Costuma-se chamar Antônio Carlos Jobim de maestro, mas o termo é impreciso, e nem sequer o compositor se considerava assim. Com razão: “maestro” vibra como um título nobiliárquico, hipérbole tipicamente brasileira. Ora, o título não faz jus à real contribuição de Jobim para a música popular, nem faz justiça aos maestros que formaram o músico, como Radamés Gnattali, Lírio Panicalli, Alceu Bocchino e Léo Peracchi. Eles orientaram o jovem pianista de boate no início da carreira. Em 1952, por exemplo, Radamés o chamou para trabalhar com seu assistente na gravadora Continental, e lhe passou conhecimento de arranjo. Suas peças sinfônicas – como Sinfonia do Rio de Janeiro, de 1954 – ou as composições lançadas postumamente no CD Jobim Sinfônico (Biscoito Fino, 2002) – pecam pelo rebuscamento e excesso, plasmados na escritura de Radamés e Panicalli. Tom brincava que, toda vez que precisava fazer um arranjo, procurava os mestres como Panicalli. Segundo Tom, este maestro havia inventado um círculo mágico em que figuravam as 24 tonalidades e seus tons relativos. “Toda vez que queria consultar o Lírio, não o encontrava”, disse Tom a este articulista em 1992. “O Lírio era inteligente: morava em Niterói e não tinha telefone!”.
O fato é que Tom conhecia onde se encontrava a arte de escrever música, mas não era sua obsessão nem especialidade arranjar composições e reger orquestras, embora o tenha feito em algumas raras ocasiões. Na realidade, seu prato forte era a arte de compor. Para demonstrar a idéia, é necessário não só acompanhar a carreira do músico – influências, repulsas e interditos –, mas analisar algumas de suas composições. Ele marcou a música popular brasileira como autor semi-erudito (ou “semi-sério”, como querem os puristas). Aparentemente, a reflexão é ociosa. No entanto, caso o ouvinte prestar atenção na série produtiva da música popular brasileira, descobrirá a existência de duas correntes centrais que fazem a história dos gêneros avançar: a corrente espontânea e a por assim dizer artificial ou artificiosa – no sentido de obra de arte determinada e construída em registro culto.
Pertencente à segunda corrente, Tom Jobim não contou com a inspiração espontânea. Se improvisou, foi para registrar o que valia a pena em pentagrama. Isso o diferencia de autores intuitivos, como Cartola, Dorival Caymmi, Wilson Batista e Bororó. E o perfila com autores que fizeram a diferença no avanço da estrutura da música brasileira. Entre eles estão Sinhô, Ary Barroso, Custódio Mesquita, João Donato, Ivan Lins e Egberto Gismonti. Como seus irmãos de linhagem, Tom foi autor de música escrita, planejada e supervisionada até o resultado final. As duas correntes ora se misturam, ora rejeitam uma à outra, gerando a história, os conflitos e a fecundidade inigualável da música popular brasileira. No topo da correnteza, beneficiando-se delas, domina o Tom.
O músico deixou uma coleção de canções maravilhosas, com melodias e harmonias repletas de desvios da norma, sem, no entanto, romper com ela. Pelo contrário, toda a obra de Tom – cerca de 400 canções, feitas entre 1950 e 1994, 101 delas registradas no songbook de Almir Chediak – é o testemunho de uma educação musical consistente, em piano, harmonia, contraponto, solfejo, instrumentação. Isso para não mencionar a educação poética, que faz de muitas de suas letras exemplos máximos do gênero. Basta ouvir algumas canções compostas exclusivamente por Tom – “Pensando em você”, “Fotografia”, “Águas de Março”, “Wave” – para se dar conta dos ecos de outros compositores e poetas em sua produção – e, mesmo assim, de sua originalidade. Artista consciente de sua linguagem, escreveu música com o auxílio de um instrumento mais amplo do habitualmente usado na música popular: o piano.
Tom se apossou de um repertório musical imenso. Sua marca foi a da diferença e da sofisticação. As modulações e acordes, o irrupção de um timbre ou de uma levada, tudo o que surpreende o ouvinte no decorrer de uma canção jobiniana pode surpreender por se tratar do contexto da música popular, sobretudo em um gênero como o samba, “elevado” à condição de objeto de arte pelos bossa-novistas. A obra de Tom só faz reforçar o sistema harmônico moderno, herdado de Frédéric Chopin e Claude Debussy, retraduzido por George Gershwin e os jazzistas norte-americanos, disseminado pela música popular.
Sua produção é divisível em três seqüências distintas. A primeira marca o início de carreira. A partir de 1952, Tom lançou sambas e sambas-canções camerísticos com envergadura harmônica erudita. Em canções tristes como a que marcou sua estréia – “Incerteza”, em interpretação de Maurici Moura (Sinter, 1952) – e as que se sucederam – como “Faz uma semana”, “Solidão” e a bem-humorada “Teresa da praia” – fazem-se ouvir aqui a influência de Radamés: dinâmica contrastante, acordes de nona e décima primeira, melodia cromática, modulações e a instrumentação camerística, com uso de instrumentos clássicos, como violoncelo, oboé e fagote. A segunda seqüência de imaginação jobiniana parte da forma de execução do samba formulada pelo cantor e violonista João Gilberto: a Bossa Nova. Tom adotou a suave melancolia bossa-novista (cujo teórico é Vinicius de Moraes), reduziu a dinâmica aos pianos e pianíssimos, concentrou a instrumentação e adaptou a técnica pianística ao esquema simplificado do violão (pela primeira vez, este instrumento, e não o piano, dava as cartas numa mutação da MPB) – ao mesmo tempo que ampliou o vocabulário harmônico. Assim nasceram “Samba de uma nota só”, “Água de beber” e “Insensatez” (acusada de plágio do “Prelúdio nº 4” de Chopin, peça tocada por iniciantes de piano), entre tantas canções hoje consideradas clássicas. A terceira e última seqüência pode ser definida como neo-sinfônica. As composições – “Águas de Março”, “Passarim”, “Urubu” – se tornam mais ecológicas e autobiográficas. As harmonias refluem para o esquema clássico da primeira fase, acrescidas de novas ousadias (clusters, acordes de sexta ou de quinta aumentada) e pedais que diluíam a rítmica da Bossa Nova num universo de citações em expansão. É como se o autor quisesse abafar a influência de João Gilberto no espírito de sua clave, em benefício das lições de Villa-Lobos.
Em 52 anos de vida artística, Tom revelou uma imensa capacidade de submeter todo tipo de informação musical ao próprio talento criador. Entre os interditos, destacam-se a música serial (que aprendeu na fonte, pois foi aluno de Hans-Joachim Koellreutter, pioneiro do dodecafonismo no Brasil), o samba “de raiz”, e o pop. Apesar de evidentes em sua música, o jazz e a tradição erudita jamais transpõem os limites da citação e da evocação. O que ressalta no estilo do compositor é o design sonoro concentrado, realizando a síntese de tudo o que a música tocou no século XX. Não se trata de um maestro, mas não está longe da verdade afirmar que Antônio Carlos Jobim é um dos mestres absolutos da música popular mais rica já sonhada.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em janeiro de 2007.
Brilhante ensaio. A terceira "fase" de Jobim é algo pra se ouvir... É interessante lembrar que Tom gravou poucas músicas de outros compositores, escolhendo sempre as que, de certa forma, cumpriam suas exigências muito refinadas. Uma das minhas melhores surpresas foi a gravação que ele fez do "Trem Azul", de Lô Borges, canção que Tom tinha em alta conta, o que evidencia que tinha as "antenas ligadas" no cenário musical brasileiro. Tom gostava do Clube da Esquina, da turma mineira. Que por sua vez sempre reverenciou sua música.
Poucas vezes a gente tem a oportunidade de ler uma crítica musical onde o articulista demonstra conhecer música, sabe do que está falando. Adorei! Concordo também que as obras inéditas gravadas no Jobim Sinfônico (do qual tive a honra de participar) não tinham sido gravadas antes por que o Tom não queria mesmo. Vale, claro, o registro. Acho também que Tom provou que, no Brasil, a distinção entre o erudito e o popular não é tão clara como em outras plagas - e isso é ótimo para a música em geral! Parabéns!