A República Dominicana divide uma ilha pequena com o miserável Haiti no Mar do Caribe, também é pobre e não tem notáveis atrações turísticas. Mas um episódio de sua história recente dá um bom exemplo de um tipo peculiar de regime que prevaleceu na América Latina inteira: o ditador Rafael Leonidas Trujillo Molina tem todas as qualificações biográficas do tipo de tiranete que mandou e desmandou em épocas diferentes em todos os países do subcontinente, mais ou menos ricos, mais ou menos populosos.
Como Bolívar, San Martín, Perón ou Pérez Jimenez, ele era militar, mas não um oficial pançudo à feição do desastrado sargento Garcia e, sim, um oficial com talentos de espião que se fez notar pelos comandantes das tropas de fuzileiros navais dos Estados Unidos, potência onde ele, como nove entre dez ditadores, logo encontrou apoio e guarida. Com um bigodinho fino, ao estilo do de Hitler e dos galãs de cinema da época, imitava Napoleão no vestir e usava assessores para levar mocinhas ao leito. O playboy Porfírio Rubirosa, também dominicano e famoso no jet set internacional pelas dimensões avantajadas de seu membro viril, foi seu genro (casou-se com Flor de Oro, filha do ditador) e protegido, compartilhando estrelas de Hollywood e socialites européias com os filhos dele, que tinham nomes de heróis egípcios (Ramfis e Radhamés), como convinha a quem pretendia ser rival dos faraós em poderio e longevidade.
Essas características são habilmente descritas nas páginas do romance A festa do Bode (Mandarim, 456 páginas, R$ 37), no qual o escritor peruano Mario Vargas Llosa exercita suas habilidades de ficcionista e seu conhecimento de causa sobre um tema que domina como poucos de seus colegas no mundo: o poder absoluto, em sua versão cucaracha. O Bode do título, bicho-símbolo da resistência à aridez e iguaria típica da cozinha latino-americana, dos mares do Caribe aos sertões do Nordeste brasileiro, foi inspirado na alcunha do tema do texto. Lá e cá, o rei dos chiqueiros de cabras é identificado com o macho promíscuo que espalha seu sêmen pelas fêmeas da tribo – papel que o ditador dominicano procurou exercer, ainda quando a próstata inflamada cobrou-lhe o dízimo da impotência. Um dos episódios mais chocantes – e nem por isso menos realista – do romance é o de sua tentativa de desvirginar a protagonista, Urania Cabral, usando o dedo para compensar brutalmente a impossibilidade da penetração convencional.
O sexo com súditas forçadas (no México, o “derecho de pernada”) era apenas mais um dos sinais externos do abuso de autoridade típico dos regimes personalistas sob cujo jugo a América Latina tem vivido desde as priscas eras em que deixou de ser colônia de Espanha e Portugal. Mario Vargas Llosa é um narrador superdotado de episódios fictícios, mas coerentes com a vida real e com a História de verdade, sendo capazes de substituir quaisquer discursos teóricos a respeito de mecanismos políticos e administrativos. Da mesma forma como se saiu magistralmente em A guerra do fim do mundo sobre o episódio de Canudos, retratou o Caribe hispânico de forma a não deixar reparos a serem feitos pelo leitor mais atento.
Ele descreveu Trujillo como uma espécie de Édipo tropical, que cultuava de forma peculiar a personalidade de sua mãe, a “Excelsa Matrona”, tema constante de homenagens na rede escolar e alvo permanente de pleitos ao todo-poderoso rebento. A casa materna era parada obrigatória do jogging diário que o tirano fazia pelas ruas da capital, Santo Domingo, rebatizada com seu nome: Ciudad Trujillo. Essas caminhadas, em que os áulicos se revezavam para ficar ao alcance dos olhos, da boca e, sobretudo, dos tímpanos de Sua Excelência, atendendo a sinais sutis que ele mesmo emitia, são metáforas exatas do funcionamento do absolutismo em culturas desacostumadas às instituições democráticas como o são as antigas colônias ibéricas na América.
O retrato da patota cortesã, que o acompanhava nessas caminhadas, foi traçado com impiedade por Vargas Llosa. Pelo texto, traduzido com precisão e graça pelo jornalista brasileiro Wladir Dupont, que tem a vantagem de escrever em castelhano e viver na Cidade do México, desfilam figuras impagáveis. Uma é o perverso Johnny Abes, cuja crueldade foi premiada com uma patente de coronel. Outra, o senador Henry Chirinos, apelidado pelo povo de Constitucionalista Bêbado, por sempre dispor de alto teor alcoólico no sangue e estar de prontidão para achar alguma justificativa legal e até constitucional para os desmandos do Chefe. Este o chamava de Imundície Vivente, por causa da mania que ele tinha de alisar os tufos sebosos de pêlos que se acumulavam em suas orelhas. Que outro países latino-americano, maior ou menor, mais rico ou mais pobre do que a República Dominicana, pode jactar-se de não ter produzido personagens como esses, hein?
Num levantamento completo como esse não poderiam faltar evidências de uma característica comum aos regimes do gênero: a forma como os negócios públicos misturam-se com os privados, no caso administrados pelo especialista em economia e perpétuo parlamentar Henry Chirinos, que “foi tudo o que se poderia ser nos trinta anos da Era: deputado, senador, ministro da Justiça, membro do Tribunal Cosntitucional, embaixador plenipotenciário e encarregado de negócios, presidente do Banco Central, presidente do Instituto Trujilloniano, membro da Junta Central do Partido Dominicano e, há um par de anos, o cargo de maior confiança, supervisor das empresas do Benfeitor. Como tal, a ele estavam subordinados os ministérios da Agricultura, do Comércio e das Finanças”. Mas enriquecimento pessoal não era a paixão peculiar do chefão, que manipulava dinheiro das contas bancárias pessoais fundamentalmente para investir em publicidade e comprar aliados poderosos nos Estados Unidos. Em compensação, seus irmãos, a mulher e os filhos construíram à sombra dele um império patrimonial, tornando a família “dona” do país, ao se apropriar, ao longo de seu mandarinato, de 70% da terra cultivável e 90% de toda a indústria dominicana.
O contraponto ao personalismo, à crueldade e à corrupção da ditadura é representado por duas ilusões recorrentes, não só na República Dominicana daqueles tempos, mas em todos os nossos países desde sempre até agora. A primeira delas é de que basta eliminar fisicamente o ditador para que o castelo de cartas da tirania desabe. A outra é de que basta a democracia, uma democracia de verdade, com voto unitário e plural, para restaurar um país, devolvendo o poder à sociedade, por muito tempo subjugada a um tiranete qualquer.
Mario Vargas Llosa promove uma minuciosa demolição desses dois mitos, dedicando praticamente um terço de todo o seu texto à longa espera noite adentro, às lembranças e às vidas dos assassinos do Generalíssimo. Movidos pela desilusão em relação ao regime, por antigos conceitos de honra e até por fé religiosa, os assassinos de Trujillo funcionaram como uma espécie de mão armada de um destino inexorável. Em 1961, quando o Belair azul-claro 1957 em que o ditador viajava foi picotado de balas, sua ditadura não tinha mais tanto fôlego para resistir ao cerco financeiro e político do ex-aliado a norte do Caribe, manifestado pelas pressões de sempre, a começar pela resistência explícita do clero católico.
A humilhante incontinência urinária e outras evidências de decadência física (descritos com perversa ironia por Vargas Llosa) não eram os únicos males que abatiam o ditador, antes de ser fuzilado num carro em movimento. Na prática, ele já era um cadáver político, cuja sobrevivência não interessava mais a seus antigos protetores num mundo que mudou à sua distância e revelia e onde não havia mais lugar para arrocho político, mesmo quando tido como condição para a pujança econômica (quem não se lembra do “milagre brasileiro”?).
Ainda assim, os donos das mãos que assinaram na vida real a sentença de morte do inconveniente ex-aliado não usufruíram de honrarias de heróis. Ao contrário, o quebra-cabeças, do qual o atentado na estrada era somente uma peça, não foi montado como se esperava e os responsáveis pelo alívio representado pela supressão daquele foco de incômodo foram entregues à sanha dos brutais e corruptos irmãos e filhos do ditador pelas mãos melífluas de um personagem que merece destaque quase igual ao do tema central do texto: o bacharel Joaquín Balaguer, que até hoje, aos 94 anos e cego, manipula os cordéis da política dominicana na frágil democracia construída sobre a tumba do Generalíssimo.
Como se adivinhasse em que mãos o poder cairia após sua morte, certa vez o próprio Trujillo perguntou àquele auxiliar sistemático, assexuado e despido de quaisquer marcas pessoais de carisma ou sedução, o que o motivava na vida. Vargas Llosa pôs na boca do Bode a questão central sobre a personalidade de seu sucessor: “Há algo de desumano em você (....) Não tem os apetites naturais dos homens. Que eu saiba, você não gosta de mulheres nem de rapazes. (...) Não bebe, não fuma, não corre atrás de saias, nem do dinheiro, nem do poder. Você é assim mesmo? Ou essa conduta é uma estratégia com um desígnio secreto?” Não foi ainda daquela vez que o Chefe arrancou uma confissão sincera do presidente da República, que lhe era subordinado num arranjo tantas vezes repetido na América (o próprio Fidel Castro deu-se ao luxo de escolher cubanos ilustres para interpretar esse papel de títere). Serenamente, sem se mostrar aborrecido nem diminuído, no mesmo tom de voz monocórdio que usava para conversar ou discursar, Balaguer respondeu-lhe: “Desde que conheci Sua Excelência, naquela manhã de abril de 1930, meu único vício foi servi-lo. Desde aquele momento, soube que, servindo Trujillo, serviria meu país. Isso enriqueceu minha vida mais do que poderia fazer uma mulher, o dinheiro ou o poder”.
Essa pessoa, aparentemente desprovida de espinha dorsal, mostrou que não foram vãs as duras lições de sobrevivência aprendidas em 30 anos de ditadura. Com habilidade digna de um Getúlio Vargas e capacidade de manipulação de matar Haya de la Torre de inveja, deixou a família enlutada triturar os ossos e se nutrir do sangue dos assassinos do Chefe para se assenhorear do poder, adaptando-se à nova ordem interna e externa com a mesma capacidade camaleônica com que houvera servido à antiga tirania, enfim extinta.
Dos assassinos do ditador cuja ditadura não servia mais para o país nem para seus ex-aliados, Amadito García Guerrero, Juan Tomás Díaz, Antonio de la Maza e Salvador Estrella Sadhalá pagaram com o próprio martírio pessoal. Apenas dois dos conspiradores, Antonio Imbert e Luis Amiama, conseguiram esconder-se, sobreviver à retirada negociada dos remanescentes da família Trujillo e, afinal, receberam os louros pelo atrevimento de seu ato extremo. O senador Henry Chirinos apresentou ao Congresso (“O mesmo Congresso de Trujillo, sim senhor”) uma lei nomeando Antonio Imbert e Luis Amiama generais de três estrelas do Exército Dominicano, “por extraordinários serviços prestados à Nação”. O presidente da nova fase da República de sempre, que antes criticara a ditadura na ONU e se comprometera a democratizar o país, os receberia no palácio. A cena ganha a condição de símbolo e emblema na descrição de Vargas Llosa: “Sorrindo e com expressão de profunda alegria, o doutor Joaquin Balaguer foi até eles, sob os flashes dos fotógrafos, os braços abertos”.
Eis a lição encerrada no texto de A festa do Bode: ditadores como o dominicano Rafael Leonidas Trujillo Molina encarnam à perfeição vícios entranhados na organização social, econômica e política de nossos países e, por isso, são entronizados no poder. Mas seu desaparecimento, seja por morte natural, seja a tiros, não leva necessariamente à súbita substituição desses vícios por uma nova ordem mais justa e mais igualitária. Em nossos países de instituições frágeis e cidadania desarranjada, não basta eliminar as evidências físicas do absolutismo personalista malsão. Mas é preciso minar-lhe as bases num combate exaustivo, paciente e repetitivo às manias e distorções arraigadas desde as origens mais remotas de nossa desorganização social.
A falsa expectativa do extermínio da ditadura com a eliminação física do ditador se enraíza no mesmo solo onde se nutre a ilusão de que um herói solitário seria capaz de corrigir distorções que têm base em práticas sociais ancestrais e velhos defeitos de caráter nacional. Cometem-se tais enganos desde sempre e foram se repetindo em gestões como as de Hugo Chávez na Venezuela e Alberto Fujimori no Peru. Assim também se ilude quem imaginar que bastará Fidel Castro morrer para Cuba ser redemocratizada e se abrir ao mundo livre.
Da mesma forma, como prova a recente safra de frágeis regimes democráticos latino-americanos (e certamente o Brasil de FHC não é e o México de Vicente Fox não será uma exceção), a liberdade de imprensa e o voto livre podem continuar sendo condições indispensáveis para o usufruto das liberdades políticas a que todos têm direito, mas certamente não dispensam outras. Essas democracias que repetem erros da tirania não são a panacéia universal para curar a miséria e outros males ancestrais de nossos países, mas só os têm empurrado adiante com a barriga (vazia). Sem o exercício pleno da cidadania e o funcionamento impessoal das instituições, nada produzirá o efeito benéfico que nos livrará de todo o Mal.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno de Leitura Sábado", do Jornal da Tarde.
É de estontear o Nêumanne cáustico e contundente desse ensaio. Ao analisar A Festa do Bode, vai além da crítica literária. Aproveita o "mote" para dar uma lição histórica. Expõe os tumores da tirania tão íntima aos países latino-americanos, somando-se a V. Llosa na demolição dos mitos que confeitam a podridão da nossa miséria política. Terrível e necessário.