Tim Maia sempre levou uma vida de excessos, em que sexo, drogas, brigas e curtição eram rotina. Viveu do jeito que quis, fez tudo que deu na telha e morreu em conseqüência das inúmeras baladas que participou. Uma vida inconstante, marcada por culpas e desculpas, namoros firmes com as paradas de sucesso e momentos de puro esquecimento artístico. Suas lendárias reclamações ao microfone e uma agenda não cumprida religiosamente eram apenas os sintomas superficiais de sua vida no limite. Mas por um momento em sua carreira, ele tentou se redimir. De verdade.
"Já rodei o mundo quase mudo/ No entanto num segundo este livro veio à mão", canta em "Bom Senso", a primeira faixa do mitológico Tim Maia Racional a citar nominalmente sua conversão. "Já senti saudade/ Já fiz muita coisa errada/ Já dormi na rua/ Já pedi ajuda/ Mas lendo atingi o bom senso: a Imunização Racional". Ele conta sua própria história sobre um funk progressivo pesado, aquele caldo grosso que os americanos chamam de deep funk. Com sua voz conduzindo uma orquestra soul perfeita (metais, cordas, guitarras, baixão, bateraço, backing vocals perfeitos, tecladaços), ele explica sua nova fase.
O disco, que completou 30 anos em 2004, marcava o início da relação de Tim Maia com a Cultura Racional. Como o próprio Tim explica no decorrer dos dois volumes de Tim Maia Racional, a Cultura Racional não é uma seita ou uma religião ou uma doutrina ou qualquer coisa do tipo. Ela diz-se "a verdadeira verdade, a luz da humanidade", a explicação para todas as perguntas da existência nos é apresentada por uma força sobrenatural chamada de Racional Superior através de uma coleção de livros intitulada Universo em Desencanto. Aos poucos, você fica sabendo de toda explicação para tudo, segundo a Cultura.
O disco marca o contato de Tim com ele mesmo. Ele deixa os modismos de lado e entra em contato com o fundo de sua alma, buscando, sem máscaras, a essência da black music. Lançado de forma independente, o disco saiu pela primeira gravadora de Maia, a Seroma (as primeiras sílabas de seu nome, Sebastião Rodrigues Maia), e nunca mais foi relançado após Tim se afastar da Cultura Racional. Por ser tão direto, um disco pastor, pregador, ele não foi assimilado em sua época, sendo resgatado nos últimos anos e tendo, finalmente, sua importância reconhecida. Lançado em duas partes, o disco pode ser pensado como um álbum duplo, devido o conceito musical e imaginário que compõe o material. Suas capas e contracapas são reproduções de gráficos contidos no livro Universo em desencanto, explicando as diversas fases da humanidade, todas indo no rumo da fase racional.
Ele abre com "Imunização Racional", em que canta a "beleza que é sentir a natureza/ ter certeza pra onde vai e de onde vem/ (...)que beleza é saber seu nome/ sua origem, seu passado e seu futuro". O ritmo é quase um reggae, ponteado por um sinuoso baixo funky, entrecortado por uma guitarra wah-wah tímida, flautas e excelentes backing vocals, puxados pelo próprio Tim.
Em "O Grão Mestre Varonil", ele saúda, a capella, Manoel Jacintho Coelho, divulgador da seita e tido como "o maior homem do mundo" pois "semeou o conhecimento". Seguida da densa e dramática "Bom Senso", que mostra todo o instrumental assustador que Tim arranja. Deixa a banda comer o suingue solto e brada o vozeirão, falando: "Leia o livro Universo em desencanto. Não perca tempo".
Antes da próxima música, ele canta sozinho, um trecho de "Energia Racional", que volta inteira no próximo disco. "Leia o livro Universo em Desencanto" (sim, o disco é obcecado pelo tema), Tim guarda o funk no armário e solta todo o soul que sua cachola consegue ferver. Barry White e Marvin Gaye nos anos 70, mordam-se de inveja! Em "Leia o Livro...", Tim desliza com graça, com seu gogó de tenor que é justamente o meio-termo entre o grave de White e o agudo de Gaye. Cordas e metais dão um veludo especial a este que é um dos melhores momentos da carreira de Tim Maia.
Em "Contacto com o Mundo Racional", ele volta a nos surpreender, seja no instrumental (um blues com violões acústicos soltando acordes leves e solos discretos), como no vocal (em que afina seu gogó e capricha um falsete de arrepiar o mais frio dos brancos). Em "Universo em Desencanto", ele tenta, em vão, explicar toda a teoria do livro, descrevendo as eras da criação, de onde viemos, pra onde vamos. Musicalmente, nos convida para um samba colorido de funk, mostrando que seu conceito de black music abrange as Américas do Norte, Central e do Sul. "Leia o livro/ Vai saber/ O que realmente/ É viver", canta com tanta empolgação que, como um amigo meu diz, dá vontade de comprar e ler o tal livro, "A lição foi mal passada/ Quem aprendeu não sabe nada/ (...) Disseram que sabiam das coisas, mas no entanto não sabem coisa nenhuma/ Pura Inconsciência/ (...) É pra já/ É coisa linda/ É pra agora/ Vamos entrar em contato/ Com os nossos irmãos puros limpos e perfeitos/ Eternos do supermundo/ Da planície Racional/ Leia o livro Universo em desencanto".
"You don't know what I know" ensaia o lado inglês de sua pregação, mais uma vez sozinho, sem instrumentos: "Read the book/ The only book/ Universe in disenchantment/ And you'll know the Truth", para em seguida entrar num electroboogie cheio de teclados (Hammonds, sintetizadores, Glockenspiels, Moogs, clavinetes) chamado “Rational Culture”. Depois de misturar Herbie Hancock com George Clinton numa introdução cabulosa, ele começa a pregação, toda em inglês: "Vamos governar o mundo/ Você não sabe?/ Vamos colocá-lo de pé". O suingue é irresistível e depois do refrão Tim começa a dar ordens para o ouvinte, à James Brown, sempre em inglês: "Ouçam todos/ Vamos contar a coisa mais importante que já ouviram na vida/ Nunca ouviram isso antes:/ Viemos de um supermundo, de energia racional/ E vivemos num antimundo, de energia animal/ Leia o livro, o único livro, Universo em desencanto/ E vais saber a verdade".
O disco 2 abre com "Quer Queira Quer Não Queira", um afro-soul que explica que a Cultura Racional, "Não é história, não é doutrina, não é ciência, seita ou religião/ É coisa limpa, é coisa pura". O samba "Paz Interior" continua o clima de celebração, explicando como um sambista saindo de uma paixão mal resolvida, cantando que "Agora já não dependo de você/ Voltou o brilho dos meus olhos/ Voltou a paz interior".
O groove pegajoso e lento de "O Caminho do Bem" é o primeiro grande momento do segundo disco, um funk suave, em que Tim acompanha o riff central cantando a expressão que batiza a canção. Acompanhado de um baixo de veludo, dois teclados elétricos minimalistas, percussão de trilha sonora e uma guitarra wah-wah amordaçada, ele transforma a Cultura Racional numa espécie de culto do gueto, como um pregador em ruas sem saída, que tenta hipnotizar uma legião de mendigos fanáticos com um mantra de ritmo.
"Eu tive que subir lá no alto para ver Energia Racional/ A verdadeira luz da humanidade", canta em "Energia Racional" repetidas vezes, ao som de um tapete sonoro perfeito. "Que legal" pára no Caribe e toma doses caprichadas de mambo, salsa e rumba, principalmente com a adição de percussões caprichadas e um molho extra dado pelos teclados, enquanto ele explica que a Cultura Racional é "Cultura consciente, com lógica e com base/ Não ataca, não ofende, não humilha".
A balada "Cultura Racional" mais uma vez vai direto ao assunto, explicando o centro de sua nova visão de mundo: "Todo mundo vai saber/ Muita paz, muita união/ Universo em Desencanto/ Leia logo, vamos irmão/ Saber de tudo/ De toda beleza real/ Ficar integrado na fase que é Racional". O soul derramado – de fazer inveja a qualquer baladeiro dos anos 70 – de "O Dever de Fazer Propaganda desse Conhecimento" nos faz ter certeza que Tim realmente acredita no que fala e, talvez, esteja mesmo em outra etapa da evolução mental. Canta um texto com tanta emoção que, se lido, se tornaria chato e desinteressante, e que soa como uma canção de amor, um hino a Deus, de tão natural: "Vou informar o que eu já sei/ De benefícios pra tudo e pra todos/ Recuperar o natural/ Pois a vida é racional".
Novamente ele aponta para a África e canta que veio "Para lhe dizer/ Que eles agora estão/ Numa relax, numa tranqüila, numa boa/ Lendo os livros da Cultura Racional". Eles quem, você se pergunta? Os povos dos três países que batizam Guiné Bissau, Moçambique e Angola Racional, que toma doses de rock graças a um solo pontiagudo que sobe sobre a base bossa criada pela cozinha. O disco termina com "Imunização Racional que Beleza", que conclui a tese com a mesma afirmação do início, só que com um arranjo diferente. Neste disco, Tim Maia é Deus e é ele quem decide como são as coisas. Ele conhece tudo, ele sabe tudo, de que adianta ser contra? Resta apenas disposição para encontrar uma raridade destas pelos sebos de disco do Brasil.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no site Gafieiras.
E viva o Tim Maia!!!
Realmente é sempre bom ler e ver relançamentos sobre o Mestre Tim Maia.
O Tim foi o nosso representante da black music, funk, soul, e tantas outras modalidades de estilo. Grande Tim, meio racional e outras vezes totalmente irracional, esse é o cara que traduz o ritmo de uma geração black brasileira.
Tim Maia é um músico ímpar. Um gênio que soube aproveitar todas as possibilidades (que o diga sua intensa passagem pelos EUA nos anos 60). Enquanto muitos "artistas" na atualidade sucumbem ao apelo "gospel" (sendo a maioria de gosto duvidoso), para garantir um "lugarzinho ao sol" -claro que há exceções-, Tim ousou abrir mão do "status quo" do sucesso, incluindo romper um vantajoso contrato com um selo multicacional, dedicando-se integralmente, desinteressadamente, e às suas próprias custas, à divulgação do que ele supunha ser a verdade naquele momento.
Na minha modesta opinião, o disco duplo é um dos melhores do mundo em todos os tempos.
Esse é o disco, o cara realmente tava numa fasse bem criativa, pena que se decepicionou com a CULTURA RACIONAL, senão, com certeza, viriam outras belas obras como essa, e ele estaria entre nós até hoje, mas TIM MAIA é muito bom com C.R. ou sem C.R.
O fato é que se ele tivesse seguido essa "famigerada" doutrina estaria vivo, cheio de saúde e nós... com discos maravilhosos. Por que será que as pessoas satirizam quando alguém prega a paz e a disciplina "do bem"? Deveria ser o contrário, não???