Quando o cinema toma por base a literatura, a comparação entre filme e livro é inevitável. Excepcionalmente, o filme supera o livro. Um dos raros casos em que isso ocorreu foi em O Jardim dos Finzi Contini, dirigido por Vittorio de Sica, em 1970.
Baseado em romance homônimo de Giorgio Bassani, publicado na Itália, em 1961, e traduzido no Brasil cerca de 20 anos depois, o filme superou a obra que lhe deu origem. Contribuiu para isso a sensualidade que o trio central de atores destilava sobre a platéia. Dominique Sanda e Helmut Berger, como Micòl e Alberto – o rico casal de irmãos judeus, filhos do dono da mansão em Ferrara onde a nata da juventude judaica se reunia nos anos 30 –, ao lado de Fábio Testi, interpretando o amigo socialista de Alberto que seduz Micòl, acrescentaram charme e tensão extras às páginas do livro.
Pela regra geral, este último supera o filme. Nela se enquadra O diabo veste Prada (dirigido por David Frenkel, que respondeu pela direção de episódios de Sex and the City), cuja estréia nos cinemas em São Paulo ocorreu dia 22 de setembro.
O romance do qual foi extraído o filme é a obra de estréia de Lauren Weisberger. Lançado nos Estados Unidos em 2003, conta as desventuras de uma jornalista recém-formada em seu primeiro emprego em Nova York, como assistente da toda poderosa editora de uma prestigiada revista de moda, Runway. Durante seis meses, o livro permaneceu na lista dos mais vendidos do The New York Times; foi traduzido para 27 idiomas. No Brasil, editado pela Record, encontra-se na 11ª edição. Esse sucesso foi alimentado pelo fato de a autora ter trabalhado durante um ano como assistente de Anne Wintour, editora da revista Vogue norte-americana.
Roman à clef? Sim, apesar dos desmentidos solenes de Ms. Weisberger. E, por tratar de moda, o que significa dúzias de grifes – além da Prada do título, Marc Jacobs, Calvin Klein, Chanel, Valentino, Narciso Rodrigues, entre outras – chick lit, literatura de mulherzinhas? Não, porque moda não é assunto exclusivamente feminino (que o diga Colbert, ministro das Finanças de Luiz XIV, que viu no desenvolvimento da indústria do luxo uma forma de ganhar dinheiro e de projetar o poder da França).
O livro O diabo veste Prada é bem escrito. A começar pelo título, por si só espirituoso, o texto é ágil e ritmado. A adaptação da heroína, Andrea Sachs (no filme interpretada por Anne Hathaway, de O Diário da Princesa e O segredo de Brokeback Mountain), desinteressada por moda e ansiosa por uma chance para exercer suas aptidões jornalísticas, ao ambiente fútil da redação da revista Runway e aos crescentes caprichos de sua editora, Miranda Prestley (a cargo do talento de Meryl Streep, vencedora de dois Oscars) rendem boas risadas.
Os livros não precisam ser sempre levados a sério, da mesma forma que nem todas situações da vida, nem todos seres humanos (a começar por nós mesmos). O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, na edição passada do jornal literário Rascunho, aponta para o descaso com que a literatura de entretenimento é tratada pelos autores brasileiros, repetindo as palavras do conceituado José Paulo Paes nesse mesmo sentido. Depois de um livro sério, seguindo o exemplo dado por Assis Brasil, um texto mais leve, sem negligenciar aqueles casos em que o leitor é iniciado nos mistérios literários por meio de um romance que, sendo correto, é descompromissado.
Aqueles que leram O diabo veste Prada, sairão ligeiramente decepcionados do cinema. Embora divertido, o livro é bem mais. Apesar da competente atuação de Meryl Streep, ela não tem o physique du rôle exigido pelo papel de Miranda Priestly. Seu manequim está além dos números 36 ou 38 a que se submetem todas as que trabalham em Runway. Além disso, faltam-lhe não apenas os frios olhos azuis, mas também os cabelos lisos, cortados Chanel à altura do queixo, com franja, no melhor estilo Louise Brooks, descritos com ênfase no livro. E, o fundamental: não rosna, insistindo em seu sotaque britânico (sim, porque no livro Miranda é inglesa), o “Anh-dre-ah” impresso em grande número das páginas.
Particularmente, fui ao cinema curiosa em ver a cena em que, na festa organizada pela Runway, no Metropolitan Museum of Art, a megera fashion surge de vermelho (e Betty Davis, em Jezebel, deu exemplo do que uma mulher em vermelho é capaz de fazer...). Imponente, tendo ao fundo as ruínas do templo de Dandur, Miranda é admirada por uma Andrea Sachs mesmerizada. Para minha frustração, Meryl Streep nessa tomada está de preto, diluída na multidão de mulheres de escuro que participam do evento, não havendo a cena do templo. Nossa imaginação constrói catedrais às vezes inexeqüíveis.
O mais relevante, entretanto, não está nesses detalhes. Interferiu-se de modo significativo em dois pontos do livro. O primeiro deles ao omitir que Andrea, de origem judaica, descobre a certa altura que Miranda não nasceu Miranda Priestly, mas Miriam Princheck, um dos onze filhos de um rabino londrino. Daí, talvez, o grande choque para Andrea escutar de Miranda que seriam iguais. Podem dividir as origens, mas Andrea nega-se a partilhar o destino.
O segundo ponto diz respeito ao final do filme. Seguindo a tradição hollywoodiana de fazê-los felizes e edificantes, o desfecho do livro é alterado no filme. No primeiro, Andrea, sem o namorado, sobrevive às custas do dinheiro que obtém na venda do guarda-roupa e acessórios de grife que ganhara na redação de Runway, enquanto procura, e conquista, seu lugar como jornalista.
Não é a primeira vez que a busca de happy ends altera as últimas páginas de um romance. Em uma versão norte-americana recente de O Conde de Monte Cristo, o célebre romance de Alexandre Dumas (pai) – um dos expoentes da literatura de entretenimento do século XIX – , Edmond Dantés e Mercédès se casam, depois de Dantés matar em duelo o Conde de Morcerf, com quem Mercédès se unira já grávida de Dantés. Uma bobagem, uma vez que, para começar, no livro Morcerf suicida-se e Dantés não tinha filho algum. Longe de comparar Dumas a Weisberger, o certo é que o elegante diabo desta última não está sozinho.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedito por Eugenia Zerbini, escritora, autora de As netas da Ema, romance que recebeu o prêmio SESC-Literatura, em 2005.
Querida Eugenia, muito bom o texto! Você deveria fazer comentários e críticas de livros e filmes para algum jornal, pois estamos precisando de gente competente e preparada, enfim, culta como você. Depois de assistir ao filme vou reler seu artigo. Parabéns e um abraço!
Olá Eugenia! Também li o livro antes de ver o filme e encontrei muitas contradições. A que mais me surpreendeu foi a atuação da atriz Merryl Streep, que, na minha modesta opinião, apesar de ótima, não chegou perto da arrogância da "Miranda Prestley" descrita no livro. A tensão no ambiente da revista também foi mal trabalhada porque passou uma impressão de cena construída; nada natural. Alteraram muitos trechos relatados no livro. Mostra um pouquinho dos muiiitttooos absurdos envolvidos nos setores ligados ao luxo... mas enfim, interessante. Um abraço!
Querida Eugenia,
Assisti e gostei do filme. Agora, graças ao seu artigo, estou curiosa para ler o livro! Seu texto é maravilhosamente bem escrito! Escreva mais sobre o assunto, por favor! Abraços!
Acho muito difícil comparar livro e filme - principalmente desta espécie. São coisas diferente demais. Vi o filme e, coincidentemente, escrevi sobre este assunto no meu blog.
Olá! Achei o texto muito bem escrito, apesar de não concordar com algumas idéias expostas nele. Primeiro, acredito que, quando um filme é "baseado" em um livro, ele não precisa seguir todas as linhas fielmente. Por isso, diz-se que a produção é "baseada" em um livro. Em Código Da Vinci ocorreu o mesmo e, mesmo assim, achei o filme muito bom. Eu não li o livro e achei o filme bom, principalmente pela atuação da Meryl que, para mim, faz com que o filme valha a pena ser visto. Mas, a verdade mesmo é que dificilmente um filme ultrapassa a qualidade de um livro. Enquanto no filme está tudo exposto lá e você apenas assiste, no livro você torna-se parte integrante da história, a partir do momento em que as imagens e a construção das cenas são formadas de acordo com a nossa imaginação.
Eugênia, conheço seu trabalho como escritora e pode soar repetitivo dizer que você tem o perfeito equilíbrio entre erudição e cultura popular. Aprecio o modo como busca paradigmas da vida real nos clássicos da literatura (e, agora, no cinema!). Você enfatiza a idéia de que a arte imita a vida e vida imita a arte. Não li o livro, vi o filme. Confesso que fui para ver os modelitos e os sapatos, é claro! Superou as expectativas! Coincidentemente, nesses dias, estou lendo o roteiro de um filme baseado em um livro que conheço bem. Acho difícil que um roteiro possa ser fiel a um livro, pois este é tecido com linhas diferentes. O cinema utiliza as imagens para dizer tudo (um dia ele foi mudo!). O livro tem que usar as palavras certas para nos levar aos perfis que devemos ver, sejam eles dos personagens ou dos ambientes. O livro é escrito por uma só mão. O filme, admite a intervenção de muitas idéias, pessoas e patrocinadores. Para nós, apreciadores do cinema e dos livros, o melhor é o dialogo.