ENSAIOS
Segunda-feira,
11/9/2006
Os excessos de Carmen Miranda
Luís Antônio Giron
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Caricatura de Luiz Fernandes
Convém não misturar demais vida com biografia. Aquela compreende uma seqüência de eventos em ordem cronológica, muitas vezes com direito a fatos sem sentido, sensações, pesadelos e sonhos irrecuperáveis por quem não a experimentou na sua integridade. Biografia consiste em narrativa, uma ordenação de ocasiões marcantes, trata-se em suma de um gênero literário. Há um abismo entre existir e ser biografado. A cantora luso-brasileira Carmen Miranda (1909-1955) já mereceu pequenas e grandes narrativas biográficas. Nenhuma tem o fôlego da que o jornalista e ficcionista Ruy Castro trouxe à luz. Carmen (Companhia das Letras, 2005, 632 págs.) contém mais de 600 páginas de detalhes, dos mais sublimes aos mais sórdidos, da trajetória daquela que foi a maior embaixadora da música brasileira nos Estados Unidos.
O resultado é sério e não lembra o estilo burlesco de outros livros do autor. É o clássico que estava faltando no assunto, muito embora exageradamente longo e em muitas passagens tão chato de ler quanto um tratado. Ruy Castro se mostra mais sisudo do que nunca, até porque a história da artista é feita de tragédias, amores ocultos, vício, loucura, vaidade e morte. E grande música, porque Carmen marcou sua época com o chamado “it” que diziam ter na voz, um jeito de cantar próprio, sobre o qual Castro dedica muitas páginas, sem chegar a uma definição muito clara. O que lhe importa é a trajetória dessa mulher extraordinária.
A bibliografia sobre Carmen é extensa. O relato mais detalhado da carreira discográfica da cantora foi feito em 1978 pelo grande pesquisador paulista Abel Cardoso Junior (1937-2003) no excelente Carmen Miranda — A Cantora do Brasil. Ao morrer, Abel preparava uma edição definitiva, com novos dados e uma pesquisa detalhada sobre a produção da artista nos Estados Unidos entre 1940 e 1955, entre filmes, discos e participações em shows. Ele iria custear mais uma vez a produção do livro em uma editora de Itu, mas o projeto morreu com ele, infelizmente.
Para reexumar (e reenterrar) o cadáver artístico de Carmen, Ruy Castro consultou todo esse material, pesquisou em fontes primárias e secundárias e tomou os poucos depoimentos que restaram de sobreviventes. Mas o que domina no livro é o engenho narrativo do autor, corajoso em penetrar em boudoirs, ambientes fechados, banheiros e outros recintos que ela freqüentou, sem que ninguém tenha deixado relato preciso. É a porção ficcional que toda biografia carrega. O enredo geral todo mundo já conhece. Seria uma história com final feliz, caso contada em sentido anti-horário: a voz deturpada pelas exigências hispânicas de Hollywood nos anos 50, a chegada triunfal à Broadway em 1940, o sucesso do samba de Caymmi "O que é que a baiana tem?" (1939), o brilho da “Pequena Notável”, que lançou os principais sucessos do auge da chamada época de ouro, entre 1934 e 1939, o início da carreira deliciosa com participações em recitais de música regional (não se chamava ainda música popular) pelas mãos do violonista Josué de Barros, as gravações essenciais da marcha "Taí" e dos sambas "Feitiço Gorado" e "Burucuntum", todas em 1930, momento em que o it daquela voz salta dos alto-falantes das vitrolas e marcam o nascimento da grande intérprete da brejeirice nacional.
Não, não foi assim. O trajeto revelou-se involutivo, do brilho original ao cadáver emudecido e maquiado no caixão. O biógrafo tratou de rechear esses episódios com detalhes que faltavam ao grande quebra-cabeça. Por exemplo, as circunstâncias da emigração da família Miranda da Cunha de Portugal ao Brasil; a vida musical nos anos 30 e as batalhas concorridíssimas pelo sucesso no âmbito do samba e da marcha de Carnaval. Aspecto interessante é o da intensa atividade sexual de Carmen, colecionadora de homens. Ruy Castro demora-se na descrição impiedosa da decadência física da cantora, devastada pelo álcool e barbitúricos (segundo Castro, ela não gostava de maconha e cocaína), o casamento desastroso com o empresário David Sebastian (a quem Castro chama abertamente de “cretino” e “judeu”), que herdou toda a fortuna da mulher.
O melhor do livro está no aspecto mórbido. O autor desce aos infernos para dar conta dos últimos instantes da existência de uma artista esgotada, sob tratamento com choques elétricos, destruída física, moral e criativamente. Nesse sentido, a versão adotada por Ruy Castro é a consagrada pela pletora de estudiosos nacionalistas: Carmen foi abduzida, devorada e excretada pelo star system americano, seu tipo físico e sua alegria rebaixadas à condição de caricatura (ela teve de fazer papéis de latina e falar naquilo que Castro define como “espanhol-metralhadora”), em mais um exemplo de exploração do Império Americano.
O autor se afasta cada vez mais do estilo “humor” que o caracterizou, aperfeiçoando-se na arte de criar literatura comovente. A narração da morte e do enterro contêm momentos dramatizados que dão ao leitor o clima de celebração consternada daquele capítulo derradeiro do velório da cantora na Cinelândia e do cortejo do carro fúnebre ao longo da cidade até o cemitério. Eis uma passagem carregada de literatura e imersões psicológicas talvez abelhudas em demasia, pois Sebastian é retratado como um vilão: “Num dos carros, estava o marido, Dave Sebastian. Finalmente ele viera ao Brasil com Carmen. Para Sebastian, valera a pena suportar todas as humilhações. Carmen se recusara a deixar testamento e, com a morte dela, ele ficaria com as casas de Beverly Hills e Palm Springs e os poços de petróleo (tudo isso adquirido por Carmen antes do casamento — fora, portanto, da comunhão de bens), além das ações, dos depósitos bancários e do dinheiro vivo. À família e ‘ao Brasil’, Sebastian doou os vestidos, fantasias, turbantes, plataformas, balangandãs, adereços de palco, fotos, partituras, objetos pessoais e farta bijuteria de Carmen — tomando o cuidado de conservar as jóias verdadeiras, que estavam a salvo nos bancos. Enfim, conservou os valores e livrou-se do bricabraque”. Como um judeu de romance de Charles Dickens ou um Shylock de Shakespeare, Sebastian surge como o velhaco semita. Teria sido tanto assim? Tudo pelo efeito trágico...
Exageros à parte, a cena final, do povo que carrega o cadáver de sua deusa no ápice de um Carnaval macabro, soa como um melodrama adequado ao estado de espírito dos brasileiros na época, que já haviam perdido um ano antes Getúlio Vargas, o cantor Francisco Alves em 1952 e a Copa do Mundo de 1950. Ruy Castro sugere, talvez sem querer, que Carmen forma um dos ingredientes importantes daquilo que outros de seus biografados, Nelson Rodrigues, denominava “complexo de vira-lata”. Ele subentende que o sonho brasileiro não é o americano. Carmen Miranda foi vítima do excesso de fama. Restam suas três centenas de gravações, feitas entre 1929 e 1953, tesouro imaterial intransferível da música brasileira.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Bravo! de fevereiro de 2006.
Para ir além
Luís Antônio Giron
São Paulo,
11/9/2006
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