterior, interpreta um técnico de classe média que abandona família e sociedade em busca da redenção celestial representada por simpáticos alienígenas em naves reluzentes. Há pelo menos uma dúzia de cenas excepcionais neste filme, que gerou uma onda de emotividade nos americanos, com platéias se dando as mãos no cinema (bem anos setenta, hein?) e seitas místicas esquisitonas atribuindo características religiosas aos OVNIS. Só sendo muito cínico pra não se deixar levar pelo entusiasmo juvenil que transborda da tela. O cineasta François Truffaut, fã de Spielberg, interpreta um cientista francês. Dizem que ele aproveitou a aproximação com o colega americano para levá-lo a cinematecas e dar-lhe um banho de loja, ou melhor, de cultura cinematográfica. Discípulo de André Bazin, crítico da respeitada "Cahiers du Cinéma", Truffaut sabia tudo de História do cinema. Embora Spielberg tenha feito curso universitário de cinema, é provável que seu conhecimento se limitasse aos filmes americanos em geral.

No mesmo ano de Contatos Imediatos, George Lucas realizava o primeiro Guerra nas Estrelas. Com o sucesso de ambos os filmes, estava pronto o mapa que nortearia todo o cinema americano da década seguinte.

1941, rodado em 1979, foi um fracasso, mas em meio a piadas na linha da revista Mad tem coisas interessantes.

Em 1981, George Lucas se juntou como produtor a Spielberg e ambos fizeram o excelente Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark), outro arrasa-quarteirão das bilheterias, e que alçou Harrison Ford à condição de astro mundial - em Guerra nas Estrelas seu papel não era o principal.

No ano seguinte, E.T., o drama infantil kitsch varreu o mundo como uma onda. Maior bilheteria de todos os tempos (de novo!). Como já havia ocorrido com Guerra nas Estrelas, o que o filme arrecadou com produtos licenciados - brinquedos, mochilas, camisetas, etc. - deve ter chegado bem perto do lucro do filme nas bilheterias. Os caras descobriram uma máquina de fazer dinheiro, uma coisa que só as empresas Disney faziam. Mas enquanto a Disney explorava personagens já velhos conhecidos do público, os filmes agora já nasciam acompanhados de toda uma série de bugigangas. Spielberg faz uma paródia a isso em Jurassic Park. A simples idéia de reviver dinossauros para construir um parque temático para famílias americanas é irônica. E no filme - o primeiro da série - ainda mostram a loja do parque, com camisetas e bonecos de dinossauro, um anúncio tão explícito que chega a ser engraçado. O que a banda inglesa The Who fez por deboche na capa de seu célebre disco The Who Sell Out, onde os músicos aparecem anunciando produtos como desodorante e etc., Spielberg faz à sério - podem ter certeza que com isso engordou ainda mais sua conta bancária.

Nesse meio tempo, fez a continuação de Caçadores, Indiana Jones e o Templo da Perdição (Indiana Jones and the Temple of Doom, 1984), e, como produtor, lançou ou deu oportunidade a nomes com Robert Zemeckis, Joe Dante e outros.

Em 1985 começou a tentar fazer filmes sérios, mais adultos. O primeiro deles, A Cor Púrpura (The Color Purple), não é mau. Conta a história de uma pobre negra analfabeta que, após ser durante anos estuprada pelo pai, casa-se com um homem que a espanca e a despreza. Ou seja, o filme apela para uma dos mais fáceis sentimentos da sociedade contemporânea, a compaixão. Ainda mais meloso é o filme seguinte, O Império do Sol (Empire Of The Sun, 1987), que narra as desventuras de um garoto inglês pela China durante a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, Spielberg começava como produtor de TV, para a qual já desenvolveu várias séries e desenhos animados. Veio a terceira parte da série Indiana Jones, o ótimo Indiana Jones - A Última Cruzada (Indiana Jones and The Last Crusade, 1989).

Seguiram-se os totalmente medíocres Além Da Eternidade (Always, 1989) e Hook (1991).

Em 1993 novo estouro de bilheteria com O Parque dos Dinossauros, finalizado às pressas, enquanto o diretor se dedicava a um projeto mais pessoal, A Lista de Schindler (Schindler's List), sobre um empresário alemão que boicotou o Holocausto Nazista. Seguindo a tradição de Hollywood, nos campos de concentração do filme de Spielberg não há homossexuais, comunistas, ciganos. Dá a entender que apenas os judeus sofreram. Mas o filme é extremamente bem realizado e tem uma fotografia maravilhosa. O final compromete pelo tom de discurso - redundante, pois o que é dito ali nas palavras de Schindler, já tinha sido dito ao longo de todo o filme, com imagens - e o pieguismo, um vício forte no trabalho do diretor. Finalmente choveram os Oscars que o diretor perseguia há tantos anos.

Em 1994 Spielberg uniu-se a Jeffrey Katzenberg (ex-presidente dos Estúdios Disney) e a David Geffen (dono da Geffen Records, companhia que foi a primeira a investir pesado em bandas alternativas, responsável direta pelo hit da banda Nirvana) para fundar o Estúdio Dreamworks, um peso pesado da indústria do entretenimento, que poucos anos após sua fundação conseguia a chancela da Academia de Hollywood ao receber o Oscar por uma de suas produções, o superestimado Beleza Americana.

Em seguida ele estenderia sua visão ingênua ao tema da escravidão negra em Amistad (1997), faria a continuação de Jurassic Park (também em 1997), um roteiro tão mal amarrado e cheio de clichês que faz o primeiro filme da série parecer coerente: Juliane Moore quase brincando de pular corda com a cauda de um estegossauro, os caçadores sem respeito à natureza sendo por ela (a natureza) punidos, a menina negra passageira clandestina que se impõe por seu imenso talento, um tiranossauro que escapa de um barco inexplicavelmente e aterroriza uma cidade toda - não tem um policial pra descarregar uma escopeta nele e ver o que acontece? Sei o quanto é bobo querer coerência nesse estilo de filme, mas justamente por Spielberg ser dessa escola do filme B deveria ter um mínimo respeito ao paladar do espectador. Tá certo que em Tubarão não conseguem parar o bicho com tiro, arpão, facada - e o peixe já tinha engolido um anzol do tamanho de um pé humano na cena em que arranca o cais da praia, algo que deveria trazer-lhe, no mínimo, sérias complicações alimentares - mas ali temos uma boa direção e bons diálogos. Jurassic Park II parece ter sido dirigido por telefone, duvido que o próprio Spielberg tenha gostado do filme.

O diretor voltaria à Segunda Guerra no patriótico - o filme começa e termina com um take da bandeira americana - e extremamente bem editado O Resgate do Soldado Ryan (1998). De quebra, muito moralismo e idealização do que seja honra numa guerra.

Recentemente, Spielberg assumiu a realização de um projeto originalmente concebido por Stanley Kubrick, Inteligência Artificial (Artificial Inteligence, 2001). Esta obra tem muitas coisas boas, e boa parte delas vem de Kubrick. A casa do casal onde se concentra a primeira terça parte do filme tem muito do ambiente asséptico encontrado em O Iluminado e 2001 - Uma Odisséia No Espaço. O uso de luz, incluindo simulações de luz fria, por vezes perto de "estourar" - ultrapassar a capacidade de registro do negativo - lembra muito o final de 2001 (o segmento Júpiter e Além).

O personagem Gigolo Joe - talvez a melhor coisa de I.A. - dança parodiando Fred Astaire, como Malcolm McDowell parodiava Gene Kelly em Laranja Mecânica. A zona de prazeres, o inferninho de baixo meretrício onde os solteiros se divertem, é precedida por túneis-cabeças femininas, numa óbvia alusão ao felattio, e que cenograficamente lembram as mulheres-chafariz da leiteria Korova de Laranja Mecânica.

É interessante também o espetáculo de demolição onde o lúmpem-proletariado humano pode se divertir e encher a barriga de cerveja vendo os robôs sem dono serem esquartejados. É nítida a atmosfera de ressentimento que domina a platéia: os miseráveis caipiras deserdados, os insatisfeitos, podem ver aqueles robôs que foram um dia o ápice da criação humana - e que provavelmente substituíram humanos em um bom número de serviços, extinguindo empregos - serem destruídos para aplacar a ira popular. Toda a cena poderia ser uma reflexão sobre certas funções catárticas de segmentos do cinema e alguns esportes, mas não aprofunda a questão.

E os quinze minutos finais do filme são da mais pura pieguice Spielbergiana aliada à uma incompreensibilidade (existe esta palavra?) digna do final do 2001. Spielberg recorre a seus velhos amigos, os ETs, que desta vez são cromados - como o robô de Exterminador do Futuro 2 em suas metamorfoses - e em seus rostos é possível ver flash-backs dos seres que eles tocam; e além de tudo são super-condutores, pois a informação passa de um para o outro por um mero toque (seriam aliens de silício?). Ou seja, são autênticos media men, seres-mídia, uma versão mais adulta dos teletubbies. Um final ridículo e sem propósito para um filme que tem coisas realmente ótimas. Dá pra dizer onde termina Kubrick e onde começa Spielberg.

Em seguida realizou outro projeto de sci-fi, baseado no autor Phillip K. Dick - o mesmo que deu origem às histórias de Blade Runner e O Vingador do Futuro (Total Recall). Minority Report, estrelado por Tom Cruise tem muita ação e uma cenografia deslumbrante. Curiosamente, nota-se muitos pontos em comum com Inteligência Artificial: o núcleo central dos dois filmes trata de famílias arrasadas pela perda de um filho pequeno. Ambas as famílias recorrem a simulacros de vida para sobreviverem - em Inteligência Artificial a família adota um robô, em Minority Report o personagem de Cruise fica assistindo a filmes-hologramas para lembrar da família. E em ambos há uma cena de ruptura familiar numa piscina: em Inteligência Artificial o menino-robô é abandonado após acidentalmente quase afogar o filho real do casal, em Minority Report o filho de Cruise é seqüestrado numa piscina pública. Só que o final de Minority não compromete, o que o torna mais bem sucedido que seu antecessor.

Em 1982 o alemão Wim Wenders dirigiu Chambre 666, um curta para TV com depoimentos de vários cineastas que participavam do Festival de Cannes. Vemos depoimentos de Godard e outros, envolvendo questões como estética, a possibilidade da existência de cinemas nacionais, democratização da mídia, etc. O depoimento de Spielberg, intercalado com os dos demais diretores, só fala de dinheiro, custos de produção, mercado, etc. Não parece um artista falando, mas sim um homem de negócios. Evidentemente, não podemos julga-lo só por isso. Wenders, apesar de fã confesso do cinema americano, veio a ser depois presidente da Academia Européia de Cinema, e, como boa parte das cabeças pensantes, tem um certo receio desse espírito empreendedor corporativo americano, que se impõe aos demais nem que seja na porrada. Então pode ter editado o depoimento de Spielberg, retirando quaisquer considerações mais profundas e deixando apenas a imagem de business man.

Ou, como maldosamente disse um amigo meu: - Você acha que um alemão ia perder a chance de sacanear um judeu?

Os filmes de Spielberg se concentram sempre no aspecto emocional, o que os impede de ter uma visão crítica do mundo e um discurso articulado, como vemos em diretores como Robert Altman ou - vá lá - Quentin Tarantino alcançarem em seus melhores momentos.

Apesar disso, alguém que influenciou tanto o olhar do mundo por tanto tempo - Tubarão já foi feito há vinte e oito anos, Spielberg, como a Brigitte Bardot, está ficando velho - merece respeito. Você consegue imaginar como seria o mundo do entretenimento contemporâneo sem sua influência como diretor e produtor?



Maurício Dias
Rio de Janeiro, 25/2/2003

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