Não lembro quem disse que para escrever um romance é preciso ser um pouco burro. É uma boa frase, para além de seus efeitos publicitários: construir personagens e dramas que tenham o mínimo de vida demanda, antes de mais nada, não ter vergonha de deixá-los entregues ao ridículo que, em maior ou menor grau, está presente em qualquer trajetória humana. Se o autor fica o tempo todo mostrando que não faz parte desse ridículo, ou seja, que não é capaz de rir, chorar ou se maravilhar com os encantos mesquinhos e corruptos da vida, a tendência é que o leitor, também ele uma alma corrupta e mesquinha, não se identifique com nada do que encontra nessas histórias.
Isso é verdade na maioria dos casos, mas não em todos. Não dá para dissociar o romance satírico, por exemplo, do bem-vindo sentimento de superioridade de quem o escreve. Ou o romance de idéias, que abdica da narrativa e da empatia em favor de teses postas na boca dos personagens, de um tipo de prazer estético muito mais ligado à inteligência do que às emoções.
Tudo isso para dizer que o fracasso do só agora publicado Carne Viva (Francis, 2008, 264 págs.), de Paulo Francis, não se deve apenas à sensação de artificialidade da trama, que parece engendrada tão-somente para veicular as opiniões de seu autor sobre o Brasil, o mundo, o homem, os tempos. Embora seja um defeito bastante incômodo, que faz com que alguns diálogos soem constrangedores em seu esquematismo e inadequação, o problema maior são as idéias mesmo.
Daria para falar de várias delas. A visão dos conflitos de classe na sociedade brasileira, por exemplo, é ruim menos por motivos ideológicos ― e seria ridículo fazer uma análise do livro a partir desse parâmetro ― do que por soar anacrônica, afetada, como uma conversa entre homens de terno, em pleno calor, num Country Club decadente de um Rio que não existe mais. Também surpreende que as relações entre homens e mulheres sejam descritas por Francis, sabidamente um sujeito do mundo, cujo charme pessoal sempre transpareceu em seus inesquecíveis comentários, críticas, ensaios e memórias, de forma tão reducionista, quase ingênua.
Mas o que incomoda mesmo em Carne Viva, algo presente nas entrelinhas da parte mais importante do livro, os discursos diretos e indiretos dos personagens masculinos, é a idéia de que o mundo caminha para a barbárie ― política, moral, de costumes. No que se refere à cultura, o fenômeno se manifestaria pela dissolução dos parâmetros, pelo fim dos debates inteligentes, pela tragédia que é a estética de massas.
É um argumento um pouco cansativo, não só por sua reiterada popularidade num tipo de crônica que, por algum motivo insondável, parece ser o preferido do público brasileiro há coisa de 50 anos, mas também por estar errado em seu prognóstico: dez anos depois da morte de Paulo Francis, nunca se teve tanto acesso a produtos culturais, nunca os artistas tiveram tanta facilidade de publicar, gravar um disco, fazer seus filmes, nunca o público pareceu tão interessado em se manifestar a respeito de tudo isso. Como em qualquer tempo, as obras de qualidade superior são raras, mas existem. E se os debates na Internet na maioria das vezes são estúpidos, é porque a humanidade sempre foi em sua maioria estúpida. Nenhuma mudança de grau no processo. Pelo contrário: a prática de se expressar por escrito e ouvir o contraditório, se pensarmos com um pouco de otimismo, quem sabe até melhore o nível geral da audiência com o tempo.
De certa maneira, a queixa de Francis era um lamento pessoal pela perda do próprio poder. Não estou dizendo nada de novo: com o Google, por exemplo, muito do charme de textos que se apóiam apenas em informações horizontais, abdicando de qualquer densidade analítica, foi por água abaixo. Da mesma forma, a influência que uma crítica publicada num grande jornal, anteriormente um dos três ou quatro julgamentos que o leitor iria conhecer sobre um romance, disco ou filme, hoje se dilui entre centenas de fontes igualmente lidas e comentadas. Para quem construiu a carreira como intelectual público, o humanista que incorporava o filtro pelo qual passava tudo o que fosse relevante na cultura, ajudando a criar no público e em si mesmo a ilusão de que era possível apreender a súmula de algo tão grandioso e fragmentado, não devia ser confortável viver com a perspectiva dos novos tempos ― já visíveis nos anos 1990, quando Carne Viva foi escrito.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no seu blog michellaub.wordpress.com.
Não sei se concordo, ainda não li o livro, apenas trechos. Me deu a impressão nítida de um romance ainda em fase de construção, idéias anotadas, story board literário, uma coisa desse tipo. Se for isso mesmo, essa crítica parece justa. Mas a tese do advento da barbárie já foi defendida pelo Francis, e com brilho, antes desse romance. É uma tese recorrente, sim, mas, nas mãos do Francis, não é totalmente descartável. Esse Carne Viva pode ser apenas um embrião de romance, ao contrário dos outros dois, não sei. É uma coisa pra se verificar. De qualquer forma, no caso específico do Francis e da crítica negativa e generalizada aos seus dois outros romances, pode-se inverter a frase que abre esse texto e dizer que, para se ler um romance, é preciso ser um pouco menos burro. Quanto ao medo da perda do próprio poder, é provável que Francis o sentisse, mas isso é um problema mais de jornalistas do que de escritores. E Francis gostaria de ser lembrado como escritor, se possível...