Glenn Gould: caso de amor com o microfone | Luís Antônio Giron

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ENSAIOS

Segunda-feira, 7/10/2002
Glenn Gould: caso de amor com o microfone
Luís Antônio Giron
+ de 16700 Acessos

Um dos desejos não realizados pelo pianista canadense Glenn Gould foi ter escrito uma ópera, pelo menos. Esta contaria as peripécias de certo compositor anacrônico, que teima em escrever música romântica em pleno século XX, indo de encontro a todas as modas. O personagem tinha como modelo o músico alemão Richard Strauss (1864-1949), espécie de eminência parda dentro do sistema estético de Glenn Gould. A música de Strauss sempre tomou parte na existência do pianista. Este sabia de cor partituras como a da ópera Elektra, de Strauss, e um dia declarou que a obra que levaria à tal ilha deserta seria outra ópera do compositor: Capriccio, peça nostálgica e sobre o mundo agonizante da erudição germânica, cujo personagem principal é a ópera.

De certo ângulo, Gould representou para o século XX o avesso de Strauss, e o fez de propósito, como que a escrever sua trajetória pelo caminho inverso do mestre alemão. Enquanto este era o retrógrado e teimoso mantenedor das tradições da prática musical novecentista, o canadense quebrou com ela em dois pontos. Alterou o modo de interpretar a música do passado e renunciou a um de seus dogmas mais caros: o recital ao vivo. Gould considerava as apresentações em carne e osso uma "arena sangrenta" indigna da arte dos sons e a trocou por aquilo que chamou de "caso de amor com o microfone". Em 1964, no ápice da fama, nosso anti-Strauss decidiu abandonar palcos para se exilar no estúdio de gravação e criar, assim, música segundo padrões tecnológicos que deveriam elevar o som gravado a níveis de excelência nunca antes alcançados. "Achei o palco uma experiência aterradora e essencialmente antimusical", disse, num documentário. "Desistir de concertos foi apenas uma forma de me livrar de uma experiência intensamente desagradável."

No entanto, o paraíso técnico resultou em distopia, pois isolou o músico num círculo produtivo sem progresso. Conservou-o ao mesmo tempo que o separou por inteiro do caráter humano da música, prejudicando, no fim das contas, sua interpretação. Morreu afastado voluntariamente do público, e, na prática, separado dos seres humanos, levando uma vida das mais excêntricas, cheia de manias e instabilidade. Ao sofrer o derrame cerebral que o matou, em 4 de outubro de 1982, dias depois de completar 50 anos, vivia hermeticamente fechado em si próprio e seus projetos. Deixou uma obra gravada tão controlada que soa sobre-humana. E ela está nos discos, cerca de 80, gravados ao longo de 30 anos de carreira. Não se trata de um legado de fácil audição. Há quem conheça música e deteste a abordagenm gouldiana, por submeter a inspiração dos mestres a uma excessiva secura expressiva.

Como artista, Gould cultivava a desumanidade como uma flor rara. Declarou que considerava a arte algo desumano em essência: "A arte, em sua missão mais elevada, dificilmente é de todo humana." E não havia muita diferença entre o artista e o homem. O bizarro comportamento de Gould é matéria da biografia Glenn Gould – Uma Vida e Variações, publicada em 1989 pelo jornalista americano Otto Friedrich e editada no Brasil em 2000.

Friedrich ficou famoso pelos livros A Cidade das Redes: Hollywood nos anos 40 e Olympia: Paris no tempo dos Impressionistas, lançados anteriormente no Brasil. A biografia de Gould permaneceu obnubilada, até porque Impressionismo e Hollywood são assuntos mais chamativos do que a história de um pianista. No entanto, Glenn Gould – Uma Vida e Variações causa mais impacto emocional que os dois outros livros, tanto porque o autor teve acesso a documentos vedados ao público e mergulhou na intimidade do biografado, como morreu em 1995 (aos 66 anos), e o livro sobre Gould não deixa de conter uma reflexão dramática sobre a morte – diante da qual o biógrafo se mostra quase cruel.

"O que realmente importa em qualquer biografia é o que a pessoa pensa e sente, e não aquilo que fez." Friedrich cita esta afirmação de Gould como epígrafe do livro. É o caminho escolhido pelo biógrafo para traçar o perfil "humano" de tão desumana persona. Friedrich, além disso, se empenha em contrariar o projeto controlador do pianista, que chegou a corrigir e fazer uma resenha de uma biografia sobre ele próprio, Glenn Gould, Music and Mind, escrita por Geofrey Paysant. A tese deste biógrafo era de que Gould tinha uma vida privada protegida demais da vista do público, além de "austera e pouco interessante". Por conseguinte, argumenta, um livro sobre sua vida seria breve e chato. O biógrafo cumpriu a promessa, a ponto de Gould ter escrito uma crítica sobre a chatice da biografia. A crer no biografado, o quadro de seus "chatos" anos iniciais foi descrito "de modo algum tão breve quanto deveria ser".

Friedrich prova o contrário. Os primeiros anos da vida artística do pianista foram uma vertigem de sucessos e façanhas virtuosísticas. Aos cinco anos, declarou a seus pais: "Serei um pianista de concertos." Foi apoiado pela família e a carreira se deu de ascensão a ascensão – até a desaparição. Ou nem isso, uma vez que Gould se encarregou de registrar tudo em vídeo e áudio, além de ter deixado papéis pessoais, fotografias, recortes e diários. O material está depositado na Bibloteca Nacional do Canadá, em Ottawa, sob a rubrica de "Coleção Glenn Gould". Friedrich foi convidado em 1986 a fazer a biografia do músico pelo executor do seu testamento, o advogado J. Stephen Pose. O biógrafo teve, então, acesso total à tal documentação disponível. "Talvez o mais notável desses papéis fosse uma variedade de blocos de notas rabiscados, uma enorme quantidade deles", comenta. "Gould jamais manteve um diário de verdade, mas nesses blocos de notas sem datas ele rabiscava tudo que lhe vinha à cabeça – idéias, cartas, rascunhos de entrevistas, revisões de artigos, movimento da bolsa de valores, sintomas médicos, tomadas da sua própria temperatura e a temperatura de diversas cidades do Canadá de acordo com o que era noticiado no rádio nas primeiras horas da manhã."

Se Glenn Gould abominava o cruento ringue das apresentações ao vivo, tinha um apreço especial pelo registro para a posteridade; quis construir o próprio mito no bronze da perpetuidade tecnológica. É quase um programa de criogenia elevado à situação de estética. Um bom exemplo da crença absoluta de Gould nas máquinas falantes está num programa de TV descrito por Friedrich, no qual Gould foi interrogado pelo violinista Yehudi Menuhin sobre a validade de se restringir ao mundo das gravações, algo que havia se tornado um lugar comum na música pop: "Veja os Beatles, que começaram tocando em público espontaneamente", observou Menuhin. "Quando eles chegaram ao ponto de se acostumarem a tantos recursos técnicos, que lhes permitia gravar em vários canais separadamente e juntar tudo depois, acrescentar ou retirar notas, eles já não conseguiam tocar em público, pois o público esperava outra coisa." Gould respondeu: "De uma certa forma, isso também aconteceu comigo." O violinista argumentou que isso não invalidaria os concertos, estes permanecendo como padrão de julgamento de um músico. "Bobagem, Yehudi", disparou Gould. "Foi o padrão até que uma outra coisa veio para substitui-la, que foi exatamente o que a gravação fez; e a gravação com certeza é agora o padrão de julgamento do concerto."

Talvez ele soubesse, como ninguém, que a única via para a glória no século XX deveria ser entregar-se aos imperativos técnicos e estabelecer uma relação indireta com o público. De qualquer modo, seu anátema se cumpriu, pois o padrão de julgamento se tornou discográfico no fim do século XX, até mesmo para a música clássica. Pior, a indústria pop está conseguindo determinar padrões de marketing estranhos à área, como comercializar capas de CDs com fotos dos artistas em poses sensuais e videoclipes com imagens apelativas. Gould pode ser indiretamente responsabilizado por isso.

Para Friedrich, o motivo principal da devoção técnica de Gould estava no desejo de controle. A palavra aparece obsessivamente na correpondência, nos ensaios e nas declarações do músico. Ele queria controlar tudo, apaixonadamente, a ponto de prever as perguntas e as respostas das entrevistas aparentemente espontâneas de seus programas de televisão.

"Foi a necessidade de estar no controle, na realidade, que o levou do palco de concertos ao estúdio de gravação", escreve Friedrich. "E, uma vez no estúdio de gravação, ele tinha de controlar toda a técnica, o lugar dos microfones e a maneria de usá-los, fazer as gravadores virem à sua cidade natal, ao seu próprio estúdio, onde seu próprio equipamento seria o único equipamento, com tudo sob o seu controle."

Desde o princípio, criou para si uma imagem de artista esquisitão. Friorento, vivia de cachecol, dois ou três gorros e casacos superpostos (mesmo no alto verão). Tomava comprimidos compulsivamente, de aspirina a nembutal. Tinha o costume de banhar as mãos em água muito quente para relaxá-las antes de tocar. Sentava-se diante do piano num banco especial, mais baixo, recurso que lhe permitia tocar com as mãos quase à altura do rosto. Ao encerrar a carreira de palco, nunca mais viajou de avião, coisa para ele insuportável. Seu repertório era outra atração especial: desafiou o gosto histórico e gravou, em 1955, as Variações Goldberg, de Bach (seu primeiro grande sucesso discográfico para a Columbia), usando o piano moderno em vez do cravo. Cultuava os antigos – o renascentista Orlando Gibbons, por exemplo – e os modernos. Por longo tempo, desdenhou os autores românticos (ainda que se considerasse "um romântico incorrigível"), além de Beethoven e Mozart. Tendia a acelerar a execução dos autores de que não gostava. Suas interpretações das sonatas de Beethoven, realizadas nos anos 60, são insultos à memória do compositor. Alimentou a imagem do músico brilhante, rebelde e com muita pressa.

A biografia de Friedrich acompanha o músico em seu processo de autocrítica e isolamento ("O isolamento é o componente indispensável da felicidade humana", disse Gould). Os amores secretos são tratados com muita discrição. Segundo uma amiga íntima, Jessie, entrevistada pelo biógrafo, Gould não era homessexual nem assexuado. Mas seu êxtase era musical: "Eu teria pena da mulher que tivesse se casado com ele. Porque, na realidade, ele estava casado com sua música."

Quando a juventude e a pressa se foram, só restou ao artista revisar posições. Gravou românticos – Edvard Grieg (seu parente distante, por parte de mãe), Brahms e Sibelius – e refez as Variações Goldberg. A diferença entre a primeira e a segunda versão está nos tempos e na maturidade da leitura. Onde havia velocidade, ouve-se um certo ralentando melancólico. "À medida que fui ficando mais velho, passei a achar a grande maioria das minhas execuções mais antigas rápidas demais para dar satisfação", declarou, quando do lançamento da segunda leitura das Variações Goldberg. "Com texturas contrapontísticas realmente complexas, há necessidade de uma certa deliberação, e eu acho, para fechar o círculo, que a falta dessa deliberação é o que me incomoda na primeira versão de Goldberg."

Lançado em junho de 1982, foi o seu derradeiro trabalho. Para grande parcela da crítica e do público, a arte de Gould ainda intriga, como se ela não tivesse cumprido seu objetivo: arrancar a música da matéria com que sempre foi feita.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor, como parte das celebrações dos 70 anos de Glenn Gould. Publicado originalmente no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil, a 2 de junho de 2000.

Para ir além






Luís Antônio Giron
São Paulo, 7/10/2002
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