É quase comovente saber que um dos grandes responsáveis pelo sexo sem culpa em nossos tempos completou 80 anos no começo de maio – e, mesmo vendo-o cercado de mulheres cujas idades somadas não empatariam com a dele, ninguém se atreveu a chamá-lo de “dirty old man”, ou velho tarado. Seria fazer um julgamento moral, coisa que o velhinho em questão, Hugh Hefner, passou a vida combatendo.
Sim, Hefner fez 80 anos. Sua grande criação, a revista Playboy, também não é nenhuma criança: já passou dos 50 nos Estados Unidos (nasceu em 1953) e suas playmates pioneiras (como Janet Pilgrim, a primeiríssima a posar para a revista, ou Bettie Page, que se tornaria um dos símbolos da década) já devem ser bisavós. Nada dura para sempre, exceto, talvez, a ereção de Hefner, ainda que, hoje, confessadamente, à custa de Viagra.
Quando Hefner criou Playboy, tinha em mente um tipo de leitor que, mesmo que existisse, não deveria fazer número suficiente para sustentar sua revista. Esse leitor era um homem solteiro, com perto de 30 anos, liberal, independente e disposto a aproveitar a vida, não em colherinhas de café, mas em conquistas no atacado e no varejo. De profissão, seria um advogado, um arquiteto, um publicitário ou, quem sabe, um corretor da Bolsa. Viveria numa cidade de médio porte para cima – nada de acanhamentos ao seu redor – e, urbano até a medula, moraria num apartamento. Um quarto-e-sala, talvez, mas amplo, incrementado, decorado por um profissional, com toques bem masculinos (a cama, por exemplo, como uma unidade auto-suficiente; um bar, para os dry martinis) e a salvo da xeretice alheia. (E, sem dúvida, alugado – o leitor de Playboy não perderia o sono pensando nas “prestações da casa própria”, e muito menos se via aparando a grama de uma casa com quintal no subúrbio.) No dito apartamento, esse homem, vestindo um robe e fumando seu cachimbo, se aperfeiçoaria na arte de receber pessoas como ele, jovens, ambiciosas e desimpedidas. Do sexo feminino, é claro.
Hefner traçou o perfil ideal desse homem. Em música, por exemplo, ele estaria mais para o jazz moderno – daí Dave Brubeck ou o Modern Jazz Quartet sempre no hi-fi. Em sua mesinha de centro, em forma de ameba, o fino da literatura do momento: Ray Bradbury, Vladimir Nabokov, James Baldwin. Nenhuma das questões em voga lhe seria estranha: a era espacial, a corrida atômica, os direitos dos negros. E, valendo-se dos colaboradores mais surpreendentes, Hefner se certificou de que ele só ouvisse opiniões inteligentes: para lhe falar de economia, contratou J. Paul Getty, o homem mais rico do mundo; de sua vida sexual, o casal de médicos, Masters & Johnson; e, de suas possíveis neuroses, Jules Feiffer. Vez por outra, esnobava e soltava um novo James Bond, por Ian Fleming, em capítulos. E, quando a revista abriu oito páginas para a nudez de Brigitte Bardot, quem Hefner chamou a escrever o texto? O venerando André Maurois. E que celebridades que não davam bola para ninguém aceitaram ser entrevistadas por Playboy? Frank Sinatra, Miles Davis, Muhammad Ali. O “mundo de Playboy” era para um homem muito especial.
Hefner convenceu o leitor que ele podia ser este homem: informado, moderno, bem vestido, bem sucedido e irresistível. Um homem assim não precisaria apelar para prostitutas ou para qualquer sexo pago. Ao mesmo tempo em que fazia o leitor acreditar que o poder da sedução era uma espécie de pensamento positivo, Hefner convenceu-o também de que ele não precisava ir a lugares específicos para conhecer mulheres capazes de se encantar por ele. Elas estavam em toda parte, inclusive no apartamento ao lado – e a prova estava no pôster central. A ordem expressa de Hefner era de que, ao posar para o pôster de Playboy, a mulher devia parecer radiante, fresca do banho, feliz por estar ali e encarando o leitor de frente, sem mistérios, sem olhares de soslaio e sem provocações baratas. Criou-se a fantasia da “girl next door” (mesmo que, na vida real, algumas meninas não fossem tão girls e muito menos next door). Em torno dela, ele construiu uma revista com enorme apelo publicitário, que arrasou as dezenas de concorrentes, chegou a tirar 6 milhões de exemplares por mês no mercado americano e, para sua glória, foi citada como portadora de uma espécie de “filosofia” – libertária, ligada às grandes causas e sem a qual não se entenderia os Estados Unidos da segunda metade do século XX. (Hefner acreditava mesmo nisto.)
Playboy foi um indiscutível sucesso nas décadas de 50 e 60 e, em minha opinião, um dos agentes de fato das tremendas transformações germinando naqueles anos. Hefner conseguiu, inclusive, que Playboy sobrevivesse a 1968, quando seu hipotético leitor – o homem de robe, cachimbo e cama-catapulta – revelou-se subitamente fora de moda. Não fez este homem se mudar para uma comunidade hippie, mas permitiu que ele deixasse crescer o cabelo, experimentasse uma ou outra droga e tomasse uma posição política mais explícita (contra a guerra do Vietnã, por exemplo). A pílula anticoncepcional ajudou Hefner, no sentido de que as mulheres, que ele tentava liberar uma a uma, se auto-liberaram em massa e de repente. E até mesmo o movimento feminista, que bobamente o elegeu como seu arquiinimigo, revelou-se um involuntário aliado – se as mulheres queriam dispensar os sutiãs e andar com os peitinhos à solta, quem era Playboy para discordar?
Hefner só não contava com que a liberação fosse tão longe – e tanto, na verdade, que saiu do controle das próprias feministas e de qualquer condução racional do processo. Quando Playboy publicou os primeiros pêlos pubianos, em 1970, quem podia impedir suas concorrentes de ir direto à labia majora? Algo parecido aconteceu na moderada defesa que, nos anos 60, Playboy fazia da liberação das drogas. Na época, isto significava o direito de alguns privilegiados “expandir” suas mentes e explorar regiões do inconsciente, queimando um fuminho ou tomando um ácido – ninguém estava pensando no uso maciço de cocaína e drogas sintéticas por adolescentes, nas famílias destruídas por elas e no império do crime criado para sustentar o tráfico. O liberalismo de Playboy ficou para trás. O homem adulto e responsável, imaginado originalmente por Hefner, deixou de existir. Em seu lugar, surgiu um adolescente ansioso, capaz de vender a mãe para ter acesso imediato aos prazeres legais e ilegais que o mundo, indiscriminadamente, “disponibilizou”.
Um dos segredos do antigo sucesso de Playboy, formulado por Hefner e aplicado durante boa parte de sua existência, era o de que a revista deveria ser feita para um homem de hipotéticos 25 anos – qualquer que fosse sua verdadeira idade. “Se ele tiver 45 anos, gostaria de ter de novo 25”, dizia Hefner. “E, se tiver 13, também gostaria de ter 25”. Mas, por tudo que aconteceu nas últimas décadas, o leitor-alvo parece ter se alterado: as revistas masculinas passaram a ser feitas direto para os infantes de 13 anos – porque, acima dessa idade, já não haveria razão para lê-las.
Mas o processo não pára, e a pergunta agora é: com tanto sexo gratuito e disponível na internet, quem quer saber de figuras estáticas numa revista? Hefner podia aproveitar as últimas balas na agulha de sua revista e reinvestir em um antigo aliado: o leitor adulto e responsável. Nem que tivesse de reinventá-lo.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no “Caderno2”, de O Estado de S.Paulo, em maio de 2006.
Não sei como é a Playboy americana, mas a brasileira tem caído em conteúdo, na minha opinião. Fui assinante por dois anos da revista, 2004/2005, e vi poucas matérias realmente interessantes. O melhor da revista, a seção que indica filmes, livros e cds, poderia ser ampliada. Ao invés de comentários breves, resenhas de livros. Ensaios sobre personalidades que realmente sejam relevantes, poderiam convidar mais escritores para se aventurar na literatura erótica, não sei. De mulher a Playboy sempre foi bem servida. Mas acho que estão devendo no conteúdo. E a publicidade acaba tomando conta de boa parte da revista. Óbvio que precisam se sustentar, mas, enfim. A Playboy do Hefner sempre representará a "liberdade masculina", digamos assim. Mesmo que a revista acabe (e espero que isso não aconteça), a importância dela é algo que ficará registrada na nossa História.