Os fundamentalistas do mercado estão acabando com a literatura no Brasil, principalmente com os autores nacionais.
Premissa maior: produto que não vende não vai para o mercado. Premissa menor: literatura de ficção não vende; brasileira, menos ainda; autor estreante, então, nem pensar. Síntese, ou conclusão: livro de ficção, tô fora!
As premissas são discutíveis, mas a conclusão reflete uma realidade palpável, uma tendência marcante no mercado de livros no Brasil e no mundo. Não vai acontecer amanhã, nem certamente na próxima década. Mas, mais cedo do que tarde, e mais cedo ainda num país culturalmente frágil, como o Brasil, por causa do desinteresse comercial de editoras e livrarias a literatura de ficção estará inapelavelmente confinada aos sebos, aos saites internéticos e aos domínios de bibliófilos.
Nos últimos anos, até em função do desembarque no país de grandes grupos editoriais do Primeiro Mundo, o mercado de livros brasileiro entrou num, digamos assim, surto de profissionalização. Executivos de comprovada expertise em administração e marketing passaram a ser recrutados, geralmente no mercado financeiro ou no do grande varejo, para “otimizar resultados” ou, mais explicitamente, “maximizar lucros” no ofício de fazer e vender livros.
Nada contra, em termos. No âmbito privado, o negócio do livro, como qualquer outro, precisa ser rentável para se viabilizar. É importantíssima, portanto, a contribuição de executivos dedicados, administradores competentes, marqueteiros criativos que façam sua parte na dificílima tarefa de vender livros num país em que o consumo médio per capita desse produto é ridículo.
Ocorre que, em perseguição à meta de transformar o livro em negócio cada vez mais rentável, nas editoras e livrarias agora dominadas pela Razão de Mercado o desempenho comercial passou a prevalecer claramente sobre a qualidade do conteúdo, nas decisões relativas tanto à definição de catálogo pelas casas publicadoras, quanto – com mais força ainda – nos critérios de compra pela rede varejista. E a primeira vítima são as obras literárias. E dá-lhe auto-ajuda!
Como se trata de um mercado vendedor, onde a oferta é maior do que a demanda, a relação entre os dois principais players, editoras e livrarias (o autor não é player, é o protagonista do mundo do livro) é desequilibrada, em prejuízo das casas publicadoras. A maior evidência disso: nos últimos 10 anos o desconto sobre o preço de capa imposto pelas livrarias aumentou no mínimo 12 pontos percentuais, passando de 40% para 52% em média. E já se exige, sem o menor constrangimento, 60%. Essa é talvez a mais importante contribuição que o mercado livreiro tem dado ao estímulo à leitura e ao aumento do consumo de livros no Brasil...
Esse quadro é o resultado da substituição de gerações de editores e livreiros “românticos” e “idealistas” como Monteiro Lobato, Caio Prado, Ênio Silveira, José Olympio, Fernando Gasparian e outras figuras admiráveis, por uma constelação de jovens, talentosos e ambiciosos executivos do mercado que sabem tudo, menos uma coisa essencial: o livro não é um produto como outro qualquer, e como tal, como produto diferenciado, não pode ser medido com a mesma régua mercadológica que avalia os produtos destinados a satisfazer, apenas (o advérbio entra aqui, é claro, como recurso retórico), as necessidades materiais do Homem.
O livro é a mais importante e completa fonte de informação, de conhecimento, de prazer e de fruição intelectuais. É um maravilhoso veículo para a força das idéias, a magia do imaginário, o enlevo do poético, para a transcendência da vida, enfim. E por ser tudo isso ele é certamente o mais poderoso de todos os instrumentos de aperfeiçoamento e promoção humana e de transformação social.
É possível imaginar o extraordinário desenvolvimento da Humanidade a partir da segunda metade do último milênio, e muito especialmente no século passado, sem a existência do livro? E seria mera coincidência o fato de que esse desenvolvimento só ocorreu a partir da disseminação da produção do livro, com o advento do tipo móvel, a fantástica invenção de Gutenberg de fins do século XV?
Bem, se nem por isso tudo se pode considerar o livro um produto diferenciado, que dizer do fato de que no Brasil ele goza do privilégio da isenção fiscal?
Aos que recusam o status diferenciado do livro e fazem questão de tratá-lo como um produto qualquer, é o caso de perguntar se recusariam também esse benefício da isenção fiscal, concedido exatamente – ou não? – em razão de seu status diferenciado.
Ninguém pode ser contra, isso é ululantemente óbvio, à permanente evolução do setor livreiro, assim compreendida como o aprimoramento da gestão do negócio de acordo com as melhores técnicas disponíveis – e o marketing é exatamente isso, um conjunto de ensinamentos técnicos a serviço do bom negócio; um meio, e não um fim em si mesmo.
É claro que o modelo de gestão voluntarista dos grandes editores do século XX não cabe no mundo de hoje. Monteiro Lobato, o primeiro dos grandes editores brasileiros, faliu mais de uma vez. Isso não o diminui nem o desqualifica como admirável vulto e exemplo histórico, mas nos ajuda a compreender que o negócio do livro precisa é de equilíbrio entre a necessidade de sua viabilização como empreendimento e o respeito à natureza muito especial do produto com que trabalha.
Na procura desse equilíbrio, falando particularmente como editor, é preciso aceitar que o bom desempenho comercial de uma casa publicadora deve ser perseguido no conjunto de seu catálogo, e não em cada título individualmente. Quero dizer com isso que é necessário, sim, assumir eventualmente o lançamento de um título com previsível mau desempenho de vendas, desde de que estejamos convencidos de que esse título trará contribuição importante, única, no campo em que se insere.
Colocar um livro assim nas livrarias é missão quase impossível. Pelo menos, se o livro não carrega o selo de uma grande editora capaz de negociá-lo dentro de um pacote avalizado pela inclusão de alguns possíveis best-sellers. É a lógica do mercado. Ou a lei das selvas. Mas o editor não pode renunciar à responsabilidade que significa trabalhar com livros.
Aos fundamentalistas adoradores do Deus Mercado, que no comando de editoras e livrarias tentam desmoralizar o livro, rebaixando-o, como produto, ao nível de um saco de batatas, minha respeitosa sugestão: produzir e vender tubérculos comestíveis certamente é um negócio muito mais rentável do que o de livros. Portanto, vão plantar batatas!
Nota do Editor
A.P. Quartim de Moraes, jornalista e editor, foi responsável pelo planejamento e gerenciamento do projeto de implantação da Editora Senac-SP e hoje dirige sua própria casa publicadora, a Conex (antiga Códex), associada ao Grupo Nobel.
Muito lúcido e corajoso seu texto sobre o mercado de livros no Brasil. Concordo plenamente quando fala sobre uma palavrinha básica, que faz toda a diferença e mostra que, também nesse negócio, é preciso que haja um posicionamento ético: responsabilidade. O editor não pode fugir à sua responsabilidade, ainda que tenha de se submeter às leis de mercado, ou leis da selva. Assim como o jornalista (como você, como eu) não pode fugir à sua responsabilidade de informar, de dizer a verdade e de buscar a isenção (embora eu, particularmente, não acredite que ela seja totalmente possível, mas aí é assunto para outra discussão). Parabéns pelo artigo. Carla Borges
O livro é um pensamento elaborado. Uma construção subjetiva que além de conscientizar o leitor sobre aspectos importantes da realidade, favorece o exercício da imaginação. As publicações realmente interessantes questionam nossas posições diante dos problemas da sociedade e a natureza dos relacionamentos humanos desenvolvidos ao longo de nossas vidas. Para os editores menos engajados na luta por uma cultura que tenha como eixo a reflexão, lançar obras de novos autores representa um risco. Não alcançam o diálogo enriquecedor entre os novos escritores e o sempre renovado público-leitor, ansioso por uma linguagem contemporânea, por idéias expressivas sobre o momento atual. É essa a relação que precisa ser observada. É esse o processo dialético que não pode ser interrompido, pois daí surgirão novos pensadores, novas questões, novos consumidores. A partir dessas trocas é que poderemos construir gradualmente um país desenvolvido, seja na economia, seja na sua intelectualidade.
Poderíamos fazer uso da lógica e criar uma relação entre alguns livros bons, à luz da crítica, e uma outra referência quantitativa de livros sem identidade literária. Criaríamos também um cálculo qualquer em relação ao que o leitor escolhe e então classificaríamos o leitor, haveriam bons leitores e maus leitores; senão, quem sabe, leitores de boas obras e leitores de outras obras. Haveria também a interpretação da forma como se utiliza o livro, para decorar paredes, rechear estantes, calçar pianos, andar mais elegantes em curso de modelos, superestimar a própria cultura, a literatura de sovaco, para expiar paixão, para exorcizar relações, para entreter e, talvez, dialogar com as inquietações de alguns loucos. A literatura deste tempo está consignada ao mercado livreiro e ao apetite raso de seus formadores, sejam livreiros, editores e vossa excelência, os leitores, que fazem a crítica material do sucesso de público, financeiro e de uma certa época. Hoje livro é um fetiche de mercado.
Realmente, hoje em dia é difícil termos boas opções de livros brasileiros para vender. O mercado editorial está uma vergonha e dá medo de olhar as listas de mais vendidos. Acredito que isso tende a piorar, pois cada vez mais o livro se torna um artigo para pessoas de renda elevada, especialmente os bons livros, e pessoas com este perfil estão mais interessadas em conhecer as 1000 maneiras para investir o seu dinheiro ou as 300 frases poderosas para atrair sorte, amor, ou o que seja, do que descobrir novos mundos e alimentar a alma.
Em cada linha deste texto, senti que havia alguma esperança para o livro, o leitor de livros, o tal "mercado" livreiro. Fico feliz em saber que ainda existem editores. Não apenas negociantes e executivos, mas editores. Só não concordo que pouca literatura esteja sendo feita. Sim, ela existe, a contemporânea, e muito boa. O problema (ao menos um deles) é que os autores, mesmo quando são bons, têm se projetado em alternativas relacionadas à informática. Fazem, eles mesmos, seus bons livros, com a colaboração de amigos e a custo da poupança particular. Sem distribuição e sem alarde, é difícil se fazer conhecer. Competir com listinhas da Veja e vitrines pagas é complicado.
Sou estudante de letras e estou escrevendo meu primeiro livro. Lamento as tristes perspectivas em relação ao mercado editorial. Mas penso que, com o avanço da internet, esse mercado vai sofrer uma reformulação. Espero que seja benéfica para todos, em especial para aqueles que vivem da arte de escrever...