COLUNAS
Quinta-feira,
6/3/2003
Da História, De Livros e De Bibliotecas
Ricardo de Mattos
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Ao lado da História que podemos chamar "Pública", cada vez mais ganha corpo a que podemos chamar de "Privada". A primeira cuida do encadeamento dos factos de importância geral, da origem, desenvolvimento, relações e desaparecimento dos povos, bem como da actuação de pessoas com relevância para os acontecimentos estudados. A segunda investiga elementos secundários, porém, se não determinantes para a compreensão da matéria anterior, permitem uma reconstituição do período tratado. A uma interessa a actuação política de Elizabeth I da Inglaterra, suas decisões, as guerras travadas, a condução da economia e da diplomacia em sua época. Já a outra vai procurar saber sobre seus hábitos alimentares, seus pendores culturais, o número de seus amantes, quem foram e se alcançaram alguma influência sobre ela. Este segundo ramo tem lá a sua utilidade, pois permite a produção de filmes com ricos detalhes de época, e se adoptado um tratamento pouco especulativo, auxilia o entendimento de determinado período. A divisão não é estanque, mas a interdependência deve sempre levar em conta a pertinência.
Dentro da História Privada ganha corpo o ramo que pode ser classificado como "Bibliologia", o estudo do livro como objecto e seu papel na vida dos particulares, quer famosos, quer anónimos. Podemos citar A Ordem Dos Livros, A Aventura do Livro - Do Leitor Ao Navegador e História da Leitura No Mundo Ocidental, todos de Roger Chartier. A excelente Uma História da Leitura de Alberto Manguel; A Palavra Escrita, de Wilson Martins, caracteristicamente técnica, como parece ser também Dos Livros, de Edouard Rouveyre. Um pequeno tratado de Diderot a avançar pela liberdade de impressão na França: Carta Sobre O Comércio dos Livros. Além do livro e seu culto, podemos encontrar algumas histórias de bibliotecas, sejam particulares, sejam públicas. Para aquelas cito Uma Vida Entre Livros de José Mindlin e O Diabo Na Livraria Do Cónego de Eduardo Frieiro. Para estas, A Biblioteca Desaparecida, de Luciano Canfora, sobre a biblioteca de Alexandria.
Com a bibliologia - cheguei ao termo pela lógica, mas o prefaciador de "Dos Livros" já menciona os "bibliólogos" - acompanha-se a evolução do livro desde épocas anteriores à aquisição de seu formato actual em Codex, até a polémica - tola ao meu ver - concernente a sua permanência ou não com o advento da Internet. As diversas formas de impressão, como em cera e argila, o uso do papiro, a adopção do pergaminho, o livro em rolo, usos públicos e particulares, as obras mais comuns encontradas nas residências: estes e vários outros os temas estudados. A prática corrente durante séculos, pela qual o livro era lido e ouvido, permitindo uma tentativa de desvinculação entre analfabetismo e alienação. Atente-se ao prefácio de Moll Flanders escrito por Daniel Defoe: "... Esperamos que o leitor - mesmo o mais puro - e o ouvinte - mesmo o mais pudico - não se ofendam com o restante". O indivíduo poderia não ter recebido uma educação formal, mas dispondo-se a escutar a leitura poderia manter-se tão ou mais informado quanto um alfabetizado. O ler em público e em voz alta é um hábito extinto; não é algo comparável à leitura para crianças nas escolas.
Pode ser útil saber dos hábitos de leitura de algumas pessoas. É sabido o gosto de Montaigne pela leitura dos relatos de viajantes, gosto este a transparecer principalmente no primeiro volume dos Ensaios e acima de todos, na longa Apologia A Raymond Sebond. Tomando conhecimento da variedade das coisas, aceitou a diversidade como regra, e isto pode ser um dos fundamentos de seu cepticismo. No mínimo um auxilio de sua compreensão.
Apesar da excelência da obra, não é este o assunto principal de A Longa Viagem da Biblioteca Dos Reis - Do Terremoto de Lisboa à Independência do Brasil, escrito por Lilia Moritz Schwarcz em colaboração com Paulo César de Azevedo e Angela Marques da Costa. Este livro é simplesmente indispensável à aquisição d'um conhecimento profundo sobre os períodos históricos enfocados: o Joanino, o Pombalino, o Marianismo, a Regência de D. João VI, a transferência da Corte para o Brasil, a Revolução do Porto e os primeiros instantes do Brasil independente. É incomparável a restauração do ambiente português e brasileiro. A história é narrada passo a passo, com consistência e clareza. Não se vale a autora - o dito sobre ela aplica-se aos colaboradores - somente de empréstimos de outros autores, empregando também o abundante material colhido em minuciosa pesquisa junto ao acervo de instituições como o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, A Fundação Biblioteca Nacional (evidentemente), o Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional.
São 416 páginas de texto. Ativesse-se a autora tão somente à história da Biblioteca Real e o volume seria muito menor. Vários capítulos sequer a mencionam, ou o fazem mui superficialmente, como se lembrando de última hora do assunto principal. Há três cadernos em cor, nos quais tive a pachorra de contar 103 ilustrações e verificar apenas nove referentes a livros.
A Biblioteca Real. A autora inicia a obra no reinado de D. João V, vigésimo quarto rei de Portugal, dito o Magnânimo (1689/1.706). Aos livros adquiridos por seus antecessores todos, entre os quais podemos destacar D. Dinis (1.261/1.325) conhecido amante das letras, fundador da Universidade de Lisboa, D. João V acresce muitíssimos outros, comprados avidamente pela Europa. Não se deve imaginar uma pessoa voltando da Itália e tendo nas mãos um livrinho para o rei, e sim, navios trazendo caixas com bibliotecas completas compradas principalmente de particulares. Além disso, uma biblioteca era composta de mapas, moedas, medalhas, partituras, globos terrestres, gravuras, quadros, instrumentos de cálculo, peças astronómicas, minerais, animais empalhados e tudo o mais julgado útil para a aquisição do conhecimento. Além dessas compras maciças, foi instituída a "propina": de cada obra editada no país, um exemplar deveria ser enviado ao acervo real. Variam os testemunhos da época sobre o aproveitamento pelo rei de toda esta fartura, estes dizendo que ele mal tocava os livros, aqueles que ele passava horas perdido entre os volumes. De qualquer forma, uma biblioteca deste porte possuía uma função mais política que cultural. D. João V acreditava afastar dos portugueses a imagem de um povo extremamente místico e inculto. Note-se não haver o desenvolvimento local de artes e técnicas para o progresso do país, mas a preocupação em trazer tudo pronto de fora, ansiando pela aparência de ilustração e actualização.
D. João V é aquele a prometer a construção de um mosteiro, como de facto o fez, caso Deus atendesse suas súplicas e desse-lhe um filho, como de facto deu. Veja-se Memorial do Convento, de José Saramago e a história do convento-palácio de Mafra.
Ostentação ou não, a Biblioteca Real foi a efectivação do objectivo do monarca. Passou a ser mencionada por viajantes e comparada as suas similares no continente. Quanto maior a ideia dela, maior a desilusão em imaginá-la inteiramente perdida e queimada no terremoto que assolou Lisboa em 1.755. O que não foi tragado pelas crateras abertas no chão foi queimado pelo incêndio seguinte. Tudo destruído, livros recentes e seculares, pertencentes aos antigos governantes. Tal terremoto teve a mesma repercussão do atentado de onze de setembro ao WTC. Algo inesperado e próprio a deixar qualquer um atónito até ao menos as perguntas serem esboçadas. Por isso, ao menos em relação a esta primeira Livraria, não faz falta no livro da Professora Schwarcz um inventário das obras até então existentes. Certamente os livros eram arrolados de acordo com a entrada, mas tal catálogo provavelmente foi perdido no pandemónio.
À época do terremoto, o rei de Portugal era D. José I, dito o Reformador (1.714/1.777). Mais que pelo rei, o período é conhecido pela actuação do seu primeiro ministro o Conde de Oeiras, depois intitulado Marquês de Pombal. A capital deve ser reconstruída e paralelamente a biblioteca - ou Livraria Real, como então era chamada - segundo os princípios de sumptuosidade do rei anterior. Morto D. José I, sucede-lhe D.ª Maria I, aqui conhecida como a Louca, lá como a Piedosa (1.734/1816). Esta rainha deu proveito mais prático ao até então reunido para a Livraria Real. Fundou uma biblioteca pública e academias para estudo e desenvolvimento de técnicas agrícolas e de mineralogia, visando o objectivo declarado de progresso da nação. Enlouquecendo enquanto reinante, foi aos poucos substituída pelo seu filho o príncipe João. Com a regência de D. João e transferência da sede do governo português para o Brasil, o enfoque da autora passa para cá, só tornando para Portugal com o regresso da família real por imposição das "Cortes" como ficou conhecido o governo provisório oriundo da Revolução Liberal do Porto de 1.820.
A partir deste ponto desenvolve-se tudo como sabemos. D. João VI retorna à Portugal deixando aqui seu filho mais velho. A pressão das Cortes e o descontentamento dos brasileiros, bem como o receio destes em perder a autonomia obtida com a presença do rei fomentam os ideais de independência e outra não é a saída encontrada. Ficou com D. Pedro a Biblioteca Real, item especificamente negociado por ocasião do reconhecimento da independência. Foi renomeada "Biblioteca Imperial e Pública da Corte" e hoje é a "Fundação Biblioteca Nacional". Aqui, sim, faz falta a aplicação da autora em apresentar um inventário das obras. A Bíblia de Mogúncia, por especial que seja, não nos leva a imaginar o acervo original da actual Fundação. Apesar disso seu livro muito esclarece em sua riqueza de dados, tal como As Barbas do Imperador, leitura ou releitura interessante de se fazer após a conclusão de A Longa Viagem... visto o período de intersecção a ligar as duas obras - os momentos iniciais do império brasileiro.
Para ir além
Ricardo de Mattos
Taubaté,
6/3/2003
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