Barack Obama não é um bom político (aquele que se adapta aos tempos e lida bem com as oportunidades na medida em que aparecem, como, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e Lula) mas um inovador, um grande político ― que antecipa oportunidades, que os outros não anteviram, e cria possibilidades que não existiam antes dele. Não pretende apenas implementar programas de governo mas criar novos padrões culturais para o seu país. Aliás, a comparação com Lula ou Evo Morales é de todo descabida. Obama é um escritor, um intelectual, formado em ciências políticas em Columbia, e direito em Harvard, e professor de direito constitucional. Nunca apregoou o antiintelectualismo ou antiacademicismo.
Em seu discurso da vitória, no Grant Park, de Chicago, evocou um único antecessor ― Abraham Licoln (1809-1865), com mandato de 1861 a 1865, quando foi assassinado ― poucos dias depois do término da Guerra de Secessão, que contivera ― no Teatro Ford, de Washington, enquanto assistia a uma peça, pelo ator John Wilkes Booth ― defensor da causa sulista. Licoln era abolicionista. Libertou os escravos. Quando tomou posse, a Carolina do Sul declarou sua independência e foi seguida por mais seis Estados do sul. Esses Estados rebeleram-se contra a abolição.
A Guerra Civil (1861-1865) ocupou todo o mandato do republicano Licoln, que, no entanto, a venceu e impediu o desmantelamento do país, com inflexão conciliatória, de integração.
Depressão econômica
Como afirma Michael Cohen, é equivocada a comparação de Obama com Franklin Delano Roosevelt, John Kennedy, Ronald Reagan ou Bill Clinton ― que para ele é somente "um populista para a classe média". O populismo é degradação da democracia. Por que Obama pretende superar as várias divisões internas dos EUA, entre republicanos e democratas, negros e brancos etc? Porque sem sobrepujar, numa escala ao menos média, o federalismo extremado de seu país, não vai conseguir superar a depressão econômica e a pobreza ― conseqüência, agora, da irresponsabilidade da era Reagan (o Estado é o problema) e de seus sucessores, incluindo-se o neoliberal Clinton ― um democrata do Sul, quase um republicano clássico, com seu Consenso de Washington, e excetuando-se Jimmy Carter.
Obama, em seu discurso da vitória, disse: "não somos inimigos, mas, amigos", referindo-se aos eleitores de John McCain e aos seus e igualmente às divisões raciais, de classe etc. Afirmou também que sem ajuda recíproca os americanos não avançariam o suficiente para sobrepassar a depressão econômica. Obama quer se confrontar com as divisões internas dos EUA, como Licoln.
Sua tarefa não é das mais fáceis. Embora tenha vencido McCain por 349 delegados (27 Estados) contra 163 (21 Estados) do senador do Arizona, este obteve 46% dos votos populares contra 53% do democrata. A divisão é visível, explosiva e se soma à uma depressão intelectual, educacional e social. Milhões de jovens não completam sequer o colegial. Há cerca de 50 milhões de pessoas sem planos de saúde e aqueles que têm não conseguem pagá-lo. Há 30 milhões de miseráveis. As redes sociais foram liquidadas pelo neoliberalismo. A ignorância passou a ser celebrada nos EUA, como observa Bob Herbert. Nos anos 60, a música popular produziu Bob Dylan, Janis Joplin e Jimi Hendrix, além do cool jazz. Hoje, Paris Hilton e Britney Spears são "ícones culturais", segundo ainda Herbert. A programação da tevê ― acrescenta o colunista do Huffington Post ― é a pior do mundo e o americano médio a assiste quatro horas e meia por dia. A brasileira é igual.
Além disso, Obama pretende limitar rigorosamente as intervenções militares de seu país ― que, de 1980 para cá, fez incursões ― quase todas unilaterais, "privilégio" não só de George Bush ― em mais de 50 países. Lembram-se de Reagan em Granada em 1983, para combater a influência soviética e cubana na minúscula ilha caribenha? Ele já deixou claro que seu principal instrumento de trabalho internacional será a diplomacia e sua eleição significa o retorno dos EUA à comunidade de nações. Terá que convencer 46% dos estadunidenses.
Por isso tudo, Obama não deseja apenas governar, mas refundar o país, ao almejar para ele nova unidade cultural e social. Sem essa unidade, não vai sobrepujar a depressão econômica. A "unidade" proposta pelos republicanos foi a do "inimigo" ― uma unidade bélica, que levou o país à bancarrota e à uma cultura de centro-direita muito enraizada. Seu movimento ao centro é um passo enorme. E sua vitória em si ― a de um negro, independente, filho de um imigrante africano e mãe solteira, a de alguém que não pertence à elite econômica ou à uma família tradicional (Kennedy) ― sinaliza que ele tem força suficiente para ser bem-sucedido, em médio prazo.
Voto pouco envergonhado
A mídia impressa brasileira ― uma das mais empobrecidas intelectualmente e uma das mais provincianas do mundo hoje ― insistiu na tese do voto branco envergonhado em McCain até a véspera da eleição. Mas, quem votou ― sem tanta vergonha ― em Barack Obama foi Condoleezza Rice ― segregada, na infância, no Alabama. Rice declarou exultante: "Os americanos não podem estar satisfeitos até que estabeleçam união perfeita", ecoando Obama.
Aliás, falando em mídia brasileira, há que se cumprimentar a Globo News e o Jornal das Dez, ancorado por André Trigueiros ― que fez a mais cosmopolita, informativa e reflexiva cobertura dessa campanha que marcou ― para sempre ― o mundo.
Escrevo de Chicago, onde estamos "lambendo" mais uma cria, mais um neto. Excelente o texto do Regis Bonvicino. As comparacoes com ex-Presidentes americanos estao precisas, e so' loucos varridos pensariam em comparar Obama a Lula, Chavez, Morales, ou Castro. O desafio dos 46% do povo americano e' de fato enorme, e crimes de odio racial cresceram desde a eleicao, o ultimo em New Jersey, nao contra negros mas contra latinos, esta' movimentando a imprensa por aqui. O desafio maior de Obama e' conseguir parar o pendulo no ponto de equilibrio (a medio prazo) sem deixar que ele balance para o outro extremo da curva. Extremismo nao faz bem a ninguem, nao importa qual o extremo... E se ha' alguem capaz de enfrentar tal desafio, atraves de uma politica de uniao, participativa, inclusiva, esse e' Obama, cuja experiencia como organizador politico no sul negro e pobre, aqui de Chicago, e' vital. Fiquei satisfeito de saber que Condoleeza Rice votou como eu, sempre bom estar em boa companhia. PARABENS ao autor!
Condoleezza Rice? Condoleezza estava respectivamente comprando sapatos, assistindo um musical da Broadway e jogando uma partidinha de tenis com Monica Seles em Nova Iorque enquanto New Orleans afundava, não por causa do Katrina, mas por causa da indiferenca criminosa dos neo-liberais republicanos.