Bar ruim é lindo, bicho | Antonio Prata

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Segunda-feira, 17/9/2007
Bar ruim é lindo, bicho
Antonio Prata
+ de 85900 Acessos
+ 12 Comentário(s)


Boteco, João Werner

Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinqüenta anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de cento e cinqüenta anos, mas tudo bem.)

No bar ruim que ando freqüentando ultimamente o proletariado atende por Betão — é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando resolver aí quinhentos anos de história.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura.

— Ô Betão, traz mais uma pra a gente — eu digo, com os cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa coisa linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos tradicionais da nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim. Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente desponta em nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós, meio intelectual, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro meio intelectuais, meio de esquerda, freqüenta, não nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.

O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a gente chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e, principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.

Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam cinqüenta por cento o preço de tudo. (Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.

Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso país. A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas, preferem frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo, saca?).

— Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Também parte integrante do volume As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, organizado por Joaquim Ferreira dos Santos.


Antonio Prata
São Paulo, 17/9/2007
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01. O balanço do Bando da Lua de Luís Antônio Giron
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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
20/9/2007
10h12min
Fantástico! Eu me senti em casa, ou melhor, em um bar ruim (que aqui em Goiás a gente chama de pé-sujo) lendo esse texto. Uma obra-prima.
[Leia outros Comentários de Carla Borges]
20/9/2007
14h34min
O texto é ótimo; além de engraçado, é fiel ao espírito do "intelectual" médio brasileiro; fidelidade, aliás, que mostra a assombrosa atualidade do clássico "Raízes do Brasil", do Sérgio Buarque de Hollanda, quando discorre sobre nossa crença no "tapinha nas costas do garçom" para "resolver 500 anos de história". E essa cultura mansa, de boteco, do deixa-estar, a mostrar nossa eterna preferência pelo "semear", ao invés do "ladrilhar"... Parabéns!
[Leia outros Comentários de Roberta Resende]
20/9/2007
19h06min
Nossa, que delícia de texto. Ou diliça, que é mais Brasil autêntico.
[Leia outros Comentários de Adriana Carvalho]
23/9/2007
21h02min
Adorei, realmente é uma descrição perfeita dos bares ruins que tanto a gente gosta.
[Leia outros Comentários de Letícia Lima]
2/10/2007
15h31min
Nossa... Adorei o texto! Isso é que é originalidade! Nada melhor do que um boteco com mesas de lata, eu e minhas amigas filosofando e aquele pagode rolando solto de fundo. Os bares bons geralmente, rs... Ou melhor, sempre tem gente chata e sem nenhuma graça, com todas aquelas etiquetas pra mostrar o pouco que não tem, conversas intelectuais forçadas (será que fazem isso pra combinar com o lugar?) e depois, em um momento único de descontração, soltam umas piadinhas que, francamente, fico a imaginar o que existe por trás dos sorrisos amarelos das pessoas que estão ouvindo. Essa tese foi tema de debate lá no "ZéH Bar". Ele disse que o H era pra ficar mais chique! Isso não é lindo? Concluindo: bar ruim é que é BAUM MERMU!
[Leia outros Comentários de Louise Lira]
4/10/2007
01h42min
Ah, desculpa eu bancar o tiete aqui, mas... É isso mesmooooooo... Hahaha! E eu só não vou dar a dica do bar ruim que eu freqüento porque com o tempo é capaz de sair na Vejinha... Apesar que lá não vai ninguém famoso ainda, não. Não que eu me lembre. Nós meio intelectuais, meio de esquerda, não ligamos pra essa coisa de "celebridade". Argh! Vou nessa antes que minha cerveja esquente!
[Leia outros Comentários de Alessandro de Paula]
24/9/2010
18h47min
Já li esse texto umas cinco vezes e toda vez dou muita risada pensando nos meio intelectuais meio de esquerda que já passaram pela minha vida - e não foram poucos! Os meio intelectuais meio de esquerda estão mesmo em todos os cantos prontos para difundir mais um bar ruim e amar o Brasil autenticamente Nordestino! Mas, claro, antes que qualquer um faça isso, porque aí perde a graça gostar de coisas que são tendência, eles gostam de ser importantes mesmo. Esses meio intelectuais meio de esquerda já estão ficando clichês e sem personalidade, já viraram até tabu e estão aos bandos por aí. Já não são mais tão intelectuais e muito menos meio de esquerda, eu diria que são na verdade meio-pseudointelectuais-meio-de-esquerda e já encheram o saco. Tá faltando é personalidade, menos arrogância, inteligência e autenticidade; de si pra si, e não pra inglês ver!
[Leia outros Comentários de Yasmin Salgado]
25/2/2011
22h45min
Beleza de texto, amigo. No aguardo agora do texto sobre o bar dos meio intelectuais, meio de direita.
[Leia outros Comentários de Blude]
28/4/2011
10h03min
Só eu que achei que ele está sendo irônico nesse texto? Uma criticazinha aos "meio intelectuais, meio de esquerda"?!
[Leia outros Comentários de Zuza]
28/4/2011
11h16min
Sensacional!!!!
[Leia outros Comentários de Tania Aires]
28/4/2011
13h29min
É o retrato da hipocrisia, dos que se dizem cultos e bem informados, mas que só querem mesmo é "fazer um tipo". Perfeito!
[Leia outros Comentários de Ana Luiza]
30/6/2011
22h28min
hahahaah!!!! quanta bobagem! como eu sou totalmente de esquerda e totalmente burro, (não analfabeto, isto é diferente) frequento bares ruins mesmo. Não esses que o autor está se referindo, mas aqueles que não vão nenhum artista, nenhum falso moralista que se acha intelectual, amigo do pobre e do trabalhador. Frequento os bares onde há até baratas voando por toda parte, esses de repente, são os bares ruins que o autor quis se referir, mas que pelo jeito nunca frequentou um. Como tudo nesta porcaria de Brasil é falso, o resultado é que artistas, intelectuais, políticos, burguesia, no fim, é tudo a mesma coisa. É tudo o resultado de um 'falso moralismo' gritante, da hipocrisia luso-brasileira, que eu diria, é pior no Rio de Janeiro. Tão falsa, que por aí ser amigo dos nordestinos é coisa da moda, infelizmente, apenas isso.
[Leia outros Comentários de holmes]
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