Na universidade, sempre que me encontro com Sérgio Rivero, um dos meus colegas de Teoria da Literatura e que, além de professor, é romancista e arquiteto, conversamos sobre o grau de interesse dos alunos do curso de Letras. É óbvio que há alunos bons, alguns verdadeiramente excepcionais eu diria, mas uma boa parte se contenta em apenas polir as cadeiras.
Estes alunos são, em geral, uns eternos reclamões. Reclamam tanto das aulas mais complexas quanto daquelas mais simples, quase pueris. Reclamam da quantidade excessiva de textos, do fato de que têm de tirar fotocópias, pois a biblioteca nem sempre abriga em seu acervo os livros indicados, e eles não dispõem de dinheiro suficiente, eles, que volta e meia sacam do bolso ou da bolsa, não raro em plena aula, o discreto e indispensável telefone celular...
Também reclamam que está calor ou que está frio; que os trabalhos de pesquisa demandam muito tempo e esforço e que as provas ou são muito difíceis (exigem que se pense sobre o que se vai escrever e, afinal, se escreva) ou que são muito extensas, obrigando-os a ficar durante muito tempo pregados à cadeira, fazendo o que menos gostam de fazer... Em suma, reclamam de tudo, exceto de si mesmos.
Num dos nossos últimos e eventuais encontros, Sérgio e eu descobrimos afinal o porquê de tanta queixa e intolerância. A verdade – nos parece – é que, em tempos tão rápidos, tão exigentes quanto à própria economia de tempo, estudar dia a dia, aula a aula, texto a texto, livro a livro, e ser avaliado prova a prova, seminário a seminário, tornou-se um trabalho fastidioso e angustiante.
Até que se adquira o pleno conhecimento para o exercício de uma determinada profissão, alguns anos terão se passado, e parte da juventude escoado, se não toda ela, levando-se em conta que algumas profissões demandam do sujeito dez anos ou mais de rigorosos estudos. Quer dizer: quando se começa a exercê-las, mais ou menos metade da vida já se derramou. E a consciência da passagem do tempo é cruel, mesmo para o menos preocupado dos homens.
Essa reflexão nos levou a compreender que a educação, em sintonia com os novos tempos, deve se processar de maneira bem mais rápida e bem menos angustiante, de preferência sem desperdiçar nem um minuto sequer. Mas como seria isso? Não demoramos muito a perceber que o conhecimento precisa antes de tudo, para o bem do homem e o pleno gozo de sua vida, ser engolido, literalmente. E então começamos a imaginar...
Em lugar da exaustiva disciplina de Teoria da Literatura I, com trinta títulos, duas ou três avaliações escritas, seminários e extensos questionários em equipe, em lugar de tudo isso, apenas uma caixinha de suaves e açucarados comprimidos. E pílulas de Latim I, também cápsulas de Lingüística II.
O aluno só teria o trabalho de se dirigir ao gabinete do professor e solicitar a receita. Depois, praia, festas, viagens, namoro e as inúteis leituras de Paulo Coelho ou Sidney Sheldon... E para aqueles alunos que têm dificuldade de engolir (que ainda não abandonaram de todo a infância), as disciplinas poderiam também ser oferecidas em versões mais frugais: na forma efervescente ou no tom espesso e adocicado dos xaropes cor de laranja.
Não faltaria, é claro, para alguns poucos, a intragável colherada-rícino de Língua Portuguesa V. E para os masoquistas, aqueles que admiram o fervor do caos, a apreensão de Língua Inglesa I ou Filologia Românica II na aguilhoante forma de injeções ou supositórios... Ou na dolorosa variante de soro na veia, que talvez seja a maneira preferida dos hipocondríacos de atingir o conhecimento, indo para lá e para cá, na rua e pelos corredores, com sua garrafinha...
Para os que falam muito, as homeopáticas doses de meia em meia hora de Língua Francesa I ou da árida História da Crítica Literária, de Sílvio Romero a Luís Costa Lima. Já para os contemplativos, História da Arte ou Introdução à Filosofia em tépidos chás medicinais diários, às cinco da tarde, o sol se espreguiçando no horizonte, em meio a ternas nuvens.
E percebam que lucrariam com isso tanto os alunos quanto os professores, que teriam tempo quase integral para se dedicar às pesquisas de novas disciplinas e sua melhor e mais proveitosa ingestão...
Quando um certo aluno necessitasse, por força das circunstâncias, de uma imposição mais aguda de conhecimento, se promoveria a implantação, diretamente no cérebro, mediante intervenção cirúrgica, de um curso inteiro, seja de Letras, seja de Geografia, ou mesmo de Biologia ou Direito.
Os ganhos com tal procedimento seriam extensivos e incalculáveis. Por exemplo: quando se precisasse urgentemente de um novo professor, não seria nem preciso abrir concurso ou seleção. De um dia para o outro, o aluno se tornaria apto a ser contratado e a seguir, salvo se não quisesse, uma brilhante carreira acadêmica.
– Fantástico! – Sérgio exultou, da última vez que debatemos, com mais profundidade, o assunto.
– É. E é também, sem dúvida, a solução de todas as reclamações – acrescentei.
Enredado em seus pensamentos, Sérgio de pronto se lembrou do monótono Matrix, um filme que nos faz dormir com suas enfadonhas seqüências de ação.
– Sim, é o que acontece no desfecho – concordei. – A protagonista toma, em segundos, por computador, um curso inteiro de pilotagem de helicóptero. É como se ingerisse um simples comprimido com o conteúdo de centenas de aulas. A educação do futuro, no tempo de nossos netos ou bisnetos, talvez seja essa – concluí, sombrio.
Na oportunidade, conversávamos sozinhos na sala da área de literatura. De repente, a porta se abriu, e uma aluna que desconhecíamos perguntou, com uma inatural indolência, efeito talvez de seu estado:
– Vocês têm... aí... um comprimido...
Rimos, às bandeiras despregadas, como se dizia antigamente nos piores e melhores romances. Sem entender por que ríamos, a garota completou:
– Para dor... de cabeça...?
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Correio da Bahia em outubro de 2002.
Tive a honra de ser aluno de Mayrant Gallo em quatro disciplinas. Uma delas optativa. E seria aluno dele por tantas outras matérias, se tivesse oportunidade. Um verdadeiro mestre, que sabe como passar o conhecimento aos alunos. As aulas de Mayrant e de alguns raros professores não podem ser distribuídas em pílulas. Pois são com eles que aprendemos não apenas lições acadêmicas, mas lições para toda a vida.
hahaha! genial! conheço um bom número de acadêmicos que não hesitariam em aderir a este método Matrix de aprendizado. vai vender feito água. vai por mim.
aliás, eu achava que era a única pesssoa que tivesse dormido no tal filme. ô, chatice sem fim.
Certo, alguém que qualifica o filme "The Matrix" como "monótono" e "enfadonho"... Agora compreendo melhor porque os cursos de Letras estão sendo abandonados enquanto que as pós de Semiótica e Cibercultura vivem lotadas. Faz muito sentido...