COLUNAS
Quarta-feira,
12/3/2003
O MP3 aconselha
Héber Sales
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"... Ele encoraja o entusiasmo pela música de
um jeito que a indústria há muito esqueceu de fazer".
Thom Yorke, do Radiohead, sobre o Napster.
O mundo da internet parece governado por "leis" diferentes, por outros valores, por outros costumes. Uma de suas regras mais notáveis é a de que a informação deve ser livre. O fenômeno das redes P2P apenas traduz e aprofunda essa cultura. Graças a estes recursos, os internautas podem localizar nos computadores de outras pessoas o conteúdo que desejam, e dispor dele, sem intermediários, sem custos.
Legiões de fãs de música têm se associado a essas redes. Através delas, eles trocam suas faixas preferidas com gente desconhecida, de lugares onde nunca estiveram; conhecem pessoas com gostos afins aos seus; enfim, experimentam a música na sua forma mais essencial, que é ser um meio para promover participação e integração entre os humanos.
A explosão desse mercado (pirata) de música online têm levado algumas gravadoras a explorar esse filão por meio de alternativas legítimas. De um modo geral, entretanto, elas não tem tido sucesso, e a venda de música via internet continua a ser desprezível se comparada à quantidade de downloads gratuitos de MP3. Muitas têm sido as razões invocadas para explicar tal fracasso. Subjacente a maioria delas está a premissa de que a motivação do pirata de áudio online é eminentemente econômica, e que basta oferecer uma alternativa legítima, com benefícios funcionais superiores e custo razoável, para que os piratas passem a pagar por música digital. Será?
Há dúvidas, e das mais sérias. Muito mais do que transação, a troca de MP3 parece ser um modo de reafirmação da identidade dos seus atores num novo espaço, o ciberespaço. Além disso, ela corresponde ao cultivo de valores muito específicos da cultura da internet, em geral, e dos fãs de música, em particular. Nesse meio, a cultura da informação livre encontra-se com o papel integrador da música, forjando um ethos que encoraja o acesso universal à música.
O que pode fazer a indústria diante de tal situação? Uma opção, exercida de fato, é continuar apelando para a repressão legal-policial e tecnológica a fim de eliminar a pirataria online. Muitos, porém, duvidam da eficácia de tal medida. Uns tantos destacam que no atual estágio de desenvolvimento tecnológico seria impossível impedir o surgimento de recursos cada vez mais avançados de pirataria. Outros calculam que a vitória da indústria fonográfica neste campo levaria a perdas muito mais significativas em outros setores, em particular na indústria de eletrônicos domésticos, e que isso não é vantajoso nem para a sociedade, nem para o grande capital. Há finalmente os que alertam: a ação repressiva tem sido um desastre em termos de relações públicas, e a imagem das gravadoras está no fundo do poço.
Por causa disso tudo, aconselha-se: antes que combater a pirataria online, as gravadoras precisam reinventar o seu negócio. As idéias são as mais variadas. Algumas delas nem são novas - são extrapolações dos modelos bem sucedidos em outras mídias. Nesta linha, alguns querem ver a troca de MP3 como uma operação do tipo TV Aberta, onde o conteúdo, de menor qualidade, seria gratuito e serviria como meio para capturar a atenção da audiência para novos artistas e novos lançamento dos astros. Outra idéia que obedece a mesma lógica é a de fazer os provedores de acesso pagarem royalties pelas músicas baixadas por seus usuários. Hilary Rosen, presidente da RIAA, justifica: "a maior parte da demanda pela banda larga é simplesmente resultado do uso de programas de file-sharing". Conquanto seja de difícil execução, dado o enorme volume de downloads a serem rastreados, esta idéia indica um movimento da indústria rumo a assimilação do P2P nos termos do que foi feito ao rádio, um meio em que a audiência ouve música de graça.
Quando se discute tais idéias está se falando, em última instância, no uso das redes P2P e do formato MP3 para prover degustação, uma conhecida estratégia de promoção em marketing, particularmente apropriada para bens de informação - bens de experiência, que precisam ser provados pelos consumidores para que eles possam atribuir-lhe valor [1]. Aliás, a receita não é nova no e-business. A indústria pornô já está inclusive aplicando-a nas redes P2P ao distribuir amostras de seus acervos de vídeo e de imagem. "Você não pode batê-los, então você deve juntar-se a eles... Estes são seus consumidores mais lucrativos, pessoas que vem especificamente à sua arena e dizem que querem X, Y e Z. Esta é a mais inquisitiva, mais importante comunidade possível na história do negócio", disse Scott Hunter, presidente da Exploit Systems, uma empresa que ajuda os provedores de conteúdo pornô a colocarem seus arquivos em posição privilegiada nas buscas das redes P2P. E ele fez as contas: "se 15% das cerca de 150 milhões de pessoas nessas redes estão dispostas a pagar por conteúdo extra, então se tem 20 milhões de compradores; desprezar tal oportunidade de fazer uma venda é fazer papel de bobo".
A idéia de dar a informação para depois poder cobrar por suas versões mais sofisticadas e versáteis parece ser coerente com uma das grandes motivações para a busca de MP3 na internet: a aventura de ser um dos primeiros a descobrir novidades e raridades. Isso fica claro quando se ouve um fã contar, vaidoso, como descobriu alguns artistas antes de seus colegas:
M. diz:
quer ver uma coisa, vc conhece Renato Fechine, Ze lezin, PEgadinas do mução, ou homem cueca?
Héber diz:
não!
Héber diz:
quem são?
M. diz:
Sao uns piadistas, fiquei conhecendo este ano. Os caras foram e compraram o cd, e eu ja tinha pela net.
M. diz:
O cd dos caras é baratinho, mas antes mesmo de alguem me mostrar o cd eu ja tinha baixado.
Héber diz:
os caras?
M. diz:
alguns caras daqui do colégio.
O caso não é isolado, e tem sido reportado em várias matérias veiculadas na grande imprensa. Em uma delas, uma universitária revela acessar os programas P2P em busca de "sons variados, que incluem trilhas sonoras de filmes, shows ao vivo e música de desenho animado... 'Baixei a trilha do desenho Corrida Maluca e conheci boas bandas de rock", disse a estudante.
Notavelmente, esses dois informantes buscam por material que a indústria simplesmente não disponibiliza. O sucesso da pirataria é uma lição dos princípios mais básicos do marketing: ela vence porque atende necessidades não satisfeitas, porque serve a segmentos ignorados pelas grandes empresas, as quais, de um modo geral, investem quase somente nas grandes estrelas e hits. Por essas e outras é que gente perspicaz como Thom Yorke toma o MP3 mais como conselheiro do que como vilão: um alerta de que é preciso aprender mais sobre o papel da música na vida dos fãs; um aviso de que a indústria talvez não esteja conseguindo apoiar adequadamente a empolgação da garotada pela música.
Referências
[1] SHAPIRO, Carl; VARIAN, Hal R. A economia da informação: como os princípios econômicos se aplicam à era da internet. Rio de Janeiro: Campus, 1999
Héber Sales
Salvador,
12/3/2003
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