"Cada um está só no coração da terra
Transpassado por um raio de sol
E de repente é noite"
(Quasimodo)
Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica, Um copo de
cólera e Menina a caminho afastou-se definitivamente da literatura. "Desisti de escrever porque há um excesso de
verdade no mundo" (Otto Rank). Talvez essa afirmação esclareça
o motivo do afastamento de Raduan Nassar da literatura.
Segundo Nassar, o que o levou a escrever e depois parar foi a
paixão pela literatura, que ele não sabe como começa essa
paixão e porque acaba. O silêncio é definitivo para o
escritor, como se o silêncio o tivesse elegido. Provavelmente
o escritor viva sob um tempo espelhado em signos fecundos e
assombrados. Tasso diz que "em seus tormentos, o homem fica
mudo; mas um deus me concedeu o dom de exprimir o que sofro".
Nassar, filho de imigrantes libaneses, nascido em 1935,
estudou direito, filosofia e exerceu o jornalismo como
diretor do Jornal do Bairro (SP) nos anos 70. Desencantou-se
com a imprensa de uma maneira geral. Hoje ele planta feijão e
milho de pipoca numa fazenda do interior paulista. Raduan, um
dos escritores mais notáveis surgidos no país depois de
Guimarães Rosa e Clarice Lispector, também se recusa a dar entrevistas, afinal, diz o escritor, "sou apenas um escritor
passageiro".
É curioso notar em Raduan o seu isolamento em relação ao
mundo literário. Ao recusar-se a falar com a imprensa, como
Dalton Trevisan ou Rubem Fonseca, Nassar mostra-se como
alguém que cultiva a mais espetacular vaidade, digna daqueles
que se expõem exageradamente.
A relutância do escritor em não conceder entrevista
inspirou-me a seguinte frase: "Penso, logo desisto". Ele riu
à vontade do aforismo, riu como um monge do mosteiro. Aliás,
Raduan parece um bispo de alguma igreja do interior do
Brasil, os cabelos grisalhos e desarrumados, os gestos
contidos, breves, a estatura baixa, fala mansa, sempre a
olhar nos olhos do interlocutor, atento para ditar velhos
ensinamentos bíblicos: "Nunca diga nunca".
Ao encontrá-lo, me lembrei do romance Lavoura
arcaica, que resgata a tradição cristã e a proibição do
incesto, o patriarcado e a obrigação do trabalho. Os temas
característicos do romance são os da tradição mediterrânea,
como a terra, a plantação, a colheita, a mesa e a família. É
uma parábola do filho pródigo, sem final feliz. Narrativa
trágica, bíblica e helênica.
Raduan é um ser trágico, desiludido, desesperançado,
atormentado como o narrador-personagem da novela Um copo de
cólera que vive um amor irreconciliável, perturbador e
erótico. Uma paixão devastadora. Os amantes tentam a todo
instante abater um ao outro. Vivem um amor tumultuado,
fazendo do dia-a-dia uma guerra existencial, filosófica e
política. A novela foi construída a partir da sensualidade e
da explosão verbal dos personagens; os dois estão diante do
abismo das desrazões, motivo dos amores e paixões sem rumos;
amores desenfreados, embriagados de um tempo desconhecido,
onde eles respiram a energia violenta de uma miserável
aventura. É o ciclo do inferno. Salve-se quem puder.
Talvez, ao se isolar do mundo, Raduan tenha se salvado das
invejas do círculo literário, mas ao silenciar, o escritor,
provavelmente, percebeu que havia se enganado e ai preferiu a
ele mesmo. Preferiu desprezar o que sabe, e nunca o que
sonha. Silenciou-se para criar vazios, lacunas, e, para
instaurar a meditação que recorta o espírito homogêneo da
memória. O ideal é esquecer pra lembrar? "Se recordar fosse
esquecer (...)".
O silêncio de Raduan é como a encarnação do ser em busca de
seu sentido. Para o escritor, os sentimentos dos outros não
deveriam nos ser emprestados. Os nossos deveriam nos bastar.
A fala de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, decifra a
filosofia de vida de Raduan: "A gente vive, eu acho, é mesmo
para se desiludir e desmisturar". Talvez a verdadeira vida
seja aquela que se encontra ausente do mundo.
Trechos
(...) já foi o tempo em que via a convivência como viável, só
exigindo deste bem comum, piedosamente, o meu quinhão, já foi
o tempo em que consentia num contrato, deixando muitas coisas
de fora sem ceder contudo no que me era vital, já foi o tempo
em que reconhecia a existência escandalosa de imaginados
valores, coluna vertebral de toda 'ordem'; mas não tive
sequer o sopro necessário, e, negado o respiro, me foi
imposto o sufoco; é esta consciência que me libera, é ela
hoje que me empurra, são outras agora minhas preocupações, é
hoje outro o meu universo de problemas; num mundo
estapafúrdio – definitivamente fora de foco – cedo ou tarde
tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e você que vive
paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica
uma piada: impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém
arruma a casa do capeta; me recuso pois a pensar naquilo em
que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a
igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso! me apavora ainda
a existência, mas não tenho medo de ficar sozinho, foi
conscientemente que escolhi o exílio, me bastando hoje o
cinismo dos grandes indiferentes (...)"
(Um copo de cólera, págs. 54-55)
"Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num
sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da
família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobri
meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura
quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão
vermelho; não eram duentes aqueles troncos todos ao meu
redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono
adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as
vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que
adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais
ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da
atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a
volúpia religiosa com que se colhe um pomo)".
(Lavoura arcaica, págs. 13-14)
Não sei se procede a afirmação, mas certa vez ouvi que Nassar largou a literatura "porque estava em outra". Seja como for, me dá a impressão de que foi melhor assim: melhor que escrever algo que fosse bem inferior a "Lavoura Arcaica" (ao meu ver, os contos e "Um copo..." são bem menores). Se é por vaidade, continua a escrever e antes de morrer manda queimar os escritos (uma situação bem de Kafka); se é porque a essência acabou, resta ficar com o publicado. Há algo de herético num escritor fantástico que preferiu silenciar, não é?
São tão intrigantes, os campos de idéias desse escritor, o tratamento que a vida lhe deu e então o seu silêncio. A hipótese que me vem rodeiam certas interrogações sobre ele: No momento em que nega uma disposição com o outro, expressa que não a quer de ninguém? Quando não escreve mais, não acredita mais no homem? Se não acredita mais no homem, é pq se conheceu de tal forma que julga que não há um porquê? A existencia não é um risco? Se não se sente uma energia extraordinária em algum momento que faça tudo valer a pena, no que se apoiar quando se está boiando no esgoto? Se há a lembrança dessa energia, por que não desejar que ela continue a existir, mesmo que não todo o tempo, e sinta que existe algo pelo que se empenhar, caminhar, correr e por que não dançar?
Não acho que Raduan parou de escrever por que há um excesso de verdade no mundo, mas talvez não tenha encontrado (no sentido mais profundo de encontro) mais motivação e sentido para sua energia criadora, para qualquer crença que o inspire, que passem pelo seu crivo individual. Acho que suas obras foram gritos desafogados de si e pensando que "o escritor escreve-se para que o leitor se leia" o corte dessa "comunicação" foi por uma distância incalculável que se deu.