Os meios de comunicação se equivocam, quando pretendem impor à Bienal de São Paulo erros que pertencem aos artistas, ao curador e até aos visitantes, estes quase sempre ignorantes das novas linguagens da Arte atual. A Bienal é uma fundação que, a cada dois anos, é o suporte da arte produzida no mundo e mantém relação diplomática com os países convidados. E é também a visão de um curador contratado. Pelo regulamento, os países são convidados pela via diplomática. O Itamaraty (ou seja, o governo do Brasil) é que convida. Isto implica em uma posição política alheia à mostra internacional e, portanto, nada tem a ver com arte. Este é o principal empecilho para que a Bienal se modernize e cumpra seu papel. Política é política; arte é arte, não é? Errado. As duas coisas se confundem e se fundem na Fundação Bienal.
Até 1977, quando fiz parte da curadoria, a Bienal aceitava tudo aquilo que os países convidados mandassem. Era a diplomacia. Não havia uma leitura possível, uma vez que, ao lado dos Estados Unidos, que traziam um artista de linguagem contemporânea, exibia-se o pobre Haiti, com um artista primitivo, com seus três quadrinhos embrulhados em jornal e o artista chegando de carona. Isso eu presenciei várias vezes em países da América Central, sem dinheiro para pagar sequer a viagem do seu representante.
Em 1977, pela primeira vez, a Bienal teve uma programação cultural, graças ao empenho do Conselho de Arte e Cultura. O curador da mostra era um colegiado com sete membros: Alberto Beuttenmüller, Maria Bonomi, Leopoldo Raimo, o arquiteto Mindlin, Yolanda Mohalyi, Clarival Valladares e o vice-presidente Rodrigues Alves. Apesar disso, coube-me a viagem aos países para explicar o regulamento e ver se estavam dentro dos conceitos, bem como o texto final, redigido por este redator e assinado por todos. Exemplo de democracia em tempos de ditadura militar. O regulamento nasceu do próprio circuito de arte; e foram selecionadas sete linguagens contemporâneas, desde o vídeo, dos anos 60, à Arte Catastrófica, que emergira havia pouco mais de três anos. Foi o modo de driblar a política. O regulamento era conceitual e ninguém entendeu nada. Assim, os representantes da diplomacia vieram até nós para compreender e lhes demos uma relação de artistas dos seus próprios países, que se enquadravam em cada uma das sete propostas.
O exemplo acima serve para que o leitor entenda as dificuldades de montar-se uma Bienal. O Alfons Hug deve ter passado o diabo para conseguir montar a 25ª Bienal, apesar de que esta possui um tema que envolve o público, mas este mesmo público está defasado em relação às conquistas da Arte Contemporânea. A Arte de Linguagem Contemporânea parte de conceitos da própria Arte e o faz de modo auto-referente. Ou seja, se você, leitor, desconhece as referências dessa linguagem, fica atônito e se sente constrangido e, claro, nada entende...
A linguagem possui no seu âmago dois elementos que são antagônicos entre si: o Sistema de regras, de conceitos, de elementos, e a Expressão. Quando o artista obedece a um Sistema rígido, como Piet Mondrian, por exemplo, o Sistema é dito fechado; quando o artista privilegia a Expressão, como Vincent van Gogh, o sistema se diz aberto. Assim, quanto mais rigor, menos expressão e vice-versa. Ora, o observador que dizia entender a pintura figurativa, não a entendia, mas sim a reconhecia. Ele não analisava a composição, a perspectiva, o equilíbrio das cores, apenas reconhecia o mar, as montanhas, as árvores etc.
Este mesmo público quer entender (seria melhor sentir) a Arte Contemporânea, uma linguagem que se refere a si própria, que não sai do seu universo, que mais parece um ensaio sobre a arte, em vez de ter qualquer elo com a sociedade e com o humanismo.
A Arte Conceitual nasceu com Marcel Duchamp (1887-1968), o destruidor de todos os conceitos de Arte; em troca, criou novos conceitos, com o intuito de desmistificar a Arte, que era vista por um prisma romântico, uma inspiração dos deuses. Duchamp destruiu até a própria definição de Arte. Duas definições importantes são as de Hegel e de Heidegger. A de Hegel diz: "Arte é manifestação do espírito que o próprio espírito vem a superar" – um conceito dialético. A de Heidegger: "Arte é a projeção da verdade do ser como obra". Verdade, em Heidegger é advento, é um acontecer, um fazer-se temporal cujas figuras mundanas variam.
Duchamp, ao criar os ready-mades, o já feito, criou um produto industrial, que se tornou arte, somente por ele ter-se dele apropriado e ter-lhe dado um nome. A Arte deixava de ser uma manifestação do espírito e também não mais poderia ser a projeção da verdade do Ser. Para exemplificar, o porta-garrafas de Duchamp era em si mesmo um produto da indústria, no qual Duchamp sequer colocou a mão. Virou Arte somente porque ele o nomeou. Para Duchamp, o artista não mais poderia competir com a indústria, pois ela produzia artefatos impecáveis; assim o artista da nova era nomearia o que lhe parecia ser Arte, acumulando ainda o papel de crítico.
A Arte atual, esta que se vê na 25ª Bienal de São Paulo, possui uma linguagem que se auto-refere e é um idioma pós-Duchamp. Não há mais qualquer referência à natureza ou à realidade, mas uma discussão acerca das definições de Arte e dos seus elementos. Uma escultura discute suas dimensões e, por isso, há esculturas bidimensionais, rompendo com o volume. Até o ar que a envolve, não só faz parte dela, mas a integra. A pintura deixou de ser bidimensional para ser um ensaio sobre cores. As técnicas tradicionais, que definiam a escultura, a gravura, o desenho, a pintura deixaram de sê-lo. Uma pintura pode ser uma tela colorida de três dimensões ou um acúmulo de objetos, como na obra de Nuno Ramos, por exemplo. O observador precisa decodificar o conceito que está sendo discutido pelo artista na obra, além da própria definição de arte. Arte é tudo aquilo que você crê que seja Arte; e isso é um alívio. Nem tudo que foi exibido nesta 25ª Bienal, pois, é Arte, bem como tudo que faz parte dos acervos de museus e galerias.
Será que a Bienal já não cumpriu o seu papel de informar as novidades da Arte Contemporânea e formar opinião sobre os novos conceitos? Entrevistando Alfons Hug, ele disse que o Núcleo Histórico foi abandonado porque os centros culturais e até galerias já expõem obras dos artistas históricos. Como exemplo, citamos a pequena retrospectiva de Jesus Rafael Soto, na Dan Galeria.
A pergunta que não quer calar: será que a Bienal ainda traz novos conceitos de arte? Ou será que as galerias e os centros culturais já cumprem este papel? As Bienais dos anos 50 e 60 tinham um papel inovador, mas a partir dos anos 90, com a Internet e com as revistas especializadas on-line, o internauta pode hoje surfar nas ondas das novidades de qualquer museu ou galeria de arte. A Internet está inclusive obrigando as galerias a se tornarem mais atualizadas. Volto a Dan Galeria com a exposição de Soto, um dos papas da arte cinética venezuelana e que, outrora, esteve em diversas bienais dos anos 60. A Dan Galeria vendia somente artistas modernos e já está chegando ao pós-moderno, embora com atraso. A Brito Cimino só faz exposições de artistas conceituais e até a Nara Roesler exibe instalações em seu espaço. Mas voltemos à Bienal.
Nas salas especiais dessa 25ª Bienal pode se ver melhor os conceitos que o público desconhece. A escultura de Carlos Fajardo, dentro de um labirinto, discute o isolamento da arte, mas também é um bloco de granito deitado no chão, a nos propor que não há volume, que ela é bidimensional e que ela rompe com a escultura tradicional de ser um volume no espaço.
A Arte Conceitual é um enigma e tem a ver com a definição de como a verdade acontece na filosofia de Heidegger. "De que maneira a verdade acontece?" – pergunta Heidegger. Ele próprio responde: "um dos modos como a verdade acontece é o ser obra da obra".
Nota do Editor
Texto inédito, especialmente redigido pelo autor, para o Digestivo Cultural. Alberto Beuttenmüller é poeta, jornalista e crítico de arte (membro da AICA). Foi curador da 14ª Bienal de São Paulo e da I Bienal Latino-Americana de 1978.
No oitavo dia desta última Bienal, um estudante de jornalismo, não sei bem como, conseguiu pregar um quadro pitando por ele mesmo numa parede da exposição. E só foi pedi-lo de volta quando, encerrado o evento, as obras estavam sendo recolhidas. Ninguém da organização percebeu a obra pirata. Ou seja: decididamente, não há qualquer diferença entre o que eu ou esse jornalista colorimos em casa do que é exposto na Bienal. A intenção do pintor amador, diga-se, foi exatamente criticar a organização da mostra. Alfons Hug deveria, se lhe restasse vergonha na cara, pedir desculpas publicamente, no mínimo, porque isso é uma palhaçada - que confirma, ainda, a palhaçada que é o evento pelo qual ele é, em parte, responsável. Mas não: disse que o cara tinha vocação para a Arte Conceitual, considerando o sucesso de sua performance. Ridículo.
As Bienais dos anos 50 e 60 tinham um caráter inovador, conforme foi dito, e depois, na década de 90, os salões são invadidos pelas cinzentas instalações de amontoados, quinquilharias, espaços vazios de arte e poesia. Os belos salões de arquitetura impecável rendidos expõem, dão força, publicam, apoiam e vendem a falsa imagem, num bárbaro retrato da morte da beleza e da vida. Arte Moderna,que é isso? Conceito que é senão o modo de reduzir, de expremer, comprimir, sufocar o que nasceu para expandir-se levemente na dança das cores das luzes, ternas, voláteis? Ai de nós artistas de muitos sonhos, nós pintores de mil pinceladas, de almas sedentas de novos matizes. A tela era nosso espelho, clamando por um gesto original, ardente quase cantante na busca da harmonia. O que faz um artista que há 30 anos faz do pincel sua batuta, que se entrega de alma ao seu oasis vibrante, um vivo caleidoscópio onde retira o sustento do corpo, para intensa e verdadeiramente viver? Quando as Bienais vão voltar a promover e exaltar a delicadeza da Arte? Quando o anônimo poderá mostrar sua arte, adentrar os nobres salões e com
dignidade e cabeça erguida, viver? Poeta, veja meus trabalhos e me diga onde é que estou errando? Meus melhores estão latejando dentro de mim, gritando para nascer. E é por eles que insisto. Um grande abraço, Adheir