Uma ameaça ronda o mundo dos livros: a ameaça do obscurantismo. A globalização econômica e financeira amplia a desigualdade entre ricos e pobres e os livros não escapam a essa lógica. Grupos estrangeiros compram editoras brasileiras e se estabelecem com planos avassaladores no mercado nacional. Grandes editoras brasileiras compram menores, acentuando o caráter de monopólio, agravando a tendência à homogeneização na produção de conhecimento e contribuindo para rebaixar o nível das publicações. Enquanto isso, o poder público, que deveria cumprir papel regulador, reproduz as distorções do "mercado" nas aquisições de acervos para bibliotecas e escolas.
Enfrentando contexto de forte concentração no setor, pequenos e médios editores –principais defensores do livro como um bem cultural (e não como simples mercadoria) e os que se dedicam a difundir idéias novas, descobrir autores e formar leitores– vêem-se obrigados a diminuir as tiragens e elevar o preço médio de suas publicações. Resultado, em parte, da política engendrada pelos conglomerados livreiros, que vendem espaços às megaeditoras e ocupam majoritariamente suas prateleiras com best-sellers –no mais das vezes volumes de auto-ajuda, esotéricos ou de mero entretenimento–, impondo o achatamento da oferta das obras ditas de conteúdo, cada dia mais dirigidas a uma reduzida elite intelectual.
A exigência de rentabilidade imediata faz com que a decisão sobre que livros publicar deixe de ser tomada pelos editores e passe às mãos das grandes livrarias (que escolhem as obras pelo seu potencial de venda, ditam o que comprar, de que forma, com que desconto!), ao que se rende parcela significativa de editores, fechando o ciclo do verdadeiro salve-se-quem-puder em que se transformou o mercado editorial.
Não se trata, fique claro, de reivindicar aqui "reserva de mercado" para as pequenas editoras, mas de iniciar a discussão sobre como defender o patrimônio maior da nação, a cultura. Em um país onde apenas 20% dos habitantes lêem livros, não podemos deixar nas mãos do mercado a decisão do que merece ser publicado. Ou aceitar, atônitos, essa máxima de que o mercado se rege por leis naturais, universais, inevitáveis. O dinheiro não pode comandar processo tão importante.
Num país periférico, o editor (não o proprietário de editora, muitas vezes um comerciante como tantos outros, mas o profissional do mundo das letras) não pode abdicar do seu papel de agente cultural. O mesmo se aplica aos livreiros e editores dos suplementos literários, pois o que está em jogo é a identidade, a diversidade e o pluralismo.
Mas tampouco os governantes compreendem seu lugar no mundo da cultura. Numa alarmante mistura entre o público e o mercado, as compras governamentais invariavelmente favorecem as mesmas grandes editoras. Sem um programa claro também nesse campo, o governo do PT mal tomou posse e fez a festa de 14 grupos editoriais, despendendo cerca de R$ 100 milhões, em 2003, na compra de coleções para escolas. Interessante notar que, como o Ministério da Educação é o maior comprador de livros do país (quiçá do mundo), são justamente as editoras de didáticos que despertam primeiro a cobiça das empresas estrangeiras, atraídas pelas benesses desse negócio milionário.
Para completar o triste quadro, temos ainda a mal ajambrada questão da "contrapartida social". A produção cultural no Brasil vive do dinheiro do contribuinte, mas não beneficia a sociedade na mesma proporção. Banqueiros e outros empresários posam de mecenas, lançam mão de conceitos elevados para financiar, às custas do erário, via Lei Rouanet, projetos editoriais luxuosos oferecidos como brindes e depois vendidos a peso de ouro. E, além de beneficiarem quem menos precisa, esses investimentos reforçam as desigualdades regionais, pois quase 90% deles convergem para os Estados do Sudeste, ficando regiões como Norte e Centro-Oeste com ínfimos 0,4% e 2,5% cada uma.
O Ministério da Cultura começa a rever os critérios dessas leis, em muito boa hora. Acredito na capacidade e no direito que o Estado possui de intervir em questões culturais, de chamar à responsabilidade social, fomentar e criar condições para que a produção cultural se dê, transferindo para a área pública o papel assumido pelas empresas e seus gerentes de marketing. Sem se dobrar à gritaria dos que se rebelam contra o "dirigismo cultural" mas nunca se dignaram a discutir o sentido social da literatura, da música, do cinema, do teatro ou das artes plásticas. O que os agenciadores das verbas de incentivo temem no diálogo entre poder público e sociedade é ter de abrir mão de privilégios e práticas que confinam a cultura aos limites medíocres do entretenimento.
Gramsci dizia que todo homem é um intelectual. Independentemente de sua classe social, ele quer entender o mundo que o rodeia, a sociedade e a história que a precede e explica. O livro é uma ferramenta capaz de explicar a história, de transformar o panorama intelectual do país e do mundo. Para que isso seja possível, autores, editores, educadores e livreiros precisam deixar de ficar calados, de cabeça baixa e mãos no bolso; precisam se lançar à missão de fazer do livro um bem a ser democratizado, formando leitores críticos, comprometidos com um futuro mais justo para a humanidade.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo, a 4 de outubro de 2004. Ivana Jinkings é editora da Boitempo e uma das fundadoras da Libre.
Deveríamos todos fazer uma frente contra o monopólio privado da cultura. Contra as redes, contra os grandes grupos que fazem do livro uma mercadoria como outra qualquer! regina helena oliveira, professora
Senhores, perdoem-me. Mas a mim só me resta uma dúvida: ser ingênuo ou hipócrita? Se há indignação é porque se acredita numa solução e não há solução. Cito o saudoso geografo Milton Santos: "de modo geral, e como resultado da globalização da economia, o espaço nacional é organizado para servir às grandes empresas hegemônicas e paga por isso um preço, tornado-se fragmentado, incoerente, anárquico para todos os demais atores." Pergunto: qual a classificação que poderemos dar ao livro? Já que se pretende que não seja uma mercadoria? Infelizmente vivemos a égide do "pensamento único" que, voltando ao Milton Santos, "...confunde a lógica do chamado mercado global com a lógica individual das empresas candidatas a permanecer ou a se instalar num dado país, o que exige a adoção de um conjunto de medidas que acabam assumindo um papel de condução geral da política econômica e social." Hoje os estados vêem comprometido o seu papel de reguladores. Sou um leitor que sofre, porque com baixo poder aquisitivo vejo-me privado de: comprar livros, frequentar salas de cinema e teatro. O texto trouxe-me à lembrança lúmpens diante de câmeras a clamarem por justiça. E cidadões da classe média, vestidos de branco,em passeatas, a clamarem a paz aos céus. Artaud num texto sobre o suicídio afirmou que ele é possível, mas inviável, pois o sujeito que se mata não é o mesmo que morre. Portanto, a mim só resta a hipocrisia. Fica a sugestão para quem sabe um administrador da hora lançar: o cinema a R$ 1,00 ou o teatro a R$ 1,00 ou, quem sabe, o livro a R$ 1,00? Sou um descrente, perdoem-me.
Sigam em frente.
Eu discutiria a colocação "limites medíocres do entretenimento" - porque, como leitora ávida, constante, há mais de 25 anos, sei por experiência que "entreter" não significa, obrigatoriamente, qualidade literária inferior (e por que seria algo "menor" se divertir, ora?), mas o artigo ainda assim está bom. Trabalho em biblioteca escolar e observo de perto algumas denúncias feitas nele.
São exatamente essas grandes redes que com seu volume alto de vendas podem patrocinar a publicação de livros que de outra forma teriam pouco retorno financeiro. É só entrar na livraria cultura, ali tem desde o Código Da Vinci até uma edição bilíngue italiano-latim da Eneida de Virgílio. É bom lembrar que essa entidade "mercado" são as pessoas, e seu movimento reflete as preferências dessas mesmas pessoas em relação às leituras. Esse discurso me cheira a puro elitismo intelectual de alguém que acha que sabe mais do que os outros e que as pessoas não devem ler o que querem, mas aquilo que ela acha que eles devem ler.
se nada for feito, dentro em pouco só teremos livros de auto-ajuda e esotéricos, negócios e etc. parabéns aos bravos editores que resistem a transformar cultura em mercadoria!