Estar sendo. Ter sido é o livro mais surpreendente de Hilda Hilst (1930-2004), poeta que foi musa de Carlos Drummond e Vinícius de Moraes. Hilst nunca foi reconhecida pela crítica impressionista ou pela crítica de influência psicanalítica. Há certos críticos que sustentam que as teorias explicam as obras e não o contrário. O leitor de jornal não está interessado em teoria articulada pelos críticos acadêmicos, não quer saber de um texto hermético que tem sentido na sala de aula, mas não nas páginas de um jornal.
O público leitor de jornal prefere o texto inteligível, claro, objetivo. O leitor espera do resenhista "a descrição do livro e uma apreciação de sua qualidade", e não uma crítica dirigida ao escritor. E são esses adoráveis críticos que assaltaram os cadernos de cultura dos jornais que não reconheceram Hilda Hilst como um dos melhores poetas vivos do país.
Estar sendo. Ter sido é um livro que trata das aflições eróticas de um senhor de 65 anos, Vittorio, meio desesperado, tentando entender o sentido da vida e da morte. Vittorio é um "personagem-máscara" de Hilda, atormentado com a possibilidade da loucura. Vive entre receitas de drinques e suicídios. Mora na praia com seu filho Júnior, nadador e fodedor, "jumento como o pai" e com Matias, seu outro irmão. E ainda com cães, gansos e livros.
O romance é norteado pela sexualidade e pelo desejo. A história é certamente verdadeira. A narrativa passa do lirismo ao escracho. As histórias picantes, contadas por Vittorio, "são um oásis necessário entre os textos de enorme intensidade lírico-trágica", textos escritos sob uma perspectiva metalinguística.
Estar sendo... é mais inovador no trato da língua do que na trama do enredo. Hilst intercala prosa poética, teatro e poesia. A autora apresenta uma forma singular de pontuação. A sintaxe é meio telegráfica. O estilo é totalmente livre. Hilst recorre às suas lembranças ficcionais e faz referências a autores como Ovídio, Shakespeare, Jorge de Lima, Mishima, Francis Bacon, Vieira, Oscar Wilde, o pai-poeta Apolonio Hilst e o sempre-amigo Mora Fuentes.
Mas o universo ficcional de Hilst aponta afinidades principalmente com o de James Joyce. Essa aproximação não é só em relação aos aspectos formais, como a narrativa centrada na consciência da personagem. Ela pode ser constatada também no senso cômico dos personagens, que beira o grotesco, a ironia, a sátira. Ulisses, de Joyce, apresenta um número infindável de personagens cômicos. É um livro que nos faz rir às gargalhadas, como o Finnegans Wake, com sua linguagem fundada nas possibilidades cômicas do inglês.
"Enquanto o cômico é a percepção do oposto", observou Pirandello, "o humorismo é o sentimento do oposto (...) Nesse movimento eu já não me sinto superior e distante em relação à personagem animalesca que age contra as boas regras, mas começo a identificar-me com ela, sofro seu drama e minha risada se transforma em sorriso."
Hilst, através desse recurso, segundo Clara Silveira e Edson Costa, na apresentação do livro, cria uma "catarse anticatártica", pois prende o leitor numa teia narrativa que gera repulsa e identificação ao mesmo tempo. Vittorio nos apresenta um mundo às avessas, instável e contraditório. Perigoso e fundo como o Lago Averno, a entrada do inferno. "Perdi o caminho de dentro de mim mesmo. vou esmaecendo. girassóis e sombras, ouro e luto, contrastes. (...) entrei no lago Averno. lá não há pássaros. é a estrada do sem fim o lago Averno. aí uns grandalhões me sorriram: vai entrar no lago sim. escureceu. vi uma trilha de fogo, e anjos dourados sobre negros cavalos."
Vittorio, escritor e bebedor contumaz, é um personagem demoníaco, reencontra nas memórias da juventude o rosto sedutor de seus fantasmas: "É sempre uma névoa que vem vindo como se fosse o perfil esquálido de uma aranha."
Fragmento
“(...) e nenhuma emoção, só essa de estar aqui se dizendo. Cores, calêndulas, anêmonas, espumas sobre um rio leitoso, onde? Onde? Alguém se atirou no Ouse... quem? Não gostaria de morrer afogado não, sei que se vê a vida inteira dizem, não quero ver minha vida inteira, nem um pequeno trecho desta vida, sentir ainda seria alguma coisa, sentir o quê, Vittorio? Um certo brilho uma certa cara, a descoberta de ter escrito: "Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso". Um frio comediante o tal Deus. Gostei quando escrevi isso. Ancorado no riso, isso é bom, a descoberta de ser desprezado, de não ser, de ser apenas um corpo envelhecendo, uma boca vazia agora silenciosa, não neste instante silenciosa, mas uma eternidade silenciosas, e isso também de não ter entendido nada, isso soa penoso e sinistro mas não é...”
Nota do Editor
Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Publicado no caderno "Idéias", do Jornal do Brasil, em 12 de julho de 1997.
Gostei bastante do texto. Identifico-me com este estilo de literatura que você sintetizou. Contradições humanas, pensando, criando e não julgando... Um abraço, Tânia
Quando soube da morte de Hilda, reli algum conto de Caio Fernando -sendo que já que ele era amigo da escritora e eu não possuía nenhum volume dela- em Morangos Mofados, como forma de resgatá-la. Enquanto isso, alguém que eu conheci na época a homenageou de modo diferente: roubou um volume de Hilda da biblioteca da cidade. De qualquer forma, ninguém pode acusá-lo de não ser original. Sinceramente, Ayron de Melo.