Diversos autores na história desistiram da literatura. Publicaram um ou mais livros e definitivamente desistiram da ficção. Caso de Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica (1975), que depois da escrita dessa obra, nunca mais escreveu nada inédito. Publicou o romance Um copo de cólera (1977), livro escrito em 1970, e o volume de contos Menina a caminho (1997), que reúne contos escritos entre 1960 e 1970, portanto, todas as obras que Nassar publicou depois de Lavoura Arcaica, foram escritas antes. É uma biografia no mínimo curiosa.
Outro autor que passou pela mesma síndrome da abstinência literária foi Carlos Heitor Cony, que, depois de publicar Pilatos (1973), ficou 21 anos sem publicar ficção. Gabriel García Márquez, Patrick Sussekind, Bruno Seabra (autor brasileiro do século XIX, totalmente esquecido, que publicou um único romance, Paulo), também são autores que, de uma maneira ou de outra, ficaram anos sem publicar ou simplesmente desistiram de fato da literatura.
No Brasil, talvez o maior exemplo de um autor que tenha desistido da literatura é Diogo Mainardi. Atualmente Mainardi publica semanalmente uma crônica na revista Veja, na qual aborda diversos temas do cotidiano brasileiro, principalmente sua aversão ao governo Lula. Mainardi, antes de escrever sobre política, publicou quatro romances: Malthus (Record, 2006, 96 págs.), Arquipélago (Record, 2006, 128 págs.), Polígono das Secas (Record, 2006, 128 págs.) e Contra o Brasil (Record, 2006, 236 págs.). Neste texto escreverei, caro leitor, sobre os dois primeiros romances, e, na sequência, sobre os dois últimos.
Malthus (1989) é um texto experimental, nem tanto em sua forma, mas em seu conteúdo. Malthus apresenta ao leitor, normalmente perplexo, como escreveu Mário Sabino na orelha da segunda edição do romance, a progressão geométrica da estupidez. É um romance que não apresenta enredo linear e lógico, nem personagens reais. Parece que toda a ação é um delírio do protagonista Loyola y Loyola, que através de toda a narrativa dá golpes em diversos lugares diferentes, e assim não pára em nenhum deles.
O título do romance também causa estranhamento, pois não é um livro que fala sobre o economista do século XIX, mas Mainardi faz aqui uma fina e sutil alusão à sua teoria, que através das atitudes insensatas e grotescas dos personagens, como a D. Robalinho, os magistrados, Ovas Negrão, a colocam em prática, porém, é claro, às avessas. E dessa maneira o breve romance se encerra, sem um aparente significado lógico, mas cabe ao leitor, que deve ficar muito atento à narrativa, pois esta está repleta de armadilhas, descobrir o emaranhado de insensatez da condição humana, pois é disso que trata o romance. Em Malthus, ao mesmo tempo em que Mainardi atinge alto nível em sua narrativa, também peca pelo excesso de experimentalismo, fato que torna o texto maçante em determinados momentos.
Fato que não ocorre no seu livro Arquipélago (1992), segundo romance da série, que apresenta um escritor muito mais maduro, dominando mais a técnica narrativa e muito mais erudito. Apesar do aparente tom de galhofa e deboche do romance, Diogo Mainardi constrói uma narrativa saborosa, à maneira de Swift e Voltaire. É um texto que faz alusão a autores que, de certa forma, em determinados momentos de suas vidas, se encontraram em situações em que foram obrigados (ou não) a desembarcar em ilhas, como foi o caso de Rousseau, no verídico incidente na ilha de Saint-Pierre em 1765, Platão em Siracusa, São João em Patmos e Thomas More, mas More criou uma ilha imaginária em sua Utopia.
O romance é narrado em primeira pessoa, e o narrador-protagonista é um anônimo que juntamente com outros desabrigados encontra abrigo na cúpula de uma igreja, único ponto que não fora submerso depois do desmoronamento de uma barragem de uma usina hidrelétrica. A partir desse incidente o protagonista passa a ver em cada acontecimento do cotidiano na cúpula uma alusão a elementos da história ou da filosofia. Portanto, o protagonista se entrega a uma espécie de ócio criativo, e passa a analisar cada situação em que ele e os seus companheiros desabrigados se encontram, do ponto de vista filosófico de outros autores. E nessa viagem que ele se submete, e submete os outros, vai notando uma aparente falta de sentido naquilo que estão fazendo (alusão à vida real?) e, ao passo em que o tempo vai passando, os desabrigados o elegem legislador da ilha e imploram que o protagonista lhes imponha atividades sem sentido algum, apenas para terem o que fazer.
A narrativa se desenvolve em uma atmosfera onírica, como em Malthus, mas durante sua composição o autor alcançou um nível muito alto dentro da literatura brasileira, e fez de Arquipélago um exemplo de literatura da mais elevada qualidade. Entre alguns capítulos, Mainardi encaixa dentro do corpo do romance pequenos ensaios sobre os filósofos que o livro faz menção, falando assim das suas desventuras nas ilhas pelas quais passaram, ou criaram. E as atitudes do protagonista o levam, dessa maneira, a ser jogado no mar pelos desabrigados insurgentes; em seguida, é deposto e substituído por outro líder, mas, depois de tantos obstáculos, os desabrigados percebem que suas vidas não têm sentido se não o tiverem como líder. É uma alfinetada no mito que foi criado sobre grandes autores da história e o público leitor também, como pessoas vazias e sem pensamento próprio.
No final do romance o protagonista finalmente sai da cúpula numa jangada com outros desabrigados, e dessa maneira tentam alcançar terra firme, mas só o protagonista o consegue, pois os ouros, ao longo da viagem, foram padecendo de formas diversas. O último capítulo aqui é muito significativo, pois resume muitas considerações sobre o romance e sobre o título. Pulando de uma ilha para outra, o protagonista tenta encontrar um lugar que lhe sirva como fonte de análise filosófica e metafísica. Não encontrando nenhum lugar assim (na baía de Guanabara), diz o protagonista:
"Ao sair da baía de Guanabara, iria seguir em direção ao norte, analisando uma a uma todas as ilhas que encontrasse. Não tinha nada melhor a fazer."
Dessa forma se encerra o ciclo do protagonista, mas agora está em terra firme, metáfora que pode indicar o amadurecimento de sua filosofia, e que talvez encontre as respostas que procura. As diversas influências dos filósofos (Rousseau, Thomas More, Platão), cada um simbolizado por uma ilha distinta da outra, dá sentido ao título do romance. É mais um arquipélago de idéias do que de ilhas. E é na busca por essas ilhas, ou por esse arquipélago, que o protagonista anônimo elabora a sua filosofia.
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Muito do que se faz e do que se fala hoje no Brasil, e muito no âmbito cultural, é pura retórica nacionalista, como se tudo fosse sublime só porque "temos que exaltar o que é nosso". A maior parte das idéias prontas que tanto abarrotam as academias brasileiras são desse tipo. De Gilberto Freyre a Antonio Quartin de Morais. Como diria Paulo Francis, "um bando de comunistas limonada".
Depois de analisar os dois primeiros romances de Diogo Mainardi, Malthus e Arquipélago neste texto analisarei os dois últimos, Polígono das Secas (1995) e Contra o Brasil (1998), o melhor dos quatro. Mas, voltando ao ufanismo hipócrita e idiota que definha o nível intelectual dos acadêmicos brasileiros, Diogo Mainardi, com seu terceiro romance, Polígono das Secas, desfere golpes ferozes contra o imaginário nacional tão difundido e idealizado pala literatura regionalista. Como "o povo nordestino é batalhador, sofrido e heróico". Para Diogo, a travessia de Riobaldo pelo sertão mineiro é tratada por todos como se fosse algo próximo às cruzadas. A pobreza é venerada na literatura nacional.
O leitmotiv de Polígono das Secas, e também de Contra o Brasil, é a derrocada de quase todas as teorias e colocações lisonjeiras acerca do Brasil, e o autor quer defender a tese de que tais teorias, ditados e pensamentos não passam de lugares comuns e de clichês nacionalistas estúpidos.
Em Polígono das Secas, um serial killer atravessa o polígono das secas no nordeste brasileiro espalhando por onde passa seu veneno, com o intuito de exterminar todas as mulheres com o nome de Catarina Rosa. Ao longo de sua jornada, o untor (como é denominado por Mainardi), se depara com vários tipos conhecidos na literatura regionalista nordestina, como o retirante que busca melhores condições na cidade grande; o pai que carrega o filho morto nos braços em busca de um enterro decente; o político corrupto e autoritário que manda matar seus oponentes; o pistoleiro que mata por dinheiro. Todas essas figuras são mostradas na literatura brasileira de forma idealizada.
Mainardi, em sua narrativa, além de desmistificar esses estereótipos, zomba de tais figuras, transformando o pai que carrega o filho morto pelo sertão de um pobre herói sofredor em um interesseiro que vende o corpo do filho para o assassino, pois o untor retira parte de seu unto venenoso da saliva de moribundos. (Seria isso uma ironia às nossas commodities?) Transforma o mesmo personagem, que se chama Manoel Vitorino, de um solícito cidadão brasileiro que iria enterrar Catarina Rosa em um necrófilo sem escrúpulos que vai agindo por todo o sertão. E dessa maneira os mitos vão sendo desmascarados por Diogo Mainardi durante toda a narrativa. Também é interessante ressaltar que o narrador, em terceira pessoa, conforme os capítulos vão se sucedendo, vai manifestando sua opinião acerca da literatura nacional, como se fosse um superego de Mainardi.
"Os autores sertanejos tendem a atribuir um significado para cada evento da vida de seus personagens."
E é nessa mesma atmosfera nonsense de Polígono das Secas que Mainardi cria Pimenta Bueno, protagonista de Contra o Brasil. Pimenta Bueno é um sujeito desprovido de qualquer boa intenção e com um repertório farto de impropérios contra o Brasil. Há nesse romance uma lista considerável de citações de vários autores e de personagens da história que estiveram no Brasil e desferiram violentos golpes verbais contra a pátria e o povo tupiniquim. Pimenta Bueno tem o trabalho apenas de citar esses autores (Claude Lévi-Strauss, Charles Darwin, Evelyn Waugh), e de manifestar sua sórdida, para seus interlocutores, opinião.
É interessante quando Pimenta Bueno pergunta a qualquer um de seus interlocutores se conhece tal autor, a resposta é sempre a mesma: "não". Diogo, com isso, zomba da ignorância dos brasileiros de um modo geral, com uma tristeza, certamente, mas com muito bom humor.
A trama de Contra o Brasil começa quando Pimenta Bueno, herdeiro de um cinema abandonado, agora lar de mendigos, ateia fogo à sua antiga propriedade e foge para o interior do Brasil. Chegando em Mato Grosso, decide realizar o mesmo trajeto feito por Strauss na década de 30, através da linha telegráfica de Marechal Rondon. O objetivo de Pimenta Bueno é chegar à tribo dos nambiquara, e é o que acontece. Mas o que ele encontra é bem diferente do que estava procurando. Em vez de nambiquaras primitivos, como aqueles com os quais Strauss havia convivido e estudado, encontra uma tribo de índios assimilados e submissos, que se submetem a todo tipo de capricho e de canalhice impostas por Pimenta Bueno.
Nessa sua passagem pela tribo dos nambiquara, Pimenta Bueno pretende desenvolver a tese de que os brasileiros não têm identidade. Os índios nambiquara, que ele imaginava serem os últimos índios ainda selvagens, já não o eram. Na tribo já havia várias das características comuns na sociedade civilizada, como a prostituição, corrupção, ignorância e promiscuidade. A tribo na qual Pimenta Bueno vive por algum tempo funciona como uma espécie de microcosmo do Brasil, com todas as suas deficiências e mazelas morais.
A diferença de um Pimenta Bueno para um Macunaíma é que Pimenta Bueno, também herói sem caráter, não se esconde atrás de figuras nacionais feitas; ele mesmo procura, de forma direta, se autodestruir. Ele prova que todas suas imprecações contra o Brasil estão corretas, pois ao longo de sua jornada se depara com a ignorância, com a corrupção, com o comodismo do povo em geral, representado pelos mendigos do cinema, pelos índios e pelos parentes de sua mulher, Lavínia.
Um elemento interessante em Contra o Brasil, e que difere dos outros romances de Mainardi, é a sua forma. Todo o texto tem a forma de texto dramático. As falas dos personagens não são designadas por travessões, aspas ou pelo discurso indireto, mas pelo nome do personagem que fala. São rubricas que compõem todo o romance. O efeito que Diogo Mainardi buscou com essa forma curiosa foi a ironia. Foi mais um artifício que ele encontrou para zombar do leitor, como não podia ser diferente. Muito bem aproveitado, por sinal, e que reforça ainda mais aquela atmosfera nonsense presente em toda narrativa e em seus outros romances.
Mais do que o narrador onisciente de Polígono das Secas, Pimenta Bueno parece ser de fato o superego de Diogo Mainardi, mas só no que concerne às injúrias e difamações contra o Brasil e seus mitos ufanóides. De forma alguma em relação ao seu caráter. É uma pena que Diogo Mainardi tenha desistido da literatura. Prometeu nunca mais escrever sequer uma linha de ficção. Isso já faz dez anos. Mas esperemos que o seu superego, Pimenta Bueno, o faça voltar atrás e simplesmente ignorar tudo o que disse. Afinal, Diogo também é brasileiro.
Olá. Também gosto muito do mau humor do Diogo. Porém, dizer que romance experimental é chato, é muito genérico, muito vago. Há grandes romances experimentais que são verdadeiras obras-primas, como "Tristram Shandy", do Sterne; ou "Mrs. Dalloway", de Virginia Woolf; o "Ulysses" do Joyce também é experimental, muitos livros do Kafka e por aí vai. Diogo tentou um experimentalismo em "Malthus" mas acabou se perdendo. Ele alcançou a excelência literária nos livros que vieram posteriormente. "Contra o Brasil", por exemplo, é experimental, mas nesse livro Diogo já dominava a técnica narrativa e praticou, sem enfeites estúpidos e delongas, ficção da mais alta qualidade. Muito obrigado pelo comentário. Um abraço, Daniel Osiecki
Daniel, você é parente dele ou o próprio, para perder tempo com isso? Mainardi só sobrevive pelo apadrinhamento de duas mídias da comunicação. Romances de Mainardi... valha-me Deus. Tão constrangedor quanto as fotos dele depredando um banco ou sei lá o que, em que ressaltou-se suas botinhas de grife e seu rolex...
Olá, Charlles Adriano. Só agora li seu comentário no Digestivo Cultural sobre meu artigo sobre os livros de ficção de Diogo Mainardi. Bem, primeiramente, não sou o Mainardi. Segundo, ler e escrever sobre seus romances não foi nenhuma perda de tempo, e sim uma agradabilíssima surpresa. Outra coisa, o Diogo não é mais apadrinhado do que grande parte de escritores brasileiros, como Chico Buarque, Luis Fernando Verissimo, que por sinal são ruins de fato, Daniel Galera, Fabrício Carpinejar e também muitos cineastas, como Walter Salles, Luís Fernando Carvalho e outros defensores de Che Guevara. Você deve ser uma daquelas pessoas que professam interesse em defender a tese de que Diogo Mainardi é um frustrado que quer ser o Paulo Francis e o Ivan Lessa. Cara, essa é velha. Mude um pouco esse seu discursinho pseudo-intelectual, aceito e válido apenas dentro de salas de aula entre estudantezinhos universitários metidos a comunistas. Mas, mesmo assim, valeu pelo seu comentário.