Eis que chega minha primeira menstruação e com ela leva embora minha infância querida, salve, salve. "Rita, minha filha, agora você já é uma mocinha, precisa mudar seu comportamento. Não pode mais, por exemplo, se sentar com as pernas abertas, nem ficar andando de carrinho rolimã com os moleques da rua. Há certas regras nesta vida que devemos respeitar. Você tem de entender que o nosso mundo feminino é muito diferente do masculino, Deus assim quer".
Não demorei para entender que a partir de então seria deselegante me sentar de pernas abertas, assim como totalmente fora de cabimento continuar andando de carrinho rolimã. Mesmo porque lá em casa todos já achavam meio esquisito eu nunca ter brincado com bonecas e preferir "coisas de meninos". Confesso que sempre odiei bonecas mesmo, aquilo de ficar tirando e pondo vestidinhos, arrumando e desarrumando cabelinhos era no mínimo bocejante. Pelo menos com a molecada eu aprendia ótimos palavrões. Tudo bem, não custa fazer um esforço, afinal, agora eu sou uma mocinha.
Mas por que cargas d'água o mundo feminino seria assim tão diferente do masculino?
Então lá fui eu buscar respostas através do método da eliminação. Bastava eu saber que algo não era "próprio para uma mulher" para me dar uma coceirinha e ir literalmente tirar a prova dos nove, ou seja, nove entre dez Luluzinhas sequer tentavam saber o motivo de não poder invadir o Clube do Bolinha.
Meu colégio não permitia que meninas jogassem futebol, e a explicação era a de que se podia levar uma bolada no seio (era educado dizer seio). Eu perguntava pro Bolinha: e como sabe que dói se você não tem teta? E onde será que dói mais, na teta ou no saco? Você usa proteção especial para o saco, então eu posso usar uma para as tetas. Se bem me lembro ainda demorou uns 30 anos até começar a existir futebol feminino pra valer. Quanta perda de tempo.
Alguém aqui pode me dizer por que não posso ir ao meu baile de formatura usando um vestido preto? "Porque vestido preto é para usar em enterro, Rita". Então propus um negócio: ao invés de gastar dinheiro com baile eu pedi uma bateria de presente. Minha mãe deu graças pela troca. Depois se arrependeu com o barulho e me convenceu a trocar a bateria por um violão. Mãe, eu quero aprender a lutar karatê, ontem vi um filme genial do Bruce Lee e tenho certeza de que levo jeito pra coisa. "Mas karatê não é coisa de menina, Rita". Cheguei até a faixa amarela apenas, e minha mãe agradeceu meu dedão do pé ter quebrado. Pulando vários capítulos sobre o mesmo tema, chegou finalmente meu confronto com esse tal de rock and roll. Havia um Bolinha roqueiro que proclamava o lema incontestável "orra meu, pra fazer rock tem que ter culhão!".
Que bálsamo foi aquilo para os meus ouvidos. Ah, quer dizer que não se pode fazer rock com útero e ovários? Então me aguarde. Elementar, minha cara mãe: a senhora certamente nunca deve ter sentado de pernas abertas e muito menos andado num carrinho rolimã, não é mesmo? Então continue lindinha aí na sua casinha, brincando de bonequinha, que sua ovelhinha negra vai atrás de uma boa encrenquinha. Ah, antes que me esqueça, mamãe, eu descobri que lugar de mulher é onde ela quiser!
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Distribuído originalmente junto com o release da caixa de DVDs Biograffiti.
Transformar os padrões que nos são impostos não é nem um pouco fácil, mas é algo extremamente necessário. Em inúmeras situações, rebeldia é mais do que saudável. Parece que Deus já não quer mais o nosso mundo feminino muito diferente do mundo masculino. Que bom! E não é isso que, no íntimo, homens e mulheres desejam, se aproximar, usufruindo ao máximo a satisfação da busca por semelhanças e compreensão das diferenças, em vez de se afastarem devido a estas? Grande Rita Lee, você é incrível, uma maravilha de roqueira e também de mulher!
Gostei mais do comentário da Cristina Sampaio do que do texto da Rita... rs. Ela resumiu muito bem o que deve ser essa questão feminino/masculino, são as diferenças que têm graça, assim como as semelhanças, todas condensadas no mesmo balaio louco que são as relações sociais. As possibilidades que podemos criar ao retirar as pessoas de dentro de seus padrões são infinitas...
O texto me faz lembrar de uma frase de Simone de Beauvoir, que, na minha condição de homem, não posso dizer se é verdade ou não. Diz ela que: "Nós não nascemos mulher, nós viramos mulher".
(Se alguém souber a tradução exata, ponha-a aqui, pois eu traduzi a frase diretamente do francês...)