Perto da complexidade do software livre, a interface da democracia é de uma simplicidade franciscana ― o que pode explicar por que os jovens não se interessam por ela
Há pouco tempo aconteceu no Brasil o Campus Party. Para quem não acompanhou, trata-se do noticiado evento no Parque Ibirapuera em São Paulo que por uma semana reuniu alguns milhares de jovens acampados, não em torno de uma fogueira, mas sim de uma conexão de internet ultrapoderosa. Esta foi a primeira edição nacional de um evento que há oito anos é realizado na Espanha. As diferenças entre o que acontece no evento espanhol e o que ocorreu na versão brasileira dizem muito sobre o significado da "tecnologia" para os jovens daqui e de lá.
Na Espanha, a maior parte dos jovens vai ao Campus Party atraída pelo universo dos games: os participantes vão passar o tempo com os amigos jogando (aliás, nada contra). Por aqui a história é outra. A comunidade que mais atraiu participantes no evento brasileiro foi a do software livre, que somou 23% de todos os participantes. O segundo maior grupo foi o da área de música/criatividade, com 20%. Em terceiro lugar, aí sim, ficaram os games, atraindo 16% dos participantes.
Enquanto na Espanha os jogos, uma atividade essencialmente de lazer, dominam (o que se reflete até no marketing do evento), no Brasil a maior atenção do público foi dirigida a outras atividades que envolvem interesse público ou comunitário. Considerando que a média de idade do evento aqui foi de 23 anos, isso acaba contradizendo o senso comum que distancia jovens de atividades de interesse público. Nesse sentido, é preciso perceber que as próprias formas de participação pública estão se modificando com a tecnologia.
Crackeamentos
Curiosamente, a mesma discussão sobre juventude e interesse público reaparece poucas semanas depois do Campus Party, em um seminário organizado no Rio de Janeiro pela TV Futura. O tema em discussão era "democracia". Entre os palestrantes encontravam-se pesos pesados como o historiador José Murilo de Carvalho, o filósofo Renato Janine Ribeiro, o psicanalista Jurandir Freire Costa e o deputado Fernando Gabeira. Nos debates, foi enfatizado uma vez mais o distanciamento dos jovens em relação à democracia, à formação política e por conseqüência, ao interesse público.
Na minha participação, fui obrigado a discordar. Chamei atenção justamente para o uso da palavra "sistema", que aparece tanto quando se discute democracia como quando se discute um programa de computador (fala-se tanto de "sistema democrático" como se fala de "sistema operacional" ou "sistema Linux"). E, como todo bom participante do Campus Party sabe, sistemas são sempre "hackeáveis".
E, de fato, o "sistema" democrático está sendo hackeado hoje das mais diversas maneiras. Entre elas, pelos movimentos sociais, que geram seus próprios canais representação. Ou pela descentralização radical da produção do conhecimento e da cultura, que faz surgir a chamada "inteligência coletiva" (da qual surge, por exemplo, o software livre). Outros "hackeamentos" menos nobres (que na verdade poderiam ser chamados de "crackeamentos", por efetivamente desvirtuarem o sistema) materializam-se nas relações complicadas entre a democracia e o sistema econômico, em que um disputa as decisões do outro. E, por fim, no pior "crack" de todos para o sistema democrático, a corrupção.
Com isso, levantei a hipótese de que talvez o desinteresse dos jovens pela democracia esteja ocorrendo justamente porque, do ponto de vista da informação, o sistema democrático é um sistema muito pobre. A "interface" dele com o "usuário" é de uma simplicidade franciscana (basicamente compreendida por operações de 1+1). Jovens de todo o mundo, ricos e pobres, estão cada vez mais se acostumando a lidar com "sistemas" infinitamente mais complexos. Isso explica, por exemplo, o interesse despertado pelo software livre, um sistema que, com toda sua complexidade, coloca nas mãos do indivíduo a capacidade de produzir resultados imediatos, de interesse público e que afetam a vida de milhões de pessoas. Resta saber se as futuras gerações digitais irão dar início à tarefa de aperfeiçoar o sistema democrático, transferindo para ele parte da complexidade de outros sistemas com os quais já estão habituadas a lidar.
Quando apresentei todas essas reflexões no seminário da TV Futura, consegui despertar um bom nível de espanto nos participantes. Naturalmente, 99% deles não tinham ido ao Campus Party. No próximo ano, recomendo.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Trip. Ronaldo Lemos é diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-RJ e um dos fundadores do Overmundo.
Porém, a gente tem que considerar o aspecto menos institucional e mais pessoal das novas gerações, já que elas se deram conta de que as críticas sociais não levaram o mundo muito longe. A alienação pode ser um ponto de perspectiva. Não poderia o jovem de hoje ter por alienado aquele indivíduo que se recusava a entender a vida de modo mais transcendente? A geração atual não poderia considerar o jovem do passado como alguém que, ao criticar o sistema, olhava só para fora e pouco para dentro, encontrando um boi de piranha para continuar o mesmo, velho? Não poderia dizer ao antigo jovem "ei, meu, melhore-se que vai melhorar muito mais gente ao seu redor"? Ou: "cara, não é engraçado querer mudar os homens a quem toma por ditadores, se você não suporta ser contestado?" Ou: "velho, se o cara é ditador, você não devia fazer o caminho contrário para contradizê-lo, ou seja, se colocar em posição de quem aprende?"
Digam o que disserem, mas fica a impressão de que a geração atual é, pelo menos, mais humilde. Quantos discursos começaram socialistas e acabaram societários de homens que tomaram posse e se apossaram...
Grata surpresa esbarrar com um texto de Ronaldo Lemos aqui no Digestivo. Por ter acabado de finalizar um trabalho acadêmico sobre construção de subjetividades no Movimento do Software Livre, não me contive em postar este comentário só para registrar que o tema é atual e riquíssimo. Mandou bem, Editor!
Os jovens não se interessam pela democracia. Eles não vêem nela nada que possam aproveitar em seu interesse. Vivemos um momento em que os seres humanos são parasitários da espécie humana. Tudo o que interessa é o que traz ganhos imediatos. Fora disto, nada mais existe. É o "eu" superlativado ao extremo.