ENSAIOS
Segunda-feira,
16/9/2002
Os escritos rebeldes de um descolonizador
Pedro Maciel
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Glauber Rocha (1939-1981) é com razão o único mito do Cinema Novo, mito no sentido de rebuscar o passado e propor o futuro prestes a se realizar no presente. Com essas palavras abri o prefácio do livro Poemas Eskolhydos de Glauber Rocha (Ed. Alhambra, 1988). São poemas e cartas inéditas do exílio. Notei na época que a Intelligentsia pau-de-arara ainda o renegava. Glauber dizia que o Brasil é impiedoso com seus filhos santos.
O cineasta Mário Peixoto é outro exemplo de descaso nacional. Pixinguinha virou símbolo sagrado da Música Popular Brasileira que não toca na rádio. Villa-Lobos teve que sair do Brasil para sobreviver. Aliás, os direitos autorais de suas composições estão nas mãos dos americanos. Machado de Assis só agora encontra divulgação merecida. A obra de Glauber até hoje é vista com negligência e repugnância.
Glauber, baiano de Vitória da Conquista, foi um dos espíritos mais originais e inventivos da história do cinema universal. Eisenstein, Buñuel e Godard formam a tríade que inspirou Glauber. Ele desponta como grande artista porque incluiu em sua produção os três principais elementos da contracultura: modernismo, freudianismo e marxismo. A obra do cineasta traduz a estética do fragmentário. Glauber praticou na montagem dos seus filmes o corte epistemológico, a dialética entre simetria e assimetria, princípio da estética da ruptura.
Polemista, Glauber pensava o cinema como forma de ação política. Mais anárquico que romântico. Épico e lírico. Rebelde, libertário e revolucionário. Profeta do caos. A função do profeta é predizer através da metáfora. Glauber diz: "A metáfora cai num discurso indireto sobre a realidade, mas em outro plano revelador. Porque a metáfora é uma linguagem, é a linguagem primária dos profetas, primitiva, quer dizer, Ciro da Pérsia, Maomé, Cristo, Confúcio, Buda falaram por metáfora; o povo entende a metáfora. Então o problema é o seguinte: o povo entende quando a metáfora trata do inconsciente coletivo, quando a metáfora cai no simbolismo individual, evidentemente não tem um código preestabelecido, nego não saca, você cai na incomunicabilidade..." (depoimento a Raquel Gerber, 1973).
Glauber queria alcançar a linguagem mais direta e, a partir dessa linguagem mais totalizante, propor uma saída coletiva. Tentou recuperar a identidade nacional, abandonando o imaginário utopista europeu. O cineasta procurou as formas nacionais da utopia. Glauber forja um paraíso terrestre. Descoloniza. Volta aos rituais primitivos para criar um novo mundo estético e social. Toda a obra de Glauber vem mostrar o gênio de um homem em busca da salvação do Terceiro Mundo. Um homem que lutou numa época da história onde os vencedores matavam os vencidos.
Glauber nunca deixou de ser um radical de esquerda. Cartas ao Mundo, coletânea feita pela pesquisadora Ivana Bentes da correspondência do cineasta, é a prova de sua agitação política. Numa carta ao jornalista Zuenir Ventura, Glauber defende a tese de que o general Golbery do Couto e Silva seria o estrategista da abertura democrática brasileira e o compara aos grandes rebeldes do Exército, como o capitão Carlos Lamarca. Publicada a carta na revista Visão, a esquerda passou a persegui-lo e acusá-lo de ter aderido à ditadura. Mas a sua obra de sempre retratou o homem liberto. Como disse em "A Revolução do Cinema Novo", publicado em 1981: "Todos meus filmes contam a mesma história, que é a luta da humanidade pela liberdade, a grande luta do homem contra a opressão, rumo à liberdade, como a história dos judeus, dos árabes, dos negros, dos povos europeus, das revoluções. Quer dizer, a grande história é sempre a mesma história, enquanto reinar a tirania não haverá felicidade".
A primeira carta do livro, escrita para um tio (1953), quando Glauber tinha 14 anos, já mostrava interesse particular na cultura universal. Glauber conta que estava lendo Kipling, Schopenhauer, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Voltaire, Nietzsche, Sócrates. "Não serei superior como Nietzsche, pessimista como Schopenhauer ou cínico como Voltaire". A coletânea é um importante registro de uma época. Panorama de toda a trajetória de Glauber, desde a sua adolescência, passando por seu tempo de produtor na Bahia, sua transformação em cineasta, seus amores, brigas e desavenças, exílios e profecias.
"Carta" (1965), poema em prosa que abre o livro Poemas Eskolhydos de Glauber Rocha, não incluída na coletânea das Cartas ao Mundo, talvez seja o texto-síntese de toda uma geração: "Devo abandonar este país./ Ontem, na praia, vi um navio inaugurar, ao longe, a linha de ocupação./ O Verão chegou e com ele uma nova Constituição:/ O Alto Poeta Drummond protestou contra o corte da/ palavra Cultura no Parágrafo referente à Educação./ Educação sem Cultura não pode!/(...) A poesia ficou concreta – o país in Cultura!/ Introduziu-se kafka, Joyce, Pound e até mesmo Pindaro –/ falou-se em Eisenstein, Maiakovski e Gomringer, injeções de/ inteligentes! Sartre virou comunista!/ O melhor verso é desagregação./ Juscelino Kubistcsheck desaliena os poros de uma geração!/ O nacionalismo não é verde-amarelo!/ O país é subdesenvolvido!/ Do concretismo ao proselitismo!/ Nas praças se prega a revolução!/ Quem é gente vive como bicho! Abre-se um Banco de agitação! Vieram os militares, deram um Golpe!".
Em carta de 1971 a Alfredo Guevara, dirigente cinematográfico cubano, Glauber diz que "a vanguarda revolucionária é a descoberta permanente das novas qualidades do ser humano e sua relação com a sociedade. A História é uma projeção das idéias. Marx projetou a luta de classes e vivemos até hoje em função de um sonho socialista libertador. Todo um povo pode ser criador, artista e este seria o sentido total de uma revolução pela qual minha ação se arrisca até a morte".
Em Deus e o Diabo na terra do sol, Glauber diz que "o destino é mais forte que a morte". Como nesse filme, a sua obra nasce do discurso mítico e inconsciente. A narração do cantador, os movimentos de câmera e a encenação nem sempre estão em sintonia. Em termos cinematográficos, temos a "montagem vertical" (Eisenstein). O filme desenvolve uma outra interação entre o trabalho de narração e o mundo da lenda. Glauber como Brecht, interrompe a ação para comentá-la e ressaltar seu aspecto social. A linguagem figurativa de Deus e o Diabo discute as lutas e processos que ocorreram na história do nordeste brasileiro. Glauber construiu através do cinema um lugar melhor, um lugar onde fosse possível existirmos por completo.
A obra de Glauber reinaugura a realidade e o sonho. Transcorre entre a loucura e a lucidez. Os personagens glauberianos apresentam os dilemas políticos e sociais da sociedade, mas também se aventuram no aprendizado do autoconhecimento. Estão em busca de uma resposta existencial, comprometida com o vazio e o absoluto. Glauber usou a linguagem cinematográfica como forma de expressar as limitações da condição humana, a linguagem como invenção das coisas reais, das coisas que não sabemos e, no entanto, se perderam. Ninguém ignora que Glauber procurou captar o cotidiano através dos sentimentos primitivos, numa tentativa de denunciar a intransigência do mundo objetivo e inumano.
O cinema de Glauber sinaliza as fronteiras entre o humano e o desumano. Talvez soubesse que para abrir o caminho da eternidade fosse necessário povoar a solidão com sonhos. Sonhos inesgotáveis e assombrosos que, todavia, são reais.
Carta a Cacá Diegues (trecho)
"Querido Cacá,
(...) A força mais poderosa da língua é a metáfora. O surrealismo não morreu – o que houve foi uma repressão histórica – o surrealismo não é culturalista, ninguém sacou o que significou o surrealismo aqui. Paris me serviu para sacar o óbvio que só o cinema pode fazer, mudar a língua do homem. Aí está a significação determinante do cinema. Quando Buñuel disse: 'no dia em que o inconsciente do homem se materializar na tela o mundo pega fogo' estava dizendo: o cinema destrói todas as linguagens.
Tenho o maior desprezo por tudo que a civilização produz. Nossa geração não verá o comunismo em nenhuma parte do mundo. A história escorre, a morte corrói. A única coisa que nos revitalizará é a projeção dos nossos desejos na tela, através desta estrutura inventada por Lumière etc. (...) Eu sou um apocalíptico que morrerei cedo embora não seja romântico. Às vezes sinto-me louco e absolutamente feliz dentro de uma infinita solidão. Agora não tenho nem mais roupas. O novo filme é uma aventura que não sei em que vai dar...
(...)Começo a entender a significação do sado-masoquismo, a infinita ternura que há no crime. Eu tinha um verdadeiro prazer em filmar Antônio das Mortes massacrando beatos, projetava meu inconsciente fascista em cima de miseráveis – Deus e o Diabo é uma razão histórica dialética para esconder o sádico de massas que sou.
(...)Teresa vai embora, preferi ficar sozinho, não me sinto feliz nem triste. O que é a liberdade? Poder saber criar? Não tenho poder, tenho pouco saber(...) Muitas saudades. Já tirei os demônios do corpo durante a carta, o corisquismo por vezes me domina, e isto é transe místico, e logo volto à calma.(...) Tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Love. Buru"
Carta a Claude-Antoine (trecho)
"(...)Eu me sinto muito mal se as coisas não funcionam como queremos. Por isso vou deixar o país. É impraticável, a crise é muito profunda. Devo ir a Paris. Talvez eu fique na Europa por longo tempo. Ainda pensei em tentar alguma coisa, mas é impossível. Eles querem me impedir de filmar durante três anos; existem músicos e escritores já proibidos e no cinema ainda não começou por causa do Festival Internacional do Filme em março, para evitar repercussões. Depois, as punições. Quero partir antes do processo.(...)"
Carta a Carta a Alfredo Guevara (trecho)
"(...) No Brasil, hoje, a mais importante figura política, o único líder em potencial de uma revolução no Brasil, em termos ideológicos justos, é Miguel Arraes, em exílio na Argélia. No Brasil, existe Jânio de Freitas, do jornal Última Hora. O homem que deve ser contactado. E, mais do que o PC, o movimento importante no Brasil é a AP (Ação Popular, com padres e estudantes), cujo Homem a ser conectado chama-se Roberto Freire, em São Paulo, escritor e teatrólogo e homem de ação. Quando houver uma união da AP com Arraes, com a adesão de Jânio Freitas, então poderá ser começada UMA REVOLUÇÃO no Brasil, que poderá ser APOIADA por Brizola e o PC. Brizola é violento, mas não tem honestidade ou formação ideológica. Tem um temperamento fascista e está ligado a alguns aventureiros de esquerda. Essas informações são CONFIDENCIAIS, mas acho que apoiar Brizola é um erro para o Brasil. Todos os núcleos importantes brasileiros estão portencialmente com Arraes. Essas informações, você pode pensar sobre elas e falar com Fidel, se quiser. Isto não implica em não apoiar Brizola, mas o melhor, o possível, o consequente seria fazer a aliança Arraes, Brizola, AP. Arraes é o único líder de camponeses, AP é o único líder de estudantes, Jânio de Freitas é o único líder intelectual e Brizola tem força no sul e no EXÉRCITO. Julião, ao contrário, é um homem liquidado.(...)"
Outra Carta a Cacá Diegues (trecho)
"Querido Cacá
(...) Caetano se reaproxima através de John Lennon mas não tenho o menor interesse em John Lennon, apesar de ter o maior interesse em Caetano. Mas seu último disco é um filme de Cinema Novo de 1968. Depois que descobriram o Cinema Novo de tanto esculhambá-lo: um pouco de inglês pop e de nordeste faminto – mas, meu Deus, qual a novidade de "Asa branca" depois do plano inicial de Vidas secas – é tudo bonito!
Caetano sabe disso. Intuiu mais ou menos, ele está pesquisando a música brasileira – voltarão à Ganga Zumba, Barravento, Cinco vezes favela. Em Nova York, Hélio Oiticica, que só pensa no sucesso, me dizia, entre irônico e espantado: poxa, aqui só se fala em cinema novo. O cinema novo acabou, meu irmão (respondi). Mas vocês precisam aproveitar. Nós não queremos a política para fazer promoção artística.
Caetano depois fez elogios à tua entrevista no Cahiers. Nós sabemos o que são os Cahiers. A tua entrevista no Cahiers uma não-resposta às provocações infantis de Sganzerla no Pasquim, que fizeram delirar a macacada provinciana do Rio e de São Paulo. Justamente Cosme, Bernadets, Rudás, menos o Alex, até ele vacilou... Todos esses impotentes que não conseguiram fazer carreirinha as custas da gente.
(...) O atraso dos nossos intelectuais em relação ao cinema é uma tragédia, boneca. E de todos, ou da maioria, em relação ao nosso cinema nem quero saber.
(...) Caetano que é genial, já está fazendo revisionismo de esquerda, do revisionismo de 1969, e chegará a outras conclusões. Por isso mesmo dedicou disco à Bossa Nova, Cinema Novo, Concretismo. O texto foi vetado pela gravadora inglesa, mas ele vai lhe mandar uma cópia. Realmente, do outro lado, a única vertente interessante é o Caetano e os irmãos Campos. (Mas sabemos mais do que eles.) Deduza o resto. – Essa polêmica acabou, um dia eu ou você explicamos e fica claro que esse nosso pensar, discutir e criar, é o que nos cabe por nascença brasileira(...)."
Para ir além
Pedro Maciel
Belo Horizonte,
16/9/2002
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