Não há raça mais comicamente
narcisista que a dos críticos de música erudita. Eles se pavoneiam nos
concertos, ocupando os lugares gratuitos que lhes são concedidos pela
produção do espetáculo e, dali a no máximo dois dias, fazem publicar suas
observações sobre o desempenho da atração musical a que assistiram. Tais
textos servem para informar o leitor e fazer com que aquele que viu o
mesmo espetáculo possa discutir o conteúdo da matéria crítica; daí
nascerem as polêmicas, geralmente entre um amador e um profissional. Em
geral, o amador não passa do crítico; o profissional é o leitor, aquele
espécime de unabomber postal que vive de enviar cartas e e-mails
furibundos às redações. A intenção deste é, talvez, abocanhar um naco na
eternidade das publicações impressas. E tudo terminaria nos arquivos
mortos.
Mas o que deseja o crítico? Não se compraz em publicar o folhetim de sua
sensibilidade para o leitor eventual; quer mais, ser mais eterno que o
leitor profissional e não resiste ao contemplar suas crias recicladas em
volumes. A coletânea de comentários dá ao crítico a ilusão da glória, a
embriaguez de que suas palavras ficarão para a posteridade, pelo simples
fato de figurarem num volume (o editor sabe que não vai vender, mas fica
feliz em – para usar um verbo horroroso da moda – "fidelizar" um sujeito
influente). E há a noite de autógrafos, a sessão de salamaleques dos
colegas, bajuladores e músicos temerosos de ataques futuros, mesmo que a
farpa não se baseie em conhecimento de música. Ah, há o poder...
Para evitar que os desprezíveis anões da cultura que decoram o jardim dos
concertos escrevessem os textos das contracapas de seus discos, o pianista
americano Charles Rosen, de 73 anos, tomou para si o encargo de
interpretar obras musicais. O impulso surgiu com as notas de um disco que
gravou com obras de Chopin, cuja contracapa era do crítico James Huneker:
"Em um dos últimos noturnos, ele defendia a idéia de que a música
'cambaleava bêbada com o perfume das flores'. Esta não era a minha visão
sobre a obra. Eu não entendia para que serviam aquelas notas. O estilo de
Huneker é um convite para o ouvinte sonhar e dissipar a atenção no
devaneio. O tipo de escritos sobre música que eu prefiro – e de
performance – fixa e intensifica a atenção do ouvinte. Quando ouço música,
prefiro me perder nela, não escapar para meu mundo pessoal com a música
como decorativa e fundo distante."
Movido pelo alvo de fazer o público atentar para a música, Rosen derivou
para a crítica e o folhetinismo. Passou a ser identificado como um dos
boboli que observam a vida musical. Mas é melhor que os críticos
impressionistas de ocasião.
Ao publicar sua segunda coletânea, o músico-crítico traiu um misto de
constrangimento e prazer sádico em trazer à tona suas idéias. O tomo se
intitula, sintomaticamente, Critical Entertainments - Music and New.
Atualmente catedrático de pensamento social e música da Universidade de
Chicago, ele dá continuidade à coletânea Romantic Poets, Critics and
Other Madmen (Harvard University Press, 1998), na qual aborda a poética
de Balzac e Byron, a loucura de Hölderlin e o estatuto da crítica musical
na obra de George Bernard Shaw ("The Journalist Critic as Hero"). Outro
livro, Romanticism and Realism (1999), integra os estudos de Rosen sobre
história da cultura e as associações desta com a música.
Na reunião de textos escritos ao longo dos últimos 25 anos e
estampados em diversas publicações, Rosen exibe ironia e, às vezes,
ligeireza. Ainda que estampe citações de passagens em pentagrama, o estilo
se revela muito diferente dos produzidos em duas décadas de trabalho
teórico. Este resultou em obras como The Classical Style (1972), aula de
anatomia da forma-sonata de Haydn e Mozart, e A Geração Romântica (The
Romantic Generation, 1995), lançado no Brasil no início de 2000,
interpretação sobre o Romantismo, com base na idéia de que a música
incorreu em promiscuidade com as outras artes e fundou, assim, a
Modernidade.
Critical Entertainments é o tipo de coletânea de artigos que serve como
vade-mécum do melômano incontinente. O tomo não defende posições de grande
impacto, mas ajuda a refletir sobre a comunicação musical. Rosen postula
que o entusiasmo é tanto o motor primordial da boa análise de partituras
como o princípio gerador do cânone da música erudita. Para comprovar a
tese, o autor revela um espírito incomum ao gênero. Afinal, ele não se
enquadra no talhe de crítico banal. Desdenha a postura retrógrada daqueles
que odeiam as obras contemporâneas e professam dogmas como o método da
desmontagem "neutra" de peças musicais desenvolvido por Heinrich
Schenker. Sem entusiasmo e envolvimento de todas as esferas da produção,
acha, não pode existir arte nem conhecimento. Recepção se torna tão
fundamental quanto produção e distribuição. Naturalmente, a crítica
integra os círculos mal-afamados e pouco estudados da fruição estética.
O estudioso inicia a obra desculpando-se pelos exemplos musicais, que,
para ele, são incontornáveis para o leitor mergulhar no saber dos sons.
"Haverá o dia em que a crítica musical será fácil e rotineiramente
acompanhada de uma ilustração audível do tema, mas esse dia ainda não
chegou", diz, sem considerar as possibilidades que as novas tecnologias,
como MP3 e Napster, podem abrir, desde já, ao exercício crítico.
Segundo ele, os 18 textos de Critical Entertainments se pautam por três
questões: o dogmatismo limitador da teoria musical; o fato de os
musicólogos desconsiderarem o lado profissional da música e o inverso, a
ignorância da musicologia pelos músicos; em terceiro lugar, a relação
ambígua entre crítica e experiência musical. Rosen pensa que, dentro da
primeira preocupação, os formalistas shenkerianos são tão dogmáticos
quanto os anti-schenkerianos. Em vez de optar por um dos pólos, indica que
o procedimento correto é se valer de todo tipo de instrumento para fazer
uma análise mais completa. Ignorar circunstâncias em que as obras foram
feitas significa, de acordo com o crítico, incorrer em erro. É preciso
manter a análise próxima da sociedade e sua tradição. Por fim, não se
ilude sobre a função que a crítica exerce na alteração da história.
"Escrever sobre música é como tocar: um desempenho ruim de uma obra de
alta qualidade, desde que não seja, pode ainda dar prazer ao fã médio de
música, cujo gosto não foi corrompido pela especialização." Crítica ainda
serve para apurar a sensibilidade.
O volume se divide em cinco partes. A primeira se debruça sobre
performance e musicologia e traz um ensaio antológico: "A Estética do Medo
de Palco" – momento que Rosen compara com a epilepsia, "por ser divino,
uma loucura sacra". É o instante de pânico em que o músico começa a tocar
diante do público, que acomete até o mais experiente virtuose. O "ritual
profano do recital" gera embaraço, mas também um momento redentor. A
segunda parte abrange o século XVIII, com textos sobre a redescoberta de
Haydn, a invenção da ópera moderna pelo dramaturgo Beaumarchais (autor que
teoriza sobre o papel da ópera) e a carreira de Beethoven. Devota a
terceira parte ao compositor Johannes Brahms, a quem encara como
"inspirado" e "subversivo". A quarta sessão se intitula "Estudos Musicais:
Visões Contrastantes". Ali, avalia obras de referência como os dicionários
New Grove e Harvard. Encerra o livro com "A Crise do Moderno", com
ensaios sobre Schoenberg e Elliott Carter, além do melhor ensaio da
reunião, chamado "A Irrelevância da Música Séria".
O texto discute a afirmação em moda segundo a qual a música clássica está
morrendo. Para ele, esse tipo de pessimismo é uma antiga tradição,
vinculada ao espanto dos ouvintes diante da novidade; foi assim com
Beethoven no início século XIX, com A Sagração da Primavera, de
Stravinsky, em 1912, e continua sendo hoje, quando inimigos do modernismo
"não podem aceitar o modo como a vanguarda está tomando posse da corrente
principal da grande tradição ocidental". O sucesso da música contemporânea
não depende de vendas estilo Três Tenores nem do amor do público, mas do
entusiasmo dos músicos para tocar música nova. Provoca: "O que está
desaparecendo hoje é o público." Audiência de concerto, explica, é
fenômeno recente, contemporâneo à invenção do museu. Ambos quiseram
"retirar as obras do contexto social e ideológico". Ele denuncia que
"museus e concertos sinfônicos compreendem valores sociais pretensiosos".
Ora, nada mais esnobe que críticos – e esses anti-heróis também tendem a
encolher. Para Rosen, a única relevância no saber musical é a paixão.
Nesse sentido, os fãs deste ou daquele músico superam os especialistas.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil, a 17 de novembro de 2000.