Divulgando seu filme Maria Antonieta, Sofia Coppola (diretora festejada de Virgens suicidas e de Encontros e desencontros), em entrevista recente, afirmou identificar-se com a emblemática rainha do título. Não explicou a razão: não há como traçar um paralelo entre qualquer mulher do século XXI e a malfadada Maria Antonieta (1755-1793). Se Sofia não dá nenhum argumento que explique essa identificação, seu filme tampouco esclarece sobre a vida dessa rainha de França.
O filme é um pastiche multicolorido, rico em cremes, igual aos doces com que as personagens femininas refestelam-se na tela. Apesar do tratamento adequado concedido à personagem que lhe empresta o título – ao menos naquilo que diz respeito aos seus anos de delfina e de jovem rainha, até a chegada dos filhos – o enfoque dado aos outros é pífio. O ridículo tratamento dado às figuras históricas, com exceção de Maria Antonieta (na interpretação correta de Kirsten Dunst), interfere mais no enredo do que a trilha sonora pop (Siouxsie & the Banshees, Cure, New Order e companhia) e do All Star azulzinho que se insinua entre os sapatos da rainha.
Luis XV (1710-1774), avô de Luis XVI (1754-1789), que recebe a jovem Maria Antonieta na cena da entrega formal na fronteira, passava longe daqueles maneirismos de cowboy texano, ou de bartender do midwest que lhe foram impingidos pelo ator que o encarna (Rip Torne). Pelas crônicas da época, sabe-se que Luis XV foi um dos homens mais belos de seu tempo, sendo que a elegância era peça fundamental nessa beleza. Se é verdade que seu apetite sexual era ilimitado, é falso que sua última amante, a condessa du Barry, fosse a “Cruella DeVille” pintada no filme (a morena Ásia Argento). Segundo os biógrafos, apesar de plebéia, Jeanne Bécu (1743-1793) cujo casamento, por influência do rei, garantiu-lhe o título de Madame du Barry, era uma jovenzinha extremamente feminina, de tez, cabelos e olhos claros, que transpirava sensualidade.
Luis XVI, por seu turno (na pele do baixinho Jason Schwartzman, primo de Sofia) de acordo com as medidas que lhe foram tiradas para a confecção do manto da coroação, era um homem de um metro e noventa. Colocá-lo com a estatura aproximada de Maria Antonieta tornam mais risíveis os momentos em que contracenam.
O que dizer, então, da forma com que a duquesa de Polignac (1749-1793) adentra no camarote real durante uma ópera? “– Hi, I’m just coming from Russia and I brought Prince Dimitri with me, hum…, Russians are so hot…”. Uma bimbo nova-iorquina; nem sei como, em meio essa cena tola (e dispensável), Ms. Copola não colocou um toque de celular.
Uma das coisas de que menos gostei no filme foi a tentativa de atualização de uma história que não dá para ser atualizada. Hoje, nem a nobreza se casa mais por razões de Estado – a exemplo do casamento do príncipe das Austúrias, herdeiro do trono da Espanha, com a jornalista Letícia Ortiz, ele mesmo, como membro da família Bourbon, parente longínquo de Luiz XVI. No século XVIII, era diferente.
Segundo um dito, a Áustria não fazia a guerra, mas casava seus filhos. Pela política dos casamentos, os Habsburgos – dinastia que ocupou o trono austríaco de 1281 a 1918 – teceram conexões em todos os quadrantes da Europa. Alcançaram até o império brasileiro, quando, em 1816, Dom Pedro I (à época ainda príncipe da Beira), une-se à arquiduquesa Maria Leopoldina, que será a primeira imperatriz brasileira, sobrinha-neta de Maria Antonieta. Não existia casamento por amor nessa época.
Maria Antonieta era filha da grande imperatriz austríaca Maria Tereza (uma das melhores interpretações do filme, a cargo da cantora inglesa Marianne Faithfull). Dispersa, voluntariosa, levemente infantilizada por ser a filha mais nova de uma fileira de muitos irmãos, foi exatamente a prometida ao futuro rei da França, Luis XVI, para selar o célebre tratado franco-austríaco, contra a Prússia.
Maria Antonieta encaixava-se nos cânones de beleza da época: pele translúcida, olhos azuis e cabelos de um loiro tão claro que dispensava o “empoamento” (moda que compreendia espalhar uma pomada gordurosa nos cabelos para em seguida polvilhá-los com farinha de trigo). Realçava o físico um gestual extremamente gracioso e o porte altivo, atributos que a distinguiam, não importando as circunstâncias. Com 14 anos, em 1769, ela saiu de um dos maiores palácios da Europa, o Schonbrunn vienense, para ser a mulher mais importante em Versailles, o mais luxuoso da época. Realmente, acredito que a falta de habilidade de Luiz XVI em consumar o casamento durante 7 anos, deve ter levado Maria Antonieta a compensar em roupas, jóias, festas e jogatina. Talvez seu erro capital tenha sido comportar-se em público não como mulher do rei, mas como sua amante, cheia de caprichos. Os romanos já sabiam que a mulher de César não precisa ser honesta, precisa parecer honesta.
O filme, entretanto, não dá destaque às mudanças trazidas em seu comportamento depois da maternidade: Maria Antonieta passa a se mostrar paulatinamente mais assentada. No físico, começam também a se manifestar as alterações do tempo: ela engorda, perde a leveza dos traços, fica menos bonita. Porém, fica mais humana.
As grandes mudanças ocorrerão, porém, depois de 1789, quando eclode a revolução e Sofia Copola resolve concluir seu filme. Este acaba com a imagem, falsa, de Maria Antonieta eternamente adolescente, lânguida e espirituosa. A realidade vai além. Acredito que a partir do momento em que Maria Antonieta com sua família são forçados a irem para Paris, em outubro de 1789, é que uma nova mulher vem à tona, com uma dignidade que ela não demonstrara antes.
De 1789 a 1793, ano em que será decapitada, essa rainha será provada de todas as formas. Perderá os amigos que acreditava possuir, verá ser-lhe negada a ajuda da família, saberá sobre a decapitação do marido e será separada dos filhos. Por último, será julgada publicamente, e nesse julgamento, seu filho, uma criança de 8 anos, será instruído pelo governo revolucionário a mentir que sua mãe o induzia a práticas sexuais incestuosas. Nesse instante, Maria Antonieta toma a palavra e defende-se no tribunal, dirigindo-se a todas as mães em um discurso candente, expressão tanto de amor materno como de decência. Frente à tragédia e próxima da morte, a rainha deposta assume uma grandeza de espírito que honra, creio que até hoje, todo seu gênero. Antes tivesse vivido como morreu.
E isso não mostra o filme, disperso nas cores das roupas, no farfalhar das sedas, nos brilhos das jóias e nas bolhas do champagne, como um Narciso embevecido, afogando-se na superfície do espelho.
Nota do Editor
Eugenia Zerbini é ganhadora do Premio SESC Literatura 2004, com o romance As netas da Ema. Atualmente escreve a biografia da Imperatriz Teresa Cristina, mulher de Pedro II, a terceira imperatriz do Brasil.
Uma crítica excelente que diz muito sobre o atual modismo de tratar temas históricos com uma ótica de Big Brother. A autora desse artigo sabe sobre o que está falando, mas o filme, aparentemente, não.
Parabéns pelo belo artigo. Bem observado: os filmes em geral acabam por disseminar uma determinada versão de uma maneira tão forte que a versão do filme passa a ser a versão oficial, embora os fatos históricos forneçam outra versão. Neste caso específico, salva-se o colorido e o luxo do filme. Aguardamos seu próximo artigo.
Achei que a intenção do filme não é veracidade histórica... Pelo contrário, foi extrair da história, alguns elementos comuns ao drama humano. Tanto a rainha quanto um menina de Copacabana podem viver e sofrer por amor, e ter suas desilusões. Acho que o filme aborda de uma maneira muito legal a idéia da perda da inocência, da maturidade, de como somos ao mesmo tempo sujeitos e objetos das imposições sociais. E outra idéia genial da diretora foi colocar músicas de rock como trilha sonora. O filme é quase uma opéra-rock de primeira. Justamente o fato destes personagens se comportarem como pessoas de hoje é que permite identificar os mesmos padrões de comportamento. Uma idéia sutil e bonita. Assim como no primeiro filme da diretora.
Concordo com Ram, acredito que não havia nenhuma intenção de realizar um filme com veracidade histórica. A Maria Antonietta de Sofia é antes de tudo a história de uma menina que tem seu destino traçado por outras pessoas. E também não acho que há uma tentativa de atualização, a trilha é pontuada por rock alternativo e também não há uma tentativa de mostrar uma redenção da menina adolescente, mas apenas mostrar que, perdida em meio a uma vida, chega um determinado momento em que ela percebe que a revolução é mais uma etapa, mais uma vez outros fazem sua vida, e ela segue o ritmo de alguma forma, às vezes se jogando na superficilidade, às vezes defendendo seu lugar ao lado do marido.