Ao falar de literatura e jornalismo, gostaria de discutir a relação entre a crítica de artes plásticas e o jornal, pois entendo a crítica como um gênero literário, como forma – na esteira de Lukács. E sua forma é o ensaio, texto onde o conceito e a imagem convivem. A crítica não é um relato objetivo, nem um julgamento, mas uma reflexão com a obra, na linguagem. O crítico pensa com a obra, conversa e articula leituras e teorias.
No ensaio, gênero criado por Montaigne e teorizado por Lukács, Adorno e outros, não se segue um método como no discurso científico, mas os conceitos vão se construindo à medida que o texto também se elabora com a marca de uma subjetividade que se interroga, se extasia, ironiza, reflete. A crítica se exerce no ensaio.
Há muito preconceito com a crítica e também usos e abusos que criam um estereótipo do crítico. Pode-se dizer que hoje se assiste a uma crise da crítica, o que, no entanto, não me parece que tire sua importância como conversa com a obra e, até mesmo, como consideravam os pré-românticos alemães, acabamento da obra, instância necessária a ela. Thierry de Duve, teórico de arte belga, afirma (em artigo na revista Concinnitas, vol. 7, 2004) que o crítico é um teórico e um escritor: “A sensação e sua qualidade são altamente pessoais, contudo, a suposição é de que a obra – digo a obra e não o artista – sabe algo que não sei ainda e minha tarefa é desenterrar e tornar explícito o pensamento teórico que nela segue implicitamente”.
E, contra a arrogância que geralmente se atribui ao crítico, ressalta o espanto que deve lhe causar a obra sobre a qual escolhe falar.
Diz ainda: “Interesso-me apenas por obras que não entendo. E a sensação de não entender uma obra não é suficiente; o que importa para mim é uma certa quantidade de enigma, de perplexidade que coloca o intelecto em movimento. Para mim é mesmo a experiência estética que valorizo, o que me faz seguir, é a sensação de que a obra contém conhecimento que desconheço.”
Na critica literária brasileira houve, por volta dos anos 40/50, uma discussão com brigas mesmo entre uma crítica universitária, presa ao método, e uma crítica mais impressionista, que se dava nos jornais. Isso não aconteceu na crítica de artes plásticas que, desde seu início, foi exercida por críticos-poetas ou ficcionistas, e os que não eram críticos-criadores não tinham formação universitária específica, mas eram ensaístas, até 1990, quando a crítica ainda está atuante nos jornais. Mas, nos últimos dez anos, os especialistas estão sendo substituídos pelos comunicólogos do chamado jornalismo cultural, que tratam de tudo, de cinema, literatura e artes plásticas, mais apresentando eventos do que refletindo. A modernização mercantil vai contra o ensaio. Walter Benjamin diz que em Valéry há uma vontade de duração, de duração do escrito e não de originalidade. Será que ainda se busca a duração, ou o ensaio se tornou algo para preencher uma necessidade imediata, algo breve, leve e fugaz? Essa idéia de duração se opõe ao imediatismo que se exige da resenha jornalística.
Pode-se falar também de uma crise do jornal, com o avanço dos outros meios como a televisão e a internet. O jornal então cada vez mais se reduz à informação, que nada tendo de neutra, avança no sentido do controle, e não da discussão, da reflexão. Por outro lado revistas da internet acolhem o ensaio crítico, como o Canal Contemporâneo, que combina informação sobre as exposições com a reflexão em artigos e agora inclusive colaborou com a revista internacional da Documenta 12.
Vou partir da situação em que surgiu nosso primeiro crítico de artes plásticas para voltar a falar da situação atual. Com Gonzaga Duque cria-se o crítico militante no Rio de Janeiro, aquele que escreve nos jornais e revistas e acompanha a produção dos artistas em seus ateliês. Por volta de 1890 não temos ainda um sistema organizado nas artes plásticas, nenhum museu, apenas quatro lojas que expõem quadros, entre outras mercadorias, e uma Academia de Belas-Artes com uma exposição anual, mas há colunas como a Belas-Artes, do jornal O Paiz, em vários jornais e revistas. Gonzaga Duque reclama que a crítica vem sendo exercida por repórteres e, ao mesmo tempo, afirma que o exercício da crítica aqui é loucura: “Fazer crítica nesta terra de reclames parece arrojo se não é demência...”. Afirma na coluna Quadros e Telas, de O Globo, de 15 de setembro de 1892:
“Há muito sente-se a necessidade de uma crônica ou cousa equivalente de que de semana em semana dê notícia do desenvolvimento artístico do país. Este compte rendu, usado em Paris, é uma força impulsora para o artista dedicar-se satisfatoriamente ao trabalho, e para estimular o gosto do público na apreciação das obras d'arte, que tão diretamente influem na marcha progressiva do desenvolvimento intelectual de cada indivíduo.”
Ele considera a crítica importante para o artista e para o espectador. Nosso primeiro crítico de artes tinha colunas nos principais jornais e revistas como O Paiz e a revista Kosmos na virada do século XIX para o XX. Entra em polêmicas, atento a arte que está emergindo, visita as exposições, indo de obra em obra. Tenta interferir na emergência de uma cultura moderna no país. Essa contribuição em jornais e revistas rendia-lhe um dinheiro, mas havia um direcionamento utópico nessa atividade.
Além disso, várias revistas circulavam, duravam pouco, mas mantinham independência das grandes empresas e comentavam a arte que se fazia, num momento em que os sistema artístico dava os primeiros passos. Por essa atividade intensa se desdobrava em pseudônimos: escreve como Alfredo Palheta na coluna Belas-Artes do jornal A Semana de 1882 até 1887. Um crítico de artes é personagem central de seu romance Mocidade Morta, de 1900, em que discute o meio das artes, o academicismo e a urgência do impressionismo por estes lados.
Daí em diante, por todo o nosso século XX tivemos críticos exercendo sua atividade regularmente. Os últimos foram Frederico Moraes e Wilson Coutinho, nos anos 80 e inícios de 90. Frederico Moraes escreveu 12 anos em O Globo, de 75 a 87 com colunas, três a cinco vezes na semana. Mário Pedrosa no Correio da Manhã tinha uma coluna diária com exceção dos domingos e no Jornal do Brasil dos anos 50, de 57 a 61, revezava com Ferreira Gullar. Nos anos 40, destacam-se Ruben Navarra, no Rio, e Sergio Milliet no Estado de São Paulo.
Um importante debate na arte e na literatura brasileiras se deu em torno do concretismo e do neoconcretismo entre 50 e 60 e o debate aconteceu por meio dos jornais. A coluna do poeta Mário Faustino, no Jornal do Brasil, interferia na discussão.
Os suplementos literários tinham críticos de arte e de literatura que defendiam posições e entravam em polêmicas tentando interferir no meio.
Mas, nos primeiros anos do século XXI, as iniciativas para manter um crítico nos principais jornais do país não vingam. Há pouco O Globo tentou uma coluna semanal de Luiz Camilo Osorio, crítico e professor, mas acabou mantendo apenas esporadicamente uma contribuição sua. Tentou também alternar quatro críticos, mas a tentativa não logrou resultado. Os cadernos culturais tendem a fechar: menos literatura, mais informação. No período da ditadura fecharam-se vários jornais. No Rio: O Correio da Manhã, O Jornal, a Última Hora, o Diário de Notícias. Hoje temos O Globo (o mais rico), o JB (quase fechando) e dois jornais mais populares, Extra e O Dia. Nos anos 70, em jornais alternativos como O Pasquim e Opinião, que acabaram, escrevia o crítico combativo Ronaldo Brito.
As revistas específicas de arte inexistem hoje; nos anos 80 tínhamos no Rio a Malasartes, a Módulo e a Galeria. Hoje as revistas existentes são publicadas pelas universidades, Gávea, da Puc que acabou, mas esteve atuante durante dez anos. A Concinnitas, da UERJ, Arte & Ensaios, da UFRJ, ou, on-line, o Canal Contemporâneo. Uma vez por mês, o crítico-poeta Ferreira Gullar escreve numa revista cultural de Pernambuco, a Continente, que, no entanto, não é especializada. Nos jornais o jornalismo cultural dá notícias do que acontece, mas não há um crítico que analise o que se faz. A notícia fica ligada a uma mostra. E um novo gênero toma o lugar do ensaio: a entrevista, que dá a palavra ao artista. Nas palavras do teórico Thierry de Duve, o que acontece é um engano: “O pior engano para uma crítica é acreditar que se pode colocar o ponto de vista de um artista à disposição, entrevistando-o”. Geralmente vários aspectos do que ele faz escapa a sua consciência, a sua intencionalidade. E aqui se precisaria o trabalho do crítico para trazer à tona o que não está consciente para o artista.
Parece-me que está em pauta é uma abdicação do pensamento. Há um caráter trágico no projeto crítico: não se esclarece o enigma. O discurso literário não é jamais da ordem da afirmação, mas da negação, ou melhor, da suspensão do mundo tal qual este se apresenta enquanto correlato natural da percepção ou do discurso banal que o visa. O discurso da informação no jornal quer substituir o ensaio, gênero do discurso literário.
Toda forma é juízo de valor sobre a vida. Há um elemento crítico em toda obra criadora: o momento crítico da experiência estética concentra-se no limiar da forma artística com a reflexão filosófica. A atividade crítica desenvolveria esse elemento de reflexão que está contido na obra, segundo os primeiro-românticos alemães (Benjamin). A crítica artística defendida por Lukács no ensaio, próxima da visão do crítico como artista de Oscar Wilde, vê na experiência estética, proporcionada pela obra de arte, o ponto de partida para uma nova criação. Wilde diz que a crítica de que fala não se limita a descobrir a real intenção do artista e aceitá-la como um ponto final. A idéia de crítico juiz, aquele que da alta torre de valores sólidos decreta o valor das obras, já foi posta por terra desde Schlegel. E ainda Wilde inverte a questão, dizendo que o que dá valor à obra é sua dimensão crítica, pois é a faculdade crítica que inventa novas formas. Para ele o artista é aquele que coloca problemas.
Na forma ensaio a conceitualidade é o momento dominante; seria a forma artístico-conceitual da experiência estética. Mas como circunscrever pelo conceito o que resiste ao próprio conceito? Aí reside o caráter trágico da crítica: não resolve o enigma, mas por isso seu interesse também. Para Kant o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento, mas de reflexão, se não se pode conhecer o fenômeno, pode-se, no entanto, pensá-lo. O juízo estético está referido ao sujeito e à imaginação, não é lógico. Falando da crítica da arte contemporânea, João Camilo Osório diz:
“É importante ter em mente que o juízo não é necessário se for para confirmar o que já se sabe e que já é a regra, mas sim para potencializar o ainda não conhecido, classificado, formado, dando sentido, ou melhor, procurando sentidos no que está em processo de constituição.”
É importante então acompanhar criticamente a produção artística contemporânea. O que fazia nosso primeiro crítico de artes que tinha a utopia de criar um pensamento brasileiro, como afirma no final do seu primeiro livro: A arte brasileira, de 1888. Queria formar também um público.
Mas essa intenção de formação vai contra o imediatismo da mídia, que privilegia o mero registro de enredos (no caso do cinema) e juízos apressados. A desconfiança do especialista trouxe à cena o comunicólogo, o jornalista cultural, que trata a cultura como mero entretenimento. Há uma crise do jornal, que traz menos literatura e mais informação. A informação controla, e vivemos a sociedade da informação, a sociedade do controle, como afirma Deleuze, um aperfeiçoamento da sociedade administrada de Adorno. Contudo, a arte não é comunicação, é resistência e abertura de possibilidades de um outro estado de coisas. Para Rancière a arte é recusa e promessa. Sem a consciência de que algo está faltando não se consegue fazer crítica. Essa fé num outro estado possível do mundo é o que parece faltar hoje, quando não se deixa ver um projeto de transformação do estado letárgico que produz a sociedade do entretenimento. Parece que há um bloqueio do pensamento com um descrédito da imaginação utópica, ou heterotópica, quando o Império se torna global.
Com a modernização mercantil dos jornais está acontecendo a decadência dos cadernos culturais. Por exemplo, a Folha de S. Paulo, além do caderno “Mais!”, tinha um caderno de resenhas, ligado às universidades. Acabaram com esse caderno e mudaram a paginação do “Mais!”, que ficou menos denso, mais palatável.
Nas artes plásticas, surgiu uma nova figura: o curador de exposições, que absorve um pouco da função do crítico, mas se torna mais um agente do mercado ou da instituição, mais que intérprete do trabalho, um animador cultural. Para o crítico Ronaldo Brito, a produção escrita é inseparável da ação crítica, como afirma numa entrevista à revista universitária Concinnitas, o que mostra sua consciência da crítica como ensaio, forma.
Também se produzem catálogos e livros luxuosos, mas sem o debate crítico.
Para Rancière, em Malaise de l’esthetique, vivemos o momento do consenso. A divergência, o dissenso, implicam uma imaginação que possa pensar uma outra dimensão do que a que nos estende a informação, o entretenimento e a violência generalizada. O que está na arte, que é próprio do estético, sua política – uma recusa do vigente e uma promessa de outras possibilidades de real.
Ranciére recupera Schiller e suas Cartas para uma educação estética do homem. Como fica a arte em relação à possibilidade de mudança? Schiller, também, contemporâneo da Revolução Francesa, pensa o Estado e a liberdade. E coloca como “carência nas almas refinadas” o Estado estético, que produziria uma cultura que tornaria impossível qualquer abuso, que daria liberdade através da liberdade. Nele o jogo estético, jogo livre da imaginação com o entendimento, busca uma forma livre e leva à construção de uma verdadeira liberdade política.
A arte é a finalidade sem fim kantiana, que está também em Schiller, como atividade que foge ao mundo utilitário; é conhecimento, acesso ao desconhecido. No entanto, o que se vive hoje é a catástrofe. O pensamento radical pós-Segunda Guerra desemboca no silêncio e na ferida, se dilacera. A arte fica ligada a uma catástrofe interminável. O estado estético sobrevive como idéia regulativa (nem em Schiller era algo imediatamente possível) e aparece, por exemplo, na leitura que Marcuse faz, em Eros e Civilização, do pensamento do filósofo. Discutindo Freud, para Marcuse, o princípio de vida como Eros se opõe à mais repressão do Estado industrial moderno e permite imaginar um outro tipo de civilização com outro tipo de produtividade.
Schiller, nas suas Cartas sobre a educação estética, critica o espírito de negócio, pergunta onde reside a causa de ainda sermos bárbaros e afirma que o Estado continua estranho aos seus cidadãos. Para ele, deve ser suprimida a cisão entre sensibilidade e razão, para que o Estado seja modificado, e o caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração – portanto a formação da sensibilidade é a necessidade mais premente da época. Embora afirme o belo como equilíbrio, diz que é apenas uma idéia que jamais pode ser alcançada pela realidade. A imaginação dá o salto em direção ao jogo estético, à busca de uma forma livre. No impulso lúdico, que unifica impulso sensível e impulso formal, teríamos a forma viva.
A crítica de arte, na sua forma do ensaio, tem o mesmo papel que tem a arte de formação da sensibilidade. O que, no entanto, parece que não tem mais lugar no mundo contemporâneo, em que a informação anestesia e o espetáculo hipnotiza. João Cabral de Melo Neto entendia a poesia como cafeína, como aquilo que nos desperta do adormecimento. Mas até a cafeína já conseguiram retirar do café. Acreditar na crítica e no ensaio é também acreditar numa arte que seja recusa e promessa, que possa inventar outras configurações para o visível, o pensável e o possível. Uma rearticulação polêmica do sensível, como diz Rancière. Podemos virar o terror de nossa situação a nosso favor, usando-o para intensificar a urgência de vida. Isso faz a arte. Mas essa arte só pode acontecer em conjunto com o debate crítico.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, na edição de setembro de 2007.
A arte e a crítica nunca se deram bem, naturalmente. Parecem dois polos num universo cultural. A crítica exige um volume de informação que a arte descarta, ou precisa descartar. A arte que pretende ser informativa já começou mal. No entanto cabe à crítica extrair alguma informação onde, praticamente, não existe nenhuma. Ou então a crítica cria a informação necessária. Um trabalho meio insano. Ainda mais que a crítica, eventualmente, incorre no paroxismo da auto-crítica. É até uma sorte que o artista, no geral, não tenha uma consciência crítica, senão ia embolar o meio de campo de uma vez. Muito bom o texto.
Fico triste. No auge do meu interesse por conhecimento, pela crítica - que também é uma forma de arte, ao meu ver -, ela está se esvaindo num momento importante de nossa sociedade. Ela seria o antídoto contra os grande alienadores que desativam o intelecto do público. Fraca ela está, mas nunca morrerá.
Abdicando do pensamento crítico e abraçando a entrevista e a reportagem promocional, surge também o que o crítico Alcides Pécora chamou de "glosa da glosa": repete-se o que o artista disse para provar ao leitor que o artista é "o que o artista disse". Mais ou menos como um cachorro que fica rodando, correndo atrás do rabo - e todos os livros e exposições e filmes, sem exceção, são sempre ótimos, é claro. A existência desse artigo, paradoxalmente, nega a inexistência de crítica no Brasil - felizmente. Mas o artigo toca no ponto mais sensível: o que não existe é o veículo que ofereça, com consistência e critério, um espaço para essa crítica encontrar-se com o leitor.