Deixando a hipocrisia de lado, somos praticamente todos piratas quando se trata de música digital no Brasil.
Enquanto em países como Estados Unidos e Japão a oferta de música on-line não pára de crescer, e a venda de canções digitais já virou um negócio lucrativo, o Brasil possui apenas uma loja de música digital, a iMusica, que oferece aproximadamente 300 mil canções. A maior parte de artistas independentes.
Isso significa que quem quiser comprar obras de artistas de primeira linha da música popular brasileira como, por exemplo, João Gilberto, Tom Jobim, Caetano Veloso e Chico Buarque terá de ir a uma loja de discos de verdade.
Ou recorrer aos serviços de troca de arquivos na internet, como o Kazaa, para baixar, em poucos minutos, canções desses artistas. Essa opção é fácil, prática, mas é pirataria.
Nos últimos anos, a indústria do disco – sobretudo as gravadoras multinacionais – tem gastado munição pesada contra a pirataria e não hesita em demonizar quem baixa músicas ilegalmente da web.
Por outro lado, no Brasil, as gravadoras pouco fazem para tornar disponíveis ao consumidor versões legais de suas músicas. E a demanda pela canção digital só cresce nos últimos anos, com a popularização dos tocadores de MP3.
Se mais música estivesse disponível para download pago, os consumidores prefeririam a troca ilegal de arquivos ou a segurança da legalidade? O que diferencia o Brasil dos países desenvolvidos para fazer com que gravadoras não disponibilizem aqui músicas que já vendem no exterior?
As majors e o iMusica
Um fator é determinante para que você não consiga encontrar todas as músicas que deseja comprar pela web no Brasil: a relutância das majors – as gravadoras multinacionais – em entrar no negócio levando consigo o seu catálogo.
Isso ocorre mesmo depois de elas já terem experimentado, em mercados desenvolvidos, o gostinho de ganhar dinheiro com a venda de música on-line.
A iMusica, única loja brasileira em funcionamento até hoje, foi aberta há cinco anos e só agora está conseguindo fechar acordos significativos com as multinacionais: já tem contrato com a EMI e com a Warner e está negociando com a Universal e a Sony/BMG.
Para quem quer comprar música, esses acordos são fundamentais porque praticamente toda música de expressão produzida até meados dos anos 90 no País está no catálogo das grandes gravadoras.
Se você quiser achar um Chico Buarque, um Tom Jobim ou mesmo bandas mais novas como Legião Urbana e Raimundos, precisará recorrer ao catálogo das majors, que ainda está bastante fechado.
“O problema é que, do ponto de vista das grandes gravadoras, o Brasil e a América Latina acabaram virando a última prioridade. Um executivo de fora do País olha os nossos números e não entende. A nossa penetração de internet de banda larga é tímida, o País tem altos índices de pirataria na web e há ainda o problema dos direitos autorais”, diz Felippe Llerena, sócio da iMusica.
De fato, segundo dados do Ibope/Net Ratings, de janeiro deste ano, o Brasil tem 7,666 milhões de usuários de banda larga, o que representa menos de 5% da população do País.
Neste ano, a Warner decidiu entrar para valer no iMusica. O namoro da gravadora com a loja virtual começou a ficar firme no ano passado, com o lançamento da campanha “Downloada Brasil”, que tinha como principal atrativo disponibilizar no iMusica uma faixa do último disco do Rappa 60 dias antes de ele chegar às lojas.
Durante 2006, a gravadora promete continuar a abastecer o site com lançamentos e, aos poucos, irá colocar o seu catálogo no site, inclusive com discos que hoje não estão à venda como CDs. A idéia é conseguir disponibilizar 80 mil músicas apara a venda no iMusica.
“Nos Estados Unidos, onde a venda de música on-line já deslanchou, nós sabemos que a parte mais representativa das vendas não são lançamentos, mas o catálogo do artista. Por isso estamos trabalhando para ajudar a liberar os direitos de nossos fonogramas para a venda na internet”, diz Marcelo Maia, diretor de marketing da gravadora.
Maia afirma também que agora é o momento de se voltar para a web. “Não entramos antes porque tínhamos de equacionar a questão da segurança. Precisávamos de um esquema de sistema de segurança confiável, em que pudéssemos controlar cada fonograma baixado”, diz.
Direitos autorais e iPod
O nó mais difícil de desatar é o dos direitos autorais. “No Brasil, funciona a lei do autor. É preciso a autorização do compositor de cada música para que ela fique liberada para a venda digital. Não adianta negociar só com a gravadora”, diz Llerena.
Como no Brasil, todo autor tem direito sobre sua obra até 70 anos depois de sua morte, isso significa que quem quiser liberar uma música terá de ter a autorização da gravadora, que tem o fonograma, da editora que publicou a música e a do autor ou a de seus herdeiros.
“É um trabalho árduo. Quando se fala de pedir autorização das editoras, isso implica entrar em contato com milhares de empresas”, aponta Llerena.
“Fizemos pedidos para liberar todas as nossas músicas. Como muitos de nossos artistas regravaram canções, tivemos de pedir a liberação às editoras e aos autores. Muitas editoras nem falaram conosco, nem sabiam que existia o iTunes”, afirma Paulo Félix, diretor artístico da gravadora independente Rio 8.
Um dos principais atrativos de se comprar música digital é rechear o seu tocador preferido, sem ter muito trabalho. E aí é que as pessoas sentem o quanto a lógica de formatos distintos de proteção pode ser bastante perversa.
Se você tem um iPod, o tocador mais vendido no mundo, e quer comprar música digital no iMusica, esqueça. O iPod não reproduz o formato WMA, da concorrente Microsoft. Isso porque a Apple tem o seu próprio formato para arquivos protegidos, o AAC, que, por sua vez, não é reconhecido pelos tocadores concorrentes.
Nos Estados Unidos, as gravadoras colocam suas músicas à venda em diferentes lojas em formatos distintos. Assim, se você tem um iPod, só vai comprar na loja da Apple. Se tem um da Creative, terá de comprar no Napster, por exemplo.
Mas e se você quiser, no futuro, trocar de tocador? Aí toda a música que você comprou – e não pagou barato por ela – terá de ser comprada novamente só por causa da mudança de tecnologia.
No caso do Brasil, em que só temos o iMusica, não é possível comprar localmente músicas que toquem no iPod.
Para o diretor da Associação Brasileira da Música Independente e professor da ESPM/Rio Jerome Vonk, um dos motivos dessa confusão de formatos acarretada pelo uso de DRM (Digital Rights Management) vem da própria tradição da indústria fonográfica. “A grande verdade é que a indústria nunca inventou nada, sempre foi muito reativa. Todas as invenções, desde o gramofone, vieram de fora da indústria.”
O especialista em direito autoral e professor da FGV do Rio, Ronaldo Lemos aponta um problema ainda mais sério em relação ao DRM.
“O DRM tem que ser repudiado. Há a questão da obsolescência. Por que ele cria um problema para as gerações futuras. Como será daqui a 15 anos, quando tudo estiver criptografado. O direito autoral tem um prazo de proteção limitado e o DRM é eterno, não respeita o prazo de duração”, afirma. Lemos também diz que, quando uma empresa faz um DRM que não é compatível com tocadores de outras empresas, está ferindo o direito concorrencial.
Já Felippe Llerena vê o DRM sob uma outra ótica. “Ele é fundamental para dar segurança a sua compra. Graças ao DRM, se você perder a sua música ou acontecer algo com o seu computador, você poderá baixá-la de novo sem custos, porque está tudo registrado no site”, diz.
Embora o padrão no mundo seja a venda de músicas com DRM, há alternativas.
A melhor delas é o site internacional
eMusic, que os brasileiros podem ter acesso e pagar com cartão de crédito. O eMusic disponibiliza arquivos em MP3, normais, com os quais você pode fazer o que quiser. O site oferece 1 milhão de músicas, metade do que o iTunes disponibiliza, e bem mais do que o nosso iMusica.
Só que por lá você não irá encontrar, também, artistas que gravam pelas majors. Por outro lado, o site oferece um acervo impressionante de música clássica e jazz.
É possível achar as primeiras gravações de John Coltrane, os discos do primeiro grande quinteto de Miles Davis, além de jazzistas de vanguarda. Para quem gosta de música alternativa, a reportagem encontrou discos inteiros de artistas que fazem bastante sucesso no mundo independente como CocoRosie e Antony and the Johnsons.
E o sistema é bastante inteligente, em vez de pagar por música, você paga uma assinatura mensal que dá direito a um número determinado de downloads. Quarenta músicas saem por US$ 9,99.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente, em várias partes, no suplemento “Link”, do jornal O Estado de S. Paulo, em abril de 2006.
A onda da pirataria corre pelo mundo e parece que as gravadoras não fazem nada para mudar esse cenário caótico que vivemos hoje. Só querem lucrar e estão ficando longe dos avanços tecnológicos que a música precisa para sobreviver nesse supermercado virtual. Se ai' pode, então aqui também pode... baixar as músicas que estão disponíveis na internet. O comércio ilegal sempre vai existir nesse mundo legal.