O elogio da ignorância | Jaime Pinsky

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ENSAIOS

Segunda-feira, 1/5/2006
O elogio da ignorância
Jaime Pinsky
+ de 15700 Acessos
+ 17 Comentário(s)


You don't know, óleo de Carlos Ramos

Basta observar o olhar perdido de adultos sem ter o que fazer durante horas, em vôos internacionais, ou, pior ainda, vendo filminhos para adolescentes no vídeo do avião, para ter certeza de que ler um livro é a melhor escolha para esses momentos. O passageiro desocupado é um chato: ri alto, chama a comissária de bordo a cada momento, toma mais bebida do que seria desejável, ou ronca alto, enquanto o leitor de livros atravessa a desagradável viagem placidamente, correndo incólume o risco alheio, podendo imaginar, a partir do seu universo de referências, o rosto e o jeito de cada personagem, e não sendo obrigado a engolir os atores que o diretor do filme escolheu para representá-las.

O chato, na verdade, é o “sem-livro”. Mesmo assim, é freqüente tratar leitores como pessoas sem graça. Uma amiga conta que, durante sua adolescência, adorava ir ao sítio de um tio, no interior de São Paulo, e ler, calmamente, seu livrinho, enquanto a brisa movia silenciosamente a rede em que se refestelava e os pássaros faziam um coral único. Seus familiares, contudo, não se conformavam com a “chata” que preferia ler a jogar buraco e diziam que ela não gostava mesmo de “se divertir”, como se diversão fosse colocar o dez perto do valete e sonhar para que uma dama aparecesse, e não a leitura do seu livro, que a transportava para mundos maravilhosos.

Com a música, o mesmo. Há até propagandas de televisão e rádio que “demonstram” a supremacia de sons bregas sobre a música clássica. Incapazes de se sentar para ouvir uma sinfonia inteira, ou mesmo o primeiro movimento de uma sonata, os ignorantes transformam o vício em virtude e atribuem ao volume produzido por super woofers a qualidade sonora que a melodia não tem. Sejamos claros: o aparelhamento de som é apenas o meio, a mídia, utilizada pela música para se manifestar. Imbecis sonorizados rodando com altos decibéis serão somente imbecis rodando com altos decibéis, nunca gente com bom gosto musical. E antes que eu me esqueça, música se discute, sim, pois gosto e ouvido podem ser educados. Quase sempre, pois sempre há uns casos perdidos. Por isso, o idiota que diz não gostar de música clássica, como um todo (sem nunca tê-la ouvido adequadamente), deve ser tratado como um idiota, e não como uma pessoa que manifesta um gosto.

Num momento em que se luta para que diferentes parcelas da população tenham acesso à universidade, em que as pessoas estão empenhadas em fazer pós-graduação, mestrado, cursos livres de cultura geral, em que todos reivindicam o direito de conhecer parcelas importantes do patrimônio cultural da humanidade, fazer o elogio da ignorância é um contra-senso. Contra-senso, por sinal, que só pode partir de dois tipos de pessoas: ou alguém da elite, que, por medo de concorrência, não quer que o contingente de pessoas cultas no país aumente; ou alguém que teve a possibilidade de adquirir um bom cabedal de cultura, mas, por preguiça ou desleixo, não o fez. Nenhum deles é bom conselheiro: não se pede para o rato opinar sobre as qualidades da ratoeira.

Respeitar o saber do povo significa dar oportunidade para que ele tenha acesso ao patrimônio cultural já estabelecido. Respeitar o povo é permitir que ele conheça Machado de Assis e Joaquim Nabuco, Sérgio Buarque e Florestan Fernandes, Glauber Rocha e Nelson Rodrigues. Entender o mundo, ao contrário do que muitos pensam, não se resume a assistir folhetins óbvios repetidos há décadas, ou programas apresentando supostas situações reais com personagens supostamente interessantes, merecidamente enjauladas, tudo entremeado com mensagens comerciais (falo, evidentemente de novelas e reality shows apresentados pelas emissoras de TV e assistidos bovinamente por telespectadores acríticos).

De resto, tenho uma profunda desconfiança... não do saber autêntico desenvolvido através dos séculos por brasileiros do Norte ao Sul, mas de certa “cultura”, orquestrada por programadores musicais cevados por jabaculês fornecidos pelas grandes gravadoras, por sinal, multinacionais. E confundir a cultura do jabaculê com cultura popular ou é burrice incurável, ou má fé evidente. Colocar a cultura, chamemos assim, erudita, à disposição do povo, não quer dizer impô-la, evidentemente, mas permitir o contato entre eles. Livre escolha. Elitista mesmo é não permitir esse acesso e, em nome de um populismo pseudo-respeitoso, abandonar a população à breguice rançosa que grassa nos meios de comunicação de massa.

O elogio da ignorância, que desqualifica a leitura, a música de qualidade, a cultura artística e humanista, tenta se apresentar como atitude democrática, mas não o é. Trata-se de uma face disfarçada do preconceito e da discriminação.

Não há porque engolir isso. Venha de quem vier.


Something about her, outro óleo de Carlos Ramos

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente na revista Panorama Editorial, na edição de abril de 2006.


Jaime Pinsky
São Paulo, 1/5/2006
Quem leu este, também leu esse(s):
01. Mahler segundo Bernstein de Lauro Machado Coelho
02. A arte assombrada de Pedro Maciel


Mais Jaime Pinsky
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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
1/5/2006
06h43min
Enfim, a gente descobre que não precisa dizer "Será que sou só eu que acho isso?" - ou obtém a resposta: não. Muito bom.
[Leia outros Comentários de Claire]
2/5/2006
12h38min
Jesus, excelente texto. E mais necessário hoje do que nunca.
[Leia outros Comentários de John Santos]
7/5/2006
18h32min
Como o povo pode saber o que é bom se a própria mídia não lhe dá oportunidade? E, ainda por cima, querem confundir coisa ruim com cultura popular... Como já foi escrito, essa visão é totalmente preconceituosa, e essa situação não tem nada de democrática. É, antes de tudo, mais um sistema opressor que pretende manter a população nos cárceres da ignorância.
[Leia outros Comentários de Joyce]
10/5/2006
09h04min
Jaime, muito bem escrito o seu texto, mas frases de efeito podem fazer é um efeito contrário. Há que se tomar cuidado com a forma com que as coisas são ditas pra não cairmos na esparrela de fazer exatamente o que condenamos: impor nossos gostos só porque os consideramos melhores. Chamar de idiotas os que não gostam da música erudita, ou os que não gostam de ler e preferem jogar um buraquinho, ou assistir novela, é meio demais, né não? Eu detesto novela, troco um livro por um filme com a maior tranquilidade, mas daí a ficar policiando quem gosta de quê... me desculpe, mas achei o seu tom meio exagerado e desrespeitoso. Saber autêntico? O que é isso? Quem autentica o saber? Eu? Você? A sua amiga que prefere ler a jogar buraco? Isso é um perigo... é assim que nascem as piores ditaduras.
[Leia outros Comentários de Ana Claudia]
10/5/2006
09h37min
Um texto contundente e real. Resta apenas a reflexão, com resultado amargo, que isto não vai melhorar no curto, médio e talvez nem no longo prazo, pois não há nada realmente sério que esteja sendo feito neste sentido.
[Leia outros Comentários de Mauro Marchesini]
10/5/2006
10h20min
Eu era crianca e estava no antigo primario la' pelos idos anos sessenta; a frase soa hoje como obvia, mas eu a carrego para sempre comigo. Explico: a diretora do colegio nos recepcionou em nosso primeiro dia de aula e, num breve discurso, disse: "aprendam com afinco; a bagagem cultural de uma pessoa e' algo que permanecera' para sempre com ela; estudem; o conhecimento e' algo que ninguem podera' tirar da gente, enquanto vivermos e e' um grande tesouro". Sei que muitos dizem isso, mas quem leva essas palavras a serio? Eu levei; adoro minha vida cultural, meus livros, discos, dvds, o cinema, os museus. Sao a minha vida. Aquela diretora de colegio sabia o que dizia -- para mim nao foi frase de efeito. Foi frase para meus feitos e reconheco nessa materia o espelhamento do que tambem penso e acredito. Parabens pela materia! Abraco!
[Leia outros Comentários de isa fonseca]
11/5/2006
12h02min
Para Ana Claudia: Acho que você não entendeu o texto. Cuidado com a defesa da ignorância como modelo cultural. Se uma pessoa lê muitos livros mas prefere ir jogar baralho, se ela assiste a muitos filmes mas gosta mesmo é de novela e se gosta mais de escutar axé do que ópera, ela fez uma escolha e a escolha deve ser respeitada. Totalitarismo cultural não é preferir uma determinada coisa, independente do que é essa preferência. Totalitarismo cultural é NÃO PERMITIR que as pessoas conheçam os livros, a ópera ou o cinema e fazer com que essas pessoas se vejam limitadas a escolher um baralho de cartas, a música axé ou a novela porque não conhecem nada mais. Aplaudo o autor, pelo texto magnífico e o Digestivo, por ter escolhido publicá-lo.
[Leia outros Comentários de Daniela Castilho]
14/5/2006
10h52min
Ótimo o texto do Jaime. Provocativo e necessário... Porque "opção" é diferente de "alternativa única", e todos nós merecemos conhecer as várias possibilidades de escrita, de música... de tudo que existe ao nosso redor. Conhecer e compreender, para poder optar.
[Leia outros Comentários de Eveline]
16/5/2006
16h48min
Não concordo com a opinião do autor. Para mim -- na visão que tenho de escolha e liberdade -- cada pessoa ouve ou lê aquilo que lhe dá prazer. Com certeza um indivíduo que adora axé, pagode ou sertanejo, já ouviu pelo menos um trecho de ópera ou música erudita e achou muito chato mesmo. As obras musicais clássicas que tanto agradam certas pessoas não surtem os mesmos efeitos em pessoas que não gostam desse tipo de música. Isso é óbvio. E muitas vezes não se trata de oportunidade, trata-se de afinidade. Em alguns momentos a maior importância de uma música está no fato de proporcionar algum momento de compreensão e felicidade pra quem está ouvindo; se a música, seja ela boa ou ruim -- tá aí uma coisa mais do que subjetiva --, está fazendo com que alguém sinta-se bem já está mais do que cumprida a intenção do compositor. O mesmo se dá com os livros. Não é apologia a nada, apenas quero que entendam e respeitem as dificuldades, interesses e diferenças das pessoas.
[Leia outros Comentários de Fábio Capucho]
25/5/2006
12h22min
Concordo em gênero, número e grau. Senti-me com a alma lavada, disse tudo, esgotou o assunto. Maravilhoso! a expressão "bovinamente" foi redentora.
[Leia outros Comentários de Carla Borges]
29/5/2006
14h48min
O Capucho e a Ana Cláudia podem dar as mãos! Sim, porque achar que quem adora axé, pagode ou sertanejo já ouviu alguma música clássica!? Só se foi em alguma formatura ou em baile de debutantes... Parabéns pelo texto. Os seus comentários e opiniões estão corretíssimos. Prova disso é uma apresentação que uma vez assisti da Sinfônica de Campinas para um público carente e necessitado, além de comida, emprego e saúde, de cultura, música para os ouvidos, momentos de paz, harmonia e beleza. Vi, durante a execução de várias peças, um público emocionado chorando, com a beleza com que nunca teve de contato. Novamente, parabéns a você, Jayme, e ao Digestivo.
[Leia outros Comentários de Mário Guimarães]
30/5/2006
17h19min
Há, tanto no texto como nos comentários, posições radicais e diametralmente opostas. Tudo em nossas vidas é circunstancial: alguém pode gostar de Pagode, Rock e Música Clássica. Meu Deus, por que não? Esse alguém pode afirmar peremptoriamente que seu estado de espírito determinará a música apropriada. Similarmente, na leitura: José de Alencar ou Paulo Coelho; Olavo Bilac ou Manuel Bandeira... Olha a racionalidade!!!
[Leia outros Comentários de Evaldo Sales Costa]
3/6/2006
17h03min
Adorei o texto, a expressão "bovinamente" é, mesmo, ótima, como achou a Carla, também gostei das ilustrações, com os óleos de Carlos Ramos e concordo que a cultura não deve ser exibida em salas fechadas, como o foi no Festival de Choro realizado em 2003 na Pedra da Cebola na cidade de Vitória, em que, somente após a manifestação popular, a entrada foi liberada e ainda tive que escutar de uma donzela: "Abriram a porta do curral". No entanto, os bovinos eram eles, os convidados do então prefeito Luis Paulo Lucas, que falavam (alto) ao celular, enquanto a população que entrara, aproveitava em silêncio a música verdadeira e essencialmente popular que é o choro. Não tenho a mínima paciência para novelas, nem para a facilidade do axé, nem para as patológicas Wanessa Camargo e Kelly Key (é assim que se escreve?), porém, quando toca música clássica na hora do almoço, eu troco de rádio e sintonizo no som de Luiz Gonzaga, no Lenine, no Luis Melodia, no Guilherme Arantes, na Céu...
[Leia outros Comentários de juliana]
7/6/2006
11h07min
É duro para muitos o esforço de pensar, calcular e entender. Há pouco, estive num workshop do mítico baixista Arthur Maia, grande músico brasileiro (mundial, por que não?), que nos brindou com sua presença e dicas técnicas. O local era habitado por músicos em sua maioria, mas aberto a qualquer um que preferisse a qualidade. Pois bem, em certo momento, sua banda executou um originalíssimo "brazillian jazz" de "entortar" ouvidos, tamanha a beleza e complexidade harmonica, rítmica e melódica. Matemática e arte numa mescla perfeita, quase tangível. Pensei: "Isso não é pra qualquer um. Há requisitos mínimos para entender tudo isso e encontrar a proposta do artista. Estou feliz.". Vi (ou melhor, "ouvi") que, se não há uma apurada auto-exigência, pessoal, primária, não há objetivo: absorver algo, ligar-se à linguagem do autor, seja qual for sua ferramenta, e formar uma crítica opiniao a respeito. Essa exigência não existe nas massas, que seguem caminhos já pavimentados pelos que pensam por elas.
[Leia outros Comentários de Hudson Malta]
12/6/2006
23h52min
Ah, as massas! Principalmente as italianas, com molho aos domingos... Falando mais ou menos sério, os nazistas pensavam da mesma forma. Quando se pensa que uma elite pensante é superior, que somente ela é dona do poder de percepção e análise, a coisa fica perigosa. Sou melhor que você, mais inteligente, mais bem nascido, portanto, você é um reles boi que caminha para o matadouro, sem consciência disso. Devo domina-lo, então. Sei não, acho meio esquisito isso. Tipo, a musica caipira é uma merda, bom mesmo é o Jazz (absurdo que ouvi da boca do Sr. Luis Fernando Verissimo, um americano que chegou no Brasil aos vinte anos e até hoje, apesar de escritor famoso, não encara muito o fato de morar por aqui). Acho que todas as coisas têm sua beleza. A superioridade está em entender isso, em ver a beleza nas pequenas e simples coisas. Há beleza nas cantigas das lavadeiras, assim como há beleza em Miles Davis. Acho que ficar num gueto, seja ele qual for, é sempre perigoso e preconceituoso.
[Leia outros Comentários de Phylos]
13/6/2006
09h15min
Deve haver mesmo alguma beleza num assalto à mão armada, ou na Lei de Gérson, nos votos trocados por remédios e dentaduras... Talvez eu não esteja sabendo olhar direito.
[Leia outros Comentários de Hudson Malta]
31/8/2006
21h27min
Pardon my writing in English. Perhaps someone can translate. Though able to read Portuguese with fair understanding, my writing is not so good. Though I agree with much of what is written here, particularly regarding the evil of corporate censorship of the arts and literature so prevalent these days, let me point out that education is not very helpful. There is a test given in the USA to determine how well readers comprehend the content of their reading. In the 1970s, over 70% of college graduates were able to read and understand relatively difficult material. In 2004, this number was 30%. That is to say, only 30% of college graduates in the US can read with comprehension (in other words, 70% of US college graduates cannot read). 20% of these quasi-literates are unable to understand the text in newspapers. I personally have witnessed this as teacher, as editor, and as researcher in the high technology industry.
[Leia outros Comentários de Jim Chaffee]
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