Cenas de um casamento | Marcelo Rubens Paiva

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Segunda-feira, 21/4/2008
Cenas de um casamento
Marcelo Rubens Paiva
+ de 7700 Acessos
+ 4 Comentário(s)

Existem algumas formas para evitar as discussões inerentes a um casamento. Dividir tarefas é uma. Exemplo: se moram em apartamento, ela pega o jornal no hall, ele, o delivery na portaria.

Outro? Ela passeia com o cachorro de dia, ele, à noite. Ela o leva à tosa e banho, ele, ao veterinário. Ela dá a ração, ele limpa os excrementos.

Com a repetição e o consenso, acomodam os conflitos e aumentam as chances de ser estabelecida a paz. Mas o que realmente ajuda um casamento é a alternância de quem escolhe o que fazer aos sábados.

* * *

Sábado à tarde
Comida costuma causar muita polêmica, pois ele prefere sempre os mesmos restaurantes, e ela, o novo, restaurantes étnicos que saem nos guias, recomendados por críticos gastronômicos e colunas sociais.

Prático, ele gosta de rodízio. Especialmente de churrascarias. De dia ou de noite, não faz diferença: pede farofa com ovo e bacon. Gosta também de cantinas italianas tradicionais, daquelas com massas grossas e fartura de molho. Ele sempre pede torradas com alho de entrada. E polenta frita. Bebe refrigerantes. Ou caipirinha de limão com pinga mineira. Sem açúcar.

Já ela gosta de grelhados com salada, pratos com ricota, tomate picado e manjericão. Bebe suco. Ou caipirinha de frutas vermelhas com saquê. E adoçante.

Ele coloca manteiga no pão. Ela, azeite. Ele gosta de picanha. Ela, de paillard. Ele pede maionese extra. Ela pede para tirar. Ele pede espaguete. Ela, meio pene. Ele encara um carneiro com batatas. Ela prefere um atum ou salmão com brócolis.

No entanto, na sobremesa, a preocupação com a taxa de triglicerídeos inverte. Ele pede um café, ela, um petit gâteau com sorvete de creme, calda de chocolate extra e farofinha.

* * *

Sábado à noite
O programa é cinema! Quando ele escolhe, geralmente são filmes de guerra, policial ou terror. Que concorrem a algum Oscar técnico: efeitos especiais, montagem, edição de som ou maquiagem. Na fila do cinema, encontram o dentista, o professor de caratê da infância, filhos de amigos, a secretária da firma e o seu namorado forte, e um ex de quem ela nem lembra do nome.

Os protagonistas do filme têm tríceps, bíceps e deltóides bem trabalhados. E costumam exibi-los em camiseta regata. Têm barba bem feita e seguram qualquer arma com intimidade, de um simples revólver a uma submetralhadora com mira a laser. Sabem onde destravá-las e como apontá-las. E só viajam de primeira classe.

Todos violentos. Todos com cenas de perseguição. Todos com heroínas loiras e saradas. As traições são resolvidas na porrada. A vingança? Dão um tiro na testa do infeliz. Sempre há em jogo uma maleta de dinheiro. Quando não, há uma maleta com uma bomba complexa.

Há vilão, e ele costuma ser feio. Ou tem uma deformidade de nascença ou uma deficiência adquirida. A grande ambição do protagonista não é uma lancha ou um avião particular, mas voltar para a paz da sua casinha com o seu cachorro labrador. A loira é detalhe. Ele sabe muito bem que, depois de suar em bicas, ela irá para os seus ombros salientes. Apesar de vestir a mesma camiseta. O casal chama de "filme de menino".

São exibidos em salas enormes, as maiores dos shoppings, com tecnologia de ponta na compra de ingressos, poltronas, imagem e som digital. Até os estacionamentos têm guaritas com cancelas automáticas, daquelas que falam sozinhas.

Só o preço dos ingressos incomoda. Com o dinheiro que gastam, pagariam tranqüilamente um combinado duplo num japa de respeito; sem modismos. Mas ela não reclama. Sugere o jantar num fast-food da praça de alimentação, para compensar o preju.

* * *

No outro fim de semana, a mulher escolhe o filme. Geralmente foi premiado no festival de Cannes, Veneza ou Berlim. Tem bom roteiro, diálogos inteligentes e atores magros e pálidos. Os personagens não dão um tiro durante o filme. Se rolar uma arma, logo a dispensam: são da paz. E têm gatos.

Na fila do cinema, encontram o terapeuta, um colunista de jornal, pais de amigos, o dono da firma com a sua amante francesa, o professor de ioga, e o ex mais recente, que acabou de chegar do Nepal e tem mil novidades.

Ela gosta de filmes multiculturais que discutem preconceitos e tabus. Certamente, também exploram a relação amorosa, os seus caprichos e a relação entre pais e filhos. Existem amantes. As traições são resolvidas com muito papo.

Há referências históricas. São falados em espanhol, francês, árabe ou chinês. O enredo gira em torno de dilemas existenciais. Nos créditos, agradecem a vários institutos e parcerias. Não há uma distribuidora de peso por trás. O logo da produtora é antiquado e repleto de riscos.

Há cenas longas, escuras, filmadas por uma câmera que não sai do lugar. Os personagens não se vingam, conciliam-se. Estão sempre duros e não se xingam. A maior ambição é entender o sentido da vida. Viajam de classe econômica.

Os finais são em aberto. E ele sempre pergunta para ela o que, afinal, aconteceu. Ele não entende direito quem é o bem e quem é o mal. Sim, tais filmes não têm vilões. Aparentemente, o vilão está dentro de cada um nós: é a mensagem que querem passar. O casal chama de "filme de menina".

São exibidos em salas pequenas, cinemas que parecem cineclubes, onde se estaciona na rua. A pipoca é amadora ― fria e mole ―, vendida por um pipoqueiro na calçada. As poltronas seguem uma moda retrô. Normalmente, têm a cor do vazamento do teto. O ar-condicionado é temperamental: muito frio em dia frio, e preguiçoso em dia quente.

Ao menos, sobra dinheiro para tomarem um saquê californiano no japa em questão.

* * *

É evidente que tudo isso não passa de um clichê barato, resultado de estereótipos e generalizações. Mas domingo não tem jeito: é sempre a mesma coisa.

Ela dorme pesado. Ele liga a tevê para ver a corrida. Ele toma café. Ela, chá. Ele faz um ovo frito. Ela toma iogurte que ativa o intestino. Ela demora horas no chuveiro. Ele, no toalete.

À tarde. Ela quer visitar a família. Ele, nem preciso falar: assinou o canal pay-per-view do campeonato em disputa, logo... Para a sorte dele, começa a chover. Ela fica no telefone, ele na tevê.

À noite é batata, digo, pizza. Adivinha quem pede meia calabresa e quem pede meia rúcula com tomate seco?

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno2" de O Estado de S. Paulo, em março de 2008.


Marcelo Rubens Paiva
São Paulo, 21/4/2008
Quem leu este, também leu esse(s):
01. Duas cartas de Luís Henrique Pellanda
02. Monterroso e a microliteratura de Sérgio Augusto
03. Nas vertigens de Gullar de Annita Costa Malufe


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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
21/4/2008
01h18min
Como Eco, fui longe, acho até que me perdi nesse bosque aí... Seria realmente ficção o escrito? ... Tudo está dito, melhor... descrito! Ah, mundinho cruel...
[Leia outros Comentários de Geórgia Lorena ]
21/4/2008
09h06min
Muito boa essa história que, apesar do clichê, narra com propriedade as diferenças entre homem e mulher. Mostra mais uma vez como é difícil a arte de conviver, de tornar unidos dois seres tão diferentes... agora se "na hora da cama nada pintou direito" aí o bicho pega, de verdade.
[Leia outros Comentários de Adriana Godoy]
28/4/2008
10h03min
Ótimo, esse texto, onde é demonstrado que, entre homem e mulher, o sabor de um relacionamento rico está exatamente nas diferenças e não na igualdade. Quando ambos pensam igual, a mesmice da vivência na relação pode torná-la monótona e desenxabida, fadada à morte súbita pelo cotidiano... Onde se resolvem tais diferenças? Nem mesmo foi necessário abordar isso, pois é óbvio que o desempenho na cama é que determina o grau de interação entre os casais...
[Leia outros Comentários de Elizabeth Castro]
28/4/2008
15h55min
Acho que eu ganhei na loteria mesmo com os probleminhas que sempre aparecem, estou casada há 38 anos e sou apaixonada pelo meu marido e ele por mim. E nossa família é grande - 4 filhos e 2 netos - então, quanto maior a família, maiores os problemas. É preciso muito diálogo e boa vontade!!!
[Leia outros Comentários de Stela Gomensoro]
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