O presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976) voltou à boca do povo depois de décadas de hibernação. A série JK da Globo faz sucesso na televisão e incentiva o lançamento de livros sobre aquele que é tido hoje como o melhor dos estadistas que o Brasil já teve. É uma oportunidade para rever e reinterpretar o passado brasileiro. Será que JK foi tudo isso que a série e os livros mostram ou mais uma vez a gente embarca na ilusão de ter sido um povo feliz?
Até o retorno da História por meio da novela, as massas identificavam a sigla JK como propriedade da escritora escocesa JK Rowling, a bilionária autora de Harry Potter. Os brasileiros, graças à TV, restituíram à pátria a sigla sagrada. Que povo heróico! Agora JK passa a ser JW, pois será interpretado em sua fase madura pelo galã cearense José Wilker. Wagner Moura, o ator cult baiano, viveu Juscelino romântico de Diamantina, das serestas e das conquistas no mundo encantado da mineiridade. O novo modelito de JK, o do monumento inaugurado em 1985, o do sorriso acenando do alto de uma escada de avião, ganha um pouco do travo amargo das interpretações de Wilker, um grande ator que já fez vários mitos brasileiros nas telas, de Tiradentes a Antônio Conselheiro. O Juscelino real parecia mais cordial e cândido que JW. Mas vá lá, o que importa é a diversão. E História hoje no Brasil é isto: entretenimento, lazer, religião de consumo, porque nem os fatos escapam da centrífuga ficcional que converte seres históricos em heróis de folhetim.
Diga-se em defesa da nossa gente: o Brasil não é o único país onde os governantes do passado se convertem em galãs de novela. Alemanha, Estados Unidos, Rússia e tantas outras nações se deliciam em tornar indivíduos com defeitos e virtudes em heróis inquestionáveis. O que nos distingue das outras culturas é a visão redentora e otimista, o modo ingênuo como lidamos com o passado. Adoramos escamotear os pontos negativos, para assim cultuarmos mais e melhor nossos ídolos. E muitas vezes biltres voltam do mundo dos mortos revestidos de um título reluzente de pai da pátria. Não, não é o caso de JK, de fato um dos maiores presidentes do Brasil, o construtor de Brasília e do projeto de interiorização do Brasil, homem de reputação ilibada que morreu pobre e alijado do processo político, mártir da ditadura, vítima de um acidente de carro na Via Dutra até hoje revestido de mistério.
Há muitas questões ainda a ser levantadas em torno das circunstâncias factuais de vida e morte e em relação a uma reinterpretação do legado de um governo político. No Brasil, porém, a ausência de maior formação intelectual ou simplesmente a pressa leva os escritores e sábios a preferir a ficção à análise, o folhetim ao exame mais aprofundado dos fatos. Basta mencionar um dos lançamentos recentes em torno do vulto pátrio: o romance Bela Noite para Voar (Relume Dumará, 2005, 176 págs.), do escritor mineiro Pedro Rogério Moreira. O subtítulo da obra é bizarro: "Um folhetim estrelado por J.K.". Mas não deixa de pegar a onda atual, de converter JK em galã. Pelo menos parece que não é um galã canastrão. O romance de Moreira, de 50 anos, não tem nada de ruim. Na verdade, JK é pretexto para o escritor estreante voar pelos céus da juventude e relembrar ícones e amores passados – um pouco à maneira de Umberto Eco no magnífico romance A Misteriosa Chama da Rainha Loana (Record, 2005, 456 págs.). A exemplo de Eco, o retorno ao ontem ganha ares de fantasia desenfreada, tudo misturado à descoberta da sexualidade e à força que certos personagens exercem sobre mentes primaveris – e que vincam uma geração para sempre. No caso, o fascínio pela aviação, que dominou a infância do autor e era uma das manias de JK, voar sob qualquer pretexto. Mas o que interessa aqui é citar o "método" de Moreira para formatar o livro: "Pretendo remexer na rebeldia que caracterizou toda uma geração de aviadores militares brasileiros na década de 1950. Remexer, mas não estudar. Isto é tarefa para historiadores..."
O problema é que a mania de remexer hoje virou rotina entre os historiadores – ou, como preferem ser chamados, "novos historiadores" –, dramaturgos, roteiristas de TV e cronistas em geral. Trata-se de um modo de escamotear dados, inventar ficções no lutar, tudo sem o ônus de estudar a matéria. Dever de casa é péssimo, não? A atitude de rejeição às lições se afigura nacional e se repete agora com o saudoso presidente bossa-nova. As coisas funcionam assim: vamos remexer e rebolar na História, sem preocupação com conhecimento sério. Afinal, para que serve mesmo fidelidade histórica num tempo de iconoclastia e relativismo metodológico? Se tudo é possível, ficção é mais gostoso…
Não vale a pena encarar o morto nos olhos. Vale mais se render à mitologia. Nessa nova ordem imaginária, a força de JK não está em seu trabalho como estadista e agitador cultural, mas em fantasma. Conta-se que seu nascimento tinha sido uma profecia do padre italiano Dom Bosco feita em 30 de agosto de 1883, nove anos antes do nascimento do bebê JK , que proclamou o Planalto Central do Brasil como universo de uma nova era. Após a sua morte, o culto bombou total, e uma nova floração de seitas esotéricas vingou no cerrado. No livro que serviu como base para a série de TV (de Maria Adelaide Amaral, excelente dramaturga e capaz de calibrar o passado à bitola do gosto contemporâneo), Brasília Kubitschek de Oliveira (Record, 2006, 424 págs.), o historiador Ronaldo Costa Couto usa de seu estilo leve e solto para derramar pensatas mais ou menos fragmentárias no cérebro do leitor. Mas há informações curiosas, como a de que Juscelino seria a reencarnação do faraó Amenófis IV, ou Akhenaton. Pertencente à décima oitava dinastia, Akhenaton foi o primeiro político a ter implantado o monoteísmo. Para isso, necessitava de uma nova capital, Aketaton, que teria sido a primeira cidade planejada do mundo. JK e sua Novacap seriam nada mais que a versão moderna de Akhenaton – uma de suas encarnações. Assim é reverenciado em peregrinações em direção ao Memorial JK no coração de Brasília.
Mas há um fundo de verdade nisso. Talvez todo o esforço do "poeta das obras públicas", como diz Costa Couro, tenha sido no sentido de construir um gigantesco monumento tumular em homenagem a seu "reinado". O centro monumental de Brasília hoje é considerado uma cidade histórica, tão importante quanto a Diamantina natal de JK ou Ouro Preto. Brasília pode ser entendida como uma cidade histórica mineira, erguida em homenagem a um faraó mineiro, no meio do cerrado goiano. Deve ser preservada no meio do deserto contra a ação dos violadores de catacumbas. O sonho visionário de JK foi reformatar as pirâmides de Queóps, Quéfrem e Miquerinos para o terceiro milênio. Lá está o rei-deus, enterrado nos recônditos misteriosos de suas pirâmides versão Oscar Niemeyer. JK, mesmo boa praça, aumentou a dívida externa brasileira em quase 40% e ajudou a mergulhar o Brasil num período de crise e turbulências políticas que resultaram no golpe militar de 1964. O faraó diamantino parecia saber que, no fim das contas, jazeria nas catacumbas secretas da Novacap, seria alvo de culto depois de sofrer como presa da perseguição dos militares. E não há nada melhor que fomentar manifestações culturais – poesia concreta, bossa nova, cinema novo – para perpetuar a memória de um governante – nem que seja por contigüidade.
Os faraós desafiaram os milênios. Suas múmias ainda impressionam nas vitrines dos museus internacionais. E faraós contam com o embalsamamento do corpo, o luxo dos túmulos e os enigmas, senão não seriam dignos de vencer milênios. Akhenaton Kubitschek conta com seu túmulo deslumbrante (a veneranda Brasília) e até mesmo com o enigma de sua morte, até hoje não resolvida.
Somos uma sociedade tão permissiva e tolerante que até esse tipo de curto-circuito místico e o triunfo do galã suplantam uma reavaliação séria sobre o assunto. Todo mundo quer apenas ter momentos de lazer remexendo no JK da telinha. Até o presidente Lula anexou JK a sua filosofia política e prometeu ter "paciência, paciência, paciência" – a paciência dos teocratas egípcios que aguardavam milênios para ser resgatados do mundo dos mortos. Agora me lembrei de uma frase de um ex-ídolo de Lula, o pensador alemão Karl Marx, que escreveu no ensaio histórico O 18 Brumário que a História se repete como farsa. Os imperadores da Roma Antiga tiveram um remake na Revolução Francesa por causa de Napoleão. No Brasil, a História tem reprise, mas é como chanchada e novela de TV.
Nota do Editor
Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Este texto foi publicado originalmente na revista eletrônica do portal AOL, em 23 de janeiro de 2006.
A novela história "JK", atualmente apresentada pela TV Globo, fez uma interessante inovoção, criando o "amante genérico". Sabe-se que JK teve várias amantes. Diz-se que morreu em acidente na Rodovia Dutra quando ia visitar uma amante no Rio. Porém, na história global - talvez uma exigência da parentada do ex-presidente -, esse fato passou a ser relatado de modo sui genereis, talvez único na literatura mundial: a atriz Letícia Sabatella faz uma interpretação na série que seria uma espécie de encarnação de TODAS as amantes de JK. Fica, assim, preservada a imagem do fogoso amante latino-americano: o implacável garanhão das Alterosas, o nosso querido "amante genérico"...