O delírio da utopia de maio de 68 não respingou apenas nos corações e mentes dos europeus que fizeram a música de vanguarda naquela e nas décadas seguintes. A utopia foi "exportada", sobretudo a partir dos anos 70/80, para a América Latina, quando muitos compositores e músicos europeus participaram do Festival Música Nova, surgido em Santos, pelas mãos de Gilberto Mendes em 1962 e até hoje anualmente realizado; e também dos Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea, realizados entre 1971 e 1989, concebidos no Uruguai por Conrado Silva (hoje professor na Universidade de Brasília) e Coriún Aharonián (os dois eram alunos de Héctor Tosar, então o mais expressivo compositor uruguaio). Com a ditadura uruguaia a partir de 1973, os Cursos passaram a acontecer em outros países; várias vezes ocorreram em pequenas cidades brasileiras como São João Del Rei, Tatuí, Uberlândia e Itapira ("para não chamar a atenção das autoridades", diz Gilberto Mendes, que participou ativamente dos Cursos).
O melhor da vanguarda
O Festival Música Nova sempre estruturou-se como uma série de concertos e apresentações públicas; os Cursos combinavam concertos, mesas-redondas, palestras, oficinas e workshops. Ali estudantes, instrumentistas, compositores e teóricos da música juntaram-se em comunidades de tonalidades utópicas que pregavam a adoção de uma resistência política às ditaduras então vigentes na América Latina; e, por outro lado, tinham como meta maior tornar realidade a utopia de uma música nova para um homem novo. A música viva deveria sangrar como sangravam os povos da América Latina, exibir as contradições de sociedades injustas dos pontos de vista social, econômico e sobretudo político.
Ao longo do tempo, quarenta músicos internacionais, sobretudo europeus, entre compositores, musicólogos e instrumentistas, participaram de ambos os eventos. Importante: eles mesmos pagaram suas passagens aéreas, o Festival e os Cursos só davam alimentação e hospedagem. Nem cachê havia. Por aí se vê que não se tratava de eventos convencionais. A lista dos que vieram é altamente significativa, pois reúne alguns dos mais respeitados nomes da vanguarda européia. Entre tantos outros, o italiano Luigi Nono, que participou do primeiro Curso Latino-americano, em 1971; Helmut Lachenmann, Louis Andriessen, Konrad Boehmer, Dieter Schnebel, Wilhelm Zobl, o português Jorge Peixinho, Luca Lombardi, Frederic Rzewski. "Era muito bonito tudo aquilo", diz Gilberto Mendes. "Eles vinham dar apoio a um movimento de resistência política".
Esta história é praticamente desconhecida. Só agora começamos a conhecê-la melhor, graças à excelente tese "A utopia no horizonte da música nova", defendida há dois anos na Universidade de São Paulo por Teresinha Prada. "Há muitos textos sobre a atuação da música", diz ela, "via canção de protesto, frente às ditaduras militares na década de 70 no Brasil e na América Latina, mas esquece-se de que a música erudita também enfrentou problemas sérios e apresentou um tipo de resistência ao establishment. Houve um significativo relacionamento e trânsito de músicos eruditos, irmanados numa mesma luta, estética e política, no Festival Música Nova de Santos e nos Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea".
68 por aqui significou o arrocho da ditadura, a edição do AI-5. Por isso, não é de todo correto afirmar que os dois eventos mais significativos da música contemporânea ― ou música nova, como era então chamada ― na América Latina foram resultado direto e simples do Maio de 68. Afinal, o Festival teve sua primeira edição em 1962. Interrompeu-se de 65 a 67 por causa do golpe, e retornou em 68, mantendo-se até hoje como o mais antigo evento dedicado à música viva da América Latina. Mas Gilberto Mendes reconhece que "o aperto da repressão de 68 motivou a guinada mais à esquerda, primeiro por nossas próprias convicções políticas de esquerda, e logo depois pela ligação com o Curso Latino-americano". E este, sim, teve inspiração direta no Maio de 68.
Teresinha mostra como o Festival, a partir do surgimento dos Cursos, em 1971, forma uma linha de frente onde a estética de vanguarda ― até então o critério básico ― é substituída pela exigência ideológica: "A partir de certo momento, a programação não seria mais feita simplesmente ou exclusivamente por uma opção estética, mas também se desenvolveu como uma alternativa ideológica. Quando os organizadores das duas mostras fortalecem seus laços, há o estreitamento das relações entre seus músicos participantes, transmitindo um ao outro a mesma mensagem".
Amor & Revolução
Luigi Nono, nome emblemático das vanguardas, casado com Nuria, filha de Arnold Schoenberg, foi o primeiro a vir para os Cursos Latino-americanos, em Piriápolis, em 1971. Como Cohn-Bendit, Nono seguiu à risca, em sua estada no Uruguai, os famosos versos pichados na Sorbonne em maio de 68: "Quanto mais faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução/ quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor". A ponto de, segundo Gilberto Mendes, ter sido "chamado às falas para o assunto principal, a música. Afinal, ele vivia correndo atrás das belas e jovens instrumentistas, compositoras e participantes do curso".
Entre uma aventura amorosa casual e uma discussão política, Nono encontrou tempo para escrever um artigo de quatro páginas sobre o evento. Elogia o que chama de "discussões antiacadêmicas e antiautoritárias (o contrário dos cursos de música europeus, que têm caráter acadêmico e autoritário, e baseiam-se na 'personalidade' individual e unilateral de músicos, e cujo pior exemplo são os cursos de verão de Darmstadt, que se limitam a impor sua própria visão estético-técnica, segundo o 'mito da tecnificação como progresso', o que corresponde à posição da música oficial e governamental, européia e norte-americana, verdadeiro instrumento cultural que dá sustentação à dominação capitalista e imperialista atual)".
Nono considera "populismo turístico tentar repetir hoje as experiências de Villa-Lobos ou Chávez" e aponta Bartok como modelo a ser seguido: "Ele pratica uma linguagem musical contemporânea que penetra na essência da estrutura interna da linguagem musical popular e não se limita a citações como Stravinsky". Elogia e lista o dever de casa de todo músico latino-americano: "Necessidade de analisar, ultrapassar e romper a dominação cultural européia e norte-americana; instituir uma prática criativa própria e original; destruir a superestrutura cultural imposta há séculos pela dominação estrangeira; reconhecer a matriz autóctone e reconhecer-se a si mesmo nela, em sua própria origem; romper a hegemonia eurocentrista; inventar novas técnicas, novos instrumentos expressivos, novos meios de comunicação e novas formas que correspondam às exigências do momento de luta atual na América Latina".
Não é pouco. "Os músicos da chamada música nova", escreve Teresinha em sua tese, "souberam refletir, latente e potencialmente, os momentos conflitantes de sua história política. Assim, uma mínima referência em seus produtos (suas obras musicais) pode ter sido suficiente para fazer estalar no público que freqüentava esses eventos a mensagem contida nesse produto. A comunicação entre público e artista ocorreu, tendo ou não tendo texto, cada vez mais de forma sutil e sofisticada. E o mesmo aconteceu com o público ― cúmplice e testemunha ― pequeno, mas de alto nível de discernimento".
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Parte integrante do recém-lançado livro de João Marcos Coelho, No calor da hora ― Música e cultura nos anos de chumbo.
A fofoca sobre Nono como fauno ("Afinal, ele vivia correndo atrás das belas e jovens instrumentistas, compositoras e participantes do curso") é totalmente idiota, além de falsa. Nono nunca teve que ser "chamado às falas para o assunto principal, a música". Sempre teve muito claro o que era primordial. Ninguém tem direito de projetar no homem morto as fantasias frustradas próprias.