Mais antiga instituição cultural do país e uma das mais importantes, a Biblioteca Nacional vive há décadas uma crise crônica e silenciosa, e está hoje muito mais doente do que se aceita admitir. Orçamentos minguados e tratamento salarial indigno dos funcionários de carreira levaram a uma situação dramática: são apenas 300 os servidores concursados ativos quando o mínimo necessário seria de pelo menos o dobro. A idade média destes é de 50 anos, o salário médio em torno de R$ 900 e o poder aquisitivo atual – após 12 anos sem reajuste – é uma quinta parte daquele de 1993. Quase todos os funcionários têm mais de vinte anos de casa, pois sem concursos públicos a instituição não renova seus quadros há mais de quinze. Como presidente da Biblioteca Nacional, vi como maior urgência da instituição uma decisão que depende dos Ministérios do Planejamento e da Fazenda: restaurar a dignidade dos servidores, criar um plano de carreira e pelo menos dobrar os efetivos por meio de concursos. Estes também deveriam trazer historiadores e outros especialistas para um quadro funcional que foi obrigado a esquecer a pesquisa, e que tenta manter o acervo com admirável dedicação, em tais circunstâncias.
Assim, todos os órgãos da Cultura passaram quase seis meses em greve no último ano, o que alterou rotinas administrativas e de segurança. Nesse contexto ocorreu um furto grave de centenas de fotos e gravuras antigas do acervo, que só foi descoberto depois da volta ao trabalho. A Justiça decretou segredo sobre o inquérito para não prejudicar as investigações conduzidas pelo Ministério da Justiça e pela Polícia Federal.
São poucos os funcionários disponíveis e competentes para as tarefas mais complexas da administração e por isso muitos equívocos acabam sendo cometidos. Corrigi-los foi um esforço constante desde 2003, assim como as infindáveis romarias à Brasília para conseguir pequenas verbas para grandes emergências num governo que não demonstra valorizar a Cultura.
Ouve-se sempre dizer que a coleção da Biblioteca Nacional é das mais notáveis do mundo, e que do Brasil a Biblioteca tem tudo. Não tem. Longe disso. Muita coisa está em péssimo estado e faltam centenas de milhares de peças indispensáveis para o acervo de uma Biblioteca Nacional do Brasil. Nunca as teve, perdeu muita coisa comida por cupins no passado e em roubos sucessivos, restaurou o que pôde e repôs muito pouco. Preencher as lacunas é uma urgência patriótica, mas custará muito dinheiro.
Reformar a Biblioteca Nacional é tarefa hercúlea, necessita de um plano de trabalho contínuo, de pelo menos dez anos e de um enorme orçamento. Mas nada que precise chegar perto do esforço da França que gastou R$ 5 bilhões com sua nova Biblioteca Nacional. Com cinqüenta vezes menos, algo como R$100 milhões dedicados ao acervo, já seria possível realizar prodígios.
Diante da penúria, restou-me a opção de divulgar ao máximo o patrimônio da Biblioteca. Foi criada uma revista mensal de história do Brasil, inicialmente com o nome de Nossa História e agora, Revista de História da Biblioteca Nacional, que trouxe uma visibilidade inédita para as atividades e o acervo da instituição. Mas novidades são mal recebidas por setores corporativos, e mesmo uma iniciativa de grande sucesso, apoiada gratuitamente por um conselho de destacados historiadores convidados pela Biblioteca foi também motivo de polêmica. Resta a triste impressão de que nenhuma ação criativa nesta área do setor público pode ser simplesmente atribuída ao idealismo. Busca-se sempre identificar motivos inconfessáveis ou interesses escusos. Concluo que só existe consenso em torno do imobilismo.
De janeiro de 2003 até hoje, não pude, sem recursos, mudar em profundidade o quadro que encontrei. Diante da impossibilidade de completar tarefa tão ampla, com um horizonte curto e face ao legítimo desânimo dos funcionários há tanto tempo aviltados, é melhor agora me demitir do que insistir no impossível, no qual por quase três anos quis acreditar.
Apesar dos esforços do Ministro Gilberto Gil para aumentar o orçamento da Cultura, a situação da Biblioteca Nacional hoje é comparável à de uma criança pobre que sofre de uma doença rara, curável, mas mortal se não for tratada. Pessoas de boa vontade tentam cuidá-la com paliativos, mas o tratamento completo é muito caro; salvar a criança depende de querer pagá-lo. Na base da aspirina, só dá para disfarçar.
Não sou médico de milagres e deixo agora para outros a tarefa de continuar o boca-a-boca no moribundo. Mas, como cidadão, quero acreditar na sua cura. Encerro estes mil dias como um sonho inacabado e com a grande esperança de, no futuro, ver surgir uma vontade política que dê à Biblioteca Nacional seu pleno papel na Cultura Brasileira.
Sobre o autor
Pedro Corrêa do Lago, 47, bibliófilo, colecionador e editor pediu demissão da presidência da Fundação Biblioteca Nacional na quinta-feira, 6 de outubro. É autor de 12 livros sobre arte e cultura brasileiras.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Este artigo foi publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo de 10 de outubro de 2005.
Se o governo antigo cometeu desastres com a cultura, este governo, eleito para mudanças em todos os sentidos, desgraça furiosamente com seu desleixo e falta de preparo as forças culturais públicas ainda restantes do pais.