Sem preconceitos ou mitificações, sinfonias, óperas e compositores eruditos podem fazer parte da cultura de professores e alunos
Nas escolas brasileiras, via de regra, a educação musical, quando existe, costuma cumprir função meramente decorativa. Parece estar decidido que, no mundo globalizado e tecnológico, no qual a educação serviria apenas para fornecer braços para o mercado de trabalho, a música é “inútil”.
A música é um legado da Humanidade, quase tão antigo quanto a própria civilização. Onde, senão na escola, transmitir este legado? A educação musical não tem como função formar grandes solistas, ou dar material para as orquestras sinfônicas. Ela serve, simplesmente, para formar cidadãos plenos – a musicalidade é aspecto indissociável do ser humano, e, portanto, sem o desenvolvimento desta potencialidade, o indivíduo não se completa.
Villa-Lobos , com o apoio da ditadura getulista, chegou a impor o ensino musical e de canto orfeônico nas escolas. A iniciativa não resistiu ao desaparecimento da personalidade forte do compositor que estava por trás dela. Resultado: hoje, ninguém lembra nem o que significa a palavra orfeão (coral).
Claro que a tarefa não é fácil, já que a principal característica da música erudita, na atualidade, é ser a manifestação artística que menos participa da vida das pessoas.
Todo mundo sabe diferenciar uma pintura de uma escultura; um romance de uma poesia; uma tragédia de uma comédia. Já a diferença entre concerto e uma sinfonia é uma pergunta que faz titubear até mesmo os jornalistas que cobrem a área cultural. Ainda há lojas de CDs que colocam os eruditos em uma nebulosa seção “instrumental”, junto ao jazz de Charlie Parker, ao new age de Enya, à MPB de Wagner Tiso, ao kitsch de Ray Coniff e a quem mais entrar na dança.
Tamanho desconhecimento acaba criando em torno da música erudita uma mística de mistério para iniciados, parte integrante de uma estratégia de refinamento social. A mensagem é clara: “eu, que degusto Mozart, sou infinitamente superior a você, que suspira por Roberto Carlos”. Uma rápida olhada nos figurinos utilizados pelo público dos concertos comprova facilmente a transformação da música erudita em artigo de esnobismo cultural.
O próprio termo “música erudita” contribui para este distanciamento. Erudito sugere acadêmico, hermético, difícil, incompreensível. O pior é que não há expressão melhor. “Música clássica” é até mais comum e mundialmente utilizado, mas peca pela inexatidão – clássica, a rigor, é apenas a música de um período histórico, o Classicismo. Outras tentativas como “música artística”, de Mário de Andrade, não pegaram. O maestro norte-americano Leonard Bernstein sugeriu “música exata” – já que é a música que procura seguir os textos, a tradição escrita, ou seja, as partituras.
O fato é que não é necessário, em absoluto, ser um “erudito” para gostar de música erudita, assim como ninguém precisa entender inglês para apreciar Shakespeare, ou saber cozinhar para se deleitar com os prazeres da gastronomia. O primeiro passo para se aproximar da música é procurar ouvi-la da maneira adequada.
O crítico J. Jota de Moraes, em seu livro O Que é Música (Editora Brasiliense), identifica três maneiras possíveis de ouvir música: com o corpo, com o coração e com a cabeça.
Ouvir com o corpo é o que faz o freqüentador de uma danceteria: deixar que todo o ser fique impregnado pela música, que transcende o ouvido, impulsionando irresistivelmente todos os membros. Já ouvir com o coração é utilizar a música como veículo para nossas emoções internas. É colocar no aparelho de som, depois de uma desilusão amorosa, um disco cheio de canções de dor de cotovelo. Ou, depois de um dia de trabalho duro, botar uma música bem calma para relaxar. A terceira maneira é emprestada de Haroldo de Campos: “ouvir estruturas”. Ouvir com a cabeça: prestar atenção na música, tentar discernir sua forma, sua estrutura, como ela se organiza e aonde ela chega (se é que chega). Muito complicado? Menos do que parece. Afinal, a rigor, ninguém precisa “entender” a música – sua linguagem não é verbal, ela não passa nenhuma “mensagem” no sentido estrito da palavra, não tem “significado”. A música só expressa a si mesma – tanto que, quando um compositor faz muita questão de dizer alguma coisa com clareza, adiciona a ela palavras. É claro que os três modos acima descritos estão amplamente relacionadas – e um delas pode servir como trampolim para a outra. Por exemplo: é difícil ficar com o corpo parado ao ouvir o tam-tam-tam-TAM que abre o primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven. Ouvir intelectualmente este movimento é, simplesmente, prestar atenção no que o autor faz com o tema. Ele não está ali de graça: com uma audição atenta, não há como não ficar abismado com a maneira engenhosa como Beethoven joga com ele, o modifica e relaciona com outros temas da sinfonia.
A utilização do intelecto amplia os limites da audição. O corpo ou o coração fazem você se interessar por um tema: prestar atenção nele garante o interesse por todo o movimento (as partes que compõem uma obra orquestral). O passo seguinte é, a partir de um movimento conhecido, ouvir a obra inteira. Achar deslumbrante o primeiro capítulo do Memorial do Convento, de José Saramago, não vai me fazer parar nele, mas querer ler o resto do romance; da mesma forma, a audição do Adagietto da Sinfonia nº 5, de Mahler, utilizado no filme Morte em Veneza, de Luchino Visconti, vai ficar muito mais rica se efetuada em conjunto com os outros quatro movimentos que completam a sinfonia.
Trata-se de um aprendizado contínuo e infindável. Ouvir bastante uma mesma obra não a esgota – pelo contrário, a cada vez se descobre novas belezas, novos aspectos, novas possibilidades. Por isso, o conselho principal para quem deseja entrar no mundo da música erudita é ouvir. Sintonizar a Cultura FM, em São Paulo (ou a emissora que transmite esse tipo de música em cada estado brasileiro). Freqüentar os concertos baratos – ou gratuitos – das orquestras brasileiras. Buscar fascículos e revistas especializadas nas bancas. Procurar CDs baratos (sim, eles existem) nas grandes lojas.
É fundamental ouvir autores como, digamos, Vivaldi, Wagner e Villa-Lobos, seja lá quem estiver tocando (embora, evidentemente, alguns o façam com um pouco mais de habilidade do que os outros). Para escolas, uma sugestão é marcar visitas ao Teatro Municipal com os alunos. Só o prédio, de 1911, já é um espetáculo; e, se outro proveito não houver, serve pelo menos para tirar aquela mística de lugar sagrado e inacessível. Claro que, para fazer os alunos voltarem ao teatro de livre e espontânea vontade, será preciso muito mais que um simples passeio. Mas, daí, já é tema para outro artigo.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor, publicado originalmente no livro Populares e Eruditos (Editora Invenção, 2004, 126 págs.), que traz uma coletânea de reportagens de Alexandre Pavan e Irineu Franco Perpetuo no intento de traçar um painel da produção musical brasileira popular e erudita.
Mas existe música erudita sendo escutada e praticada - só que não executam Mozart e nenhum dos clássicos. Sim, exato, música erudita não é música necessáriamente clássica, nem música barroca, nem música neo-romântica. Ou seja, música erudita não precisa ser Mozart, Chopin ou Beethoven - meus favoritos em músicas de "outros períodos históricos".
Música erudita pode ser, por exemplo, Apocalíptica, o quarteto de cordas erudito - um dos moços é até maestro, se não me engano - ou o String Quartet de Todd Mark Rubenstein que já gravou tributos a Rush, Led Zeppelin, Radiohead, Nine Inch Nails (sim, o industrial Trent Reznor tem dois tributos à sua obra, um do String Quartet e um em piano!).
Música erudita também pode ser rock´n roll. Eu recomendo ouvirem, é maravilhoso.