35 anos do Clube da Esquina | Rodrigo James

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Segunda-feira, 4/5/2009
35 anos do Clube da Esquina
Rodrigo James
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Foto de Haroldo Kennedy

Se fosse possível resumir em uma só palavra o processo de criação do disco Clube da Esquina, ela seria "amizade". Foi esse o sentimento que norteou não só os músicos, mas todos os envolvidos em um dos mais importantes álbuns da história da música popular brasileira e que fez com que ele conseguisse atingir um status de vanguarda e criatividade inédito até então.

A história do Clube da Esquina começa ainda na década de 60, quando um jovem cantor e compositor de Três Pontas/MG, Milton Nascimento, resolve se mudar para o Rio de Janeiro, sua terra natal, em busca de melhores condições para desenvolver seu trabalho, depois de uma breve temporada em São Paulo. Àquela época, Milton já era figura conhecida na noite de Belo Horizonte, em razão de seu trabalho como crooner em diversos conjuntos e por percorrer os caminhos dos "bailes da vida" arduamente. Mas por que o Rio de Janeiro? Milton havia classificado três canções ("Travessia", "Morro Velho" e "Maria minha fé") no 2º Festival Internacional da Canção; além do mais, toda a indústria fonográfica brasileira estava concentrada na capital fluminense. Movimentos importantes, como a Bossa Nova, haviam saído dali para o mundo, chamando a atenção para a cidade, de todos os que faziam música na época. Era importante para qualquer músico estar lá, vivenciar sua ebulição musical e trilhar o caminho natural para dentro dos estúdios de gravação. Para um talento sem limites como Milton, esse caminho era mais natural ainda e poderia levá-lo não só aos estúdios do Rio de Janeiro, como aos do exterior. Isso e a vontade de fazer história com sua música fizeram com que o prestígio de Milton, dentro dessa mesma indústria fonográfica, crescesse a cada dia, contribuindo para que ele pudesse dar um passo além, idealizando o álbum Clube da Esquina.

Ao mesmo tempo em que projetava sua vida para o futuro no Rio de Janeiro, Milton Nascimento não se esquecia de suas origens mineiras e sempre voltava a Belo Horizonte para revê-las e, eventualmente, voltar ao mundo musical da cidade. Na capital mineira, Milton havia sido apresentado aos irmãos Borges, de quem se tornara uma espécie de irmão de criação. Milton aproximou-se principalmente de Márcio Borges, que se transformou em seu companheiro de noitadas regadas a muita música, cinema, discussões infinitas sobre o mundo e de uma vontade de fazer com que tudo isso tivesse um significado maior em suas vidas. Ao mesmo tempo em que essa amizade com Márcio crescia, Milton a dividia entre os demais irmãos Borges, principalmente com o jovem Salomão, apelidado de Lô, que, no auge de sua adolescência, já dava sinais do grande músico que viria a ser. Impressionado com o talento de Lô, Milton começou a fazer algumas músicas junto com ele e a gravá-las em seus discos. Foi assim que, hoje, clássicas canções como "Para Lennon e McCartney", "Alunar" e "Clube da Esquina" foram registradas no disco Milton, que ele lançou em 1970, sempre com o parceiro Márcio Borges fazendo as letras e participando de uma maneira ativa dessas composições.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, surgia um grupo que, num futuro bem próximo, se tornaria o embrião musical do disco Clube da Esquina, o Som Imaginário. Formado pelo núcleo Robertinho Silva (bateria), Wagner Tiso (teclados), Luíz Alves (baixo), Tavito (violão), Laudir de Oliveira (percussão) e Zé Rodrix (teclados, voz e flauta), o Som Imaginário era essencialmente um grupo de rock progressivo, mas com influências jazzísticas e de bossa nova. A banda havia sido formada no ano de 1970 para o espetáculo Milton Nascimento e Ah! O Som Imaginário, que fez um enorme sucesso, dando um impulso à carreira de Milton e resultando no disco Milton, gravado no final daquele ano. Antes disso, o show ― inicialmente planejado apenas para o Rio de Janeiro ― passou por São Paulo e Belo Horizonte. O sucesso dessa empreitada animou a chamada "turma de Minas" a tentar alguma sorte no Rio de Janeiro. Vários músicos se mudaram para a cidade em busca da tal efervescência cultural. "O Som Imaginário se tornou uma espécie de porto seguro para o pessoal novo, que estava chegando de Minas", lembra Wagner Tiso. E todos eles viam em Milton Nascimento o elemento aglutinador de tudo isso.

Lô Borges não se lembra ao certo a data, mas, segundo seus cálculos, deve ter sido entre 1970 e 1971, após esse período com o Som Imaginário, que Milton foi a Belo Horizonte para lhe fazer um convite. "Naquela época, eu era um jovem que ficava na esquina da minha casa tocando violão. Eu era o animador da história. Nós não éramos sócios de clube algum, somente ali daquele 'clube da esquina'. Eu já compunha e o Milton já havia gravado algumas músicas minhas. Isso também ajudou a impulsionar muito a carreira dele; então ele veio a Belo Horizonte, me procurou na esquina e disse que queria fazer um disco comigo. Queria fazer um álbum duplo, mais ou menos metade das composições minhas e metade dele. E que ele ia brigar dentro da gravadora porque era um projeto diferente, ninguém me conhecia, mas ele estava afim de fazer", diz, relembrando o momento em que tudo começou. E realmente Milton tinha razão. Àquela época, não era comum se fazer um disco duplo. Apenas Gal Costa havia se aventurado no formato. Mas Milton estava decidido e, com o convite aceito, foi à Odeon, sua gravadora na época, convencer o diretor artístico Milton Miranda ― um dos homens fortes da gravadora, conhecido por dar liberdade aos artistas ― de que aquele álbum precisava ser feito. A ideia foi muito bem aceita pela gravadora, que deu liberdade total para Bituca iniciar o processo. Afinal, ele já gozava de um enorme prestígio dentro da Odeon e era adorado por todos, em especial por Miranda, que via nele um grande talento e uma aquisição de altíssimo nível para seu cast.

O próximo passo era "importar" Lô Borges para o Rio de Janeiro, para que ele ficasse próximo de Bituca e de toda movimentação em torno da produção do disco. Mas Lô tinha uma exigência a fazer: levar também seu amigo Beto Guedes. "Eu falei pra ele: Bituca, eu vou comprar a encrenca com a minha família, mas eu tenho que levar o Beto Guedes. Eu tenho que levar alguém da minha geração, que gosta das mesmas coisas que eu. Daí fomos na casa do Beto pedir a mão dele em 'casamento' para a família dele. E eles aceitaram numa boa. O Beto, na época, ainda não havia começado a compor, mas era um músico excepcional e gostava de ouvir as mesmas coisas que eu", recorda Lô. Os dois garotos haviam terminado de cursar o colegial e estavam decidindo se iam prestar vestibular e para quê. Aproveitando o convite de Milton e o fato de que haviam classificado a canção "Feira Moderna", uma parceria com Fernando Brant, no 5º Festival Internacional da Canção, muniram-se de seus violões, boas doses de música nas cabeças e em seus corações e foram morar com Milton Nascimento em seu apartamento no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, para vivenciarem de perto a tal "cena musical carioca". Assim, se tornaram uma espécie de parceiros permanentes de Bituca, indo com ele para onde quer que ele fosse.

Depois de algum tempo, Milton percebeu que a criação do disco precisava de um algo mais, que nem mesmo o Rio de Janeiro e toda sua ebulição poderiam proporcionar. Precisava de um local mais tranquilo, onde nada o atrapalhasse. Além disso, um local afastado viria a calhar, já que ele havia enfrentado alguns problemas com a polícia, em função de ser um artista popular, em uma época de repressão, ocasionada pela ditadura vigente no país. Foi então que resolveu alugar uma casa na praia de Piratininga, em Mar Azul, Niterói/RJ, para onde se mudou com Lô, Beto e seu primo e fiel escudeiro Helson Romero de Campos Souza, o Jacaré. Ronaldo Bastos também estava sempre presente na casa de Mar Azul. Quase todos os dias chegava Ronaldo em seu fusca branco, às vezes sozinho, outras acompanhado de amigos, entre os quais os fotógrafos Ronaldo Gorini, e Cafi. Ali, à beira do mar, encontraram a paz ideal para criar as músicas que viriam a fazer parte do disco Clube da Esquina e começaram a arregimentar os demais músicos e letristas que fariam parte do processo.

Um deles, Fernando Brant, não chegou a conhecer a casa, mas trabalhou nas letras do disco em Belo Horizonte. "Eu trabalhava na época e não podia ir, mas eles sempre vinham aqui (em Belo Horizonte) e fazíamos reuniões para conversar sobre o disco. Geralmente essas reuniões eram no Saloon, um dos bastiões da boemia mineira na virada da década de 1960 para 1970", relembra ele. Fernando já era um parceiro permanente de Milton e, juntos, haviam feito a canção que projetou Bituca para o mercado mundial: "Travessia". A partir daí, uma das parcerias mais frutíferas da MPB se iniciou e com ela, uma infinidade de clássicos: "Sentinela", "Beco do Mota" e "Rosa do Ventre(M)".

Quando chegou a hora de compor as músicas para o Clube da Esquina, Milton sabia que podia confiar em Fernando e entregou a ele as canções: "Saídas e Bandeiras", "San Vicente", "Ao que vai nascer" e "Pelo amor de Deus". Lô Borges também embarcou na confiança de Milton e em parceria com Fernando compôs uma das canções mais emblemáticas do disco e que se transformaria na marca registrada não só dele, mas de toda a música mineira: "Paisagem na janela", de cuja história Fernando se recorda muito bem: "A história dessa música começou na casa dos meus pais, em Belo Horizonte. As pessoas acham que ela foi feita com base em paisagens de Diamantina ou aqui na minha casa, no bairro Cachoeirinha, mas é no bairro Funcionários, em Belo Horizonte mesmo. A janela lateral da letra está lá e a igreja que eu via era a Igreja de Lourdes".

A censura era uma preocupação dos letristas no início da década de 70 e Fernando tinha que encontrar formas de driblá-la: "'Ao que vai nascer' teve problema com a censura, mas 'San Vicente' passou batido. O Bituca fala que, por causa dessa música, a casa dele virou uma espécie de consulado latino-americano da música. A letra dela fala da América Latina e de tudo que acontecia por lá, mas eu consegui colocar de uma maneira mais amena. Já 'Ao que vai nascer' tinha uma parte em que eu falava algo como o 'Brasil é o país do futuro'. O próprio pessoal da Odeon me aconselhou mudar e eu mudei, mas consegui passar a mensagem assim mesmo".

Márcio Borges também desempenhou um papel fundamental na história do disco. Além de um dos letristas prediletos de Milton Nascimento durante toda sua vida, Márcio era o amparo para o jovem Lô Borges, que via em seu irmão e Bituca as figuras em que ele podia e deveria se apoiar. Dessa parceria frutífera, surgiram algumas canções bastante fortes: "Tudo que você podia ser", "Um girassol da cor do seu cabelo", "Estrelas", "Os povos" e "Trem de doido". Canções que nasceram de uma forma simples e complexa ao mesmo tempo e são retrato de uma união familiar tão fundamental para que tudo aquilo acontecesse. "Tínhamos um espírito gregário, que nos impulsionava a ficarmos juntos. Gostávamos de estar juntos porque gostávamos tanto da influência que uns exerciam sobre os outros quanto de exercê-las", diz Márcio sobre o clima que reinava. Sobre seus temas, Márcio confessa que não gosta de escrever sobre o amor: "Não sobre essa forma de amor popular, esse amor eu-você. Sempre procurei evitar ao máximo, a não ser quando eu esteja falando diretamente para uma pessoa, como é o caso de 'Um girassol da cor do seu cabelo', feita para minha namorada na época. Mas prefiro dar pinceladas mais abstratas na música".

Já o carioca Ronaldo Bastos conheceu Milton Nascimento no Rio de Janeiro depois de ter se encantado com uma música dele ― "Canção do Sal" ― presente num disco de Elis Regina. A amizade foi instantânea, e Milton rapidamente incorporou Ronaldo ao grupo que mais tarde viria a ser chamado de Clube da Esquina. "Eu via aquilo como uma família e sabia que compor era o que eu queria fazer; e que eu podia 'aparecer' fazendo aquilo". A primeira canção que os dois fizeram juntos foi "Três Pontas", e logo depois vieram "Amigo, Amiga", "Rio Vermelho" e as canções que seriam incluídas em Clube da Esquina: "Cais, Cravo e Canela", "Um gosto de sol" e "Nada será como antes". Ronaldo também participou do disco fazendo letras para duas músicas de Lô: "Nuvem cigana" e aquela que ele mesmo considera sua música mais perfeita: "Trem Azul". "Me lembro que fiquei trancado num quarto de empregada fazendo a letra de 'Nada será como antes até terminar'. Trocava muitas ideias com o Beto, que era quem estava disponível". Já a letra de "Trem Azul" foi feita com base em uma viagem de trem da Holanda para Paris, apesar de muitos acharem que o tal trem é em Minas Gerais.

Além de compor, Ronaldo desempenhou um outro papel importante na história do disco: a de produtor. "Eu fui um dos produtores do disco. Eu tenho uma escola de produção conceitual, não sou músico, engenheiro de som, mas aprendi a ter uma presença de estúdio. Minha função era estar ali, aquela figura do produtor. O Milton me delegou essa função numa reunião na casa dos pais do Fernando, em BH. Ele virou pra mim e disse 'agora é com você'".

Todas as pessoas envolvidas na produção do álbum Clube da Esquina se lembram, com muito carinho, do período em Mar Azul e da música que ali estava sendo criada, em especial da melodia de "Clube da Esquina nº 2", que se tornou uma espécie de marca do período. A música era executada durante horas e horas dentro da casa, na varanda, no terraço, à exaustão. Os dias na casa de Mar Azul eram longos e extremamente proveitosos. Nos intervalos, os músicos iam para a praia tomar sol, nadar e buscar inspiração na imensidão do Atlântico, para mais algumas notas musicais. Muitos dos outros envolvidos iam para lá, dormiam algumas noites para entrarem no clima do disco e das músicas, mas voltavam para seus afazeres. Apenas Milton, Lô, Beto, Ronaldo e Jacaré estavam lá o tempo todo, apesar de Lô ir sempre a Belo Horizonte visitar sua família. Por isso, segundo ele, algumas canções foram feitas em Belo Horizonte mesmo. Outras pessoas ligadas ao grupo, como Paulinho da Viola, também visitaram a casa da Família Borges em Belo Horizonte. Ronaldo Bastos relembra o fato: "Existia uma história de trazer o Paulinho para a turma, mas acho que ele ficou assustado com aquilo tudo (risos)".

Beto Guedes se lembra com carinho do período em Mar Azul: "Foi uma experiência muito bacana. O Lô e o Milton estavam compondo, terminando as músicas do Clube da Esquina. Eu não compunha nessa época. Basicamente, o Lô me chamou de companhia mesmo, porque a gente era amigo. E eu ficava lá, curtindo o mar azul, a praia, aquelas manhãs maravilhosas de sol. Cada manhã de sol bonita naquele lugar! E fiquei acompanhando o trabalho deles. Ficava conversando, brincando. Aparecia o Ronaldo, o Marcinho. O Jacaré, de Três Pontas, também morava lá uma época. Foi uma coisa sui generis, que eu nunca vi ninguém fazer. Ficar ali trabalhando e preparando um negócio especial".

Jacaré, o primo de Milton, participou ativamente desse processo, não só por morar com Bituca no Rio de Janeiro, nessa época, mas por também ter se mudado para Mar Azul. E é quem tem as lembranças mais precisas da casa: "Era uma casa de vidro. Quer dizer, não era toda de vidro; tinha um quarto que a gente gostava muito de ficar nele, que tinha janelas de vidro. E esse quarto não tinha cortina. Você tinha o mar na tua frente. Chegava a noite, a gente ia para esse quarto e apagava a luz, cada um tocando sua viola e admirando aquele marzão na frente. E ali é que eu imagino que eles criaram muitas músicas. O que veio de sensibilidade para eles criarem!".

O fotógrafo Ronaldo Gorini, o Peninha, é o único que possui o registro fotográfico da época em que os músicos se instalaram na casa de Mar Azul. Sobre aquele período, Gorini tem boas lembranças: "Foi Ronaldo Bastos, meu vizinho nos anos 60, num prédio em Botafogo, no Rio de Janeiro, quem me levou a participar do Clube da Esquina. Depois veio a convivência com Lô Borges e Toninho Horta, com quem eu dividia um apartamento na Travessa Santa Leocádia, uma ladeira simpática de Copacabana, início dos anos 70. Ali já pude curtir muitos sons harmoniosos do piano maravilhoso do Toninho e suas guitarras. Mais tarde mudei-me pra Santa Tereza, um casarão maravilhoso de outro grande amigo/irmão de todos nós, o arquiteto Pedro Cascardo. Como Ronaldo também morava lá, não deu outra: novas canções iam surgindo e eu acompanhando essa rapaziada, que viria a ocupar lugar de destaque na nossa MPB. Márcio Borges era nosso vizinho e isso favoreceu ainda mais a formação de um QG, no Rio, da mineirada e outros artistas. Nessa época, aconteceu a temporada em Mar Azul, Piratininga, praia oceânica de Niterói: Lô, Beto Guedes, Ronaldo, Bituca e outros amigos trabalhando, fazendo sons e canções. E eu fotografando e ouvindo tudo acontecer no terraço estrelado. Que som"!

A vida em Mar Azul durou aproximadamente um ano e, ao final desse período, era chegada a hora de partir e rumar para o Rio de Janeiro com um objetivo: registrar em disco tudo o que havia sido composto ali. A convivência na casa e as idas e vindas de todos os que iriam participar do disco resultaram num fortalecimento dos laços de amizade que se formaram e que foram fundamentais para o andamento do processo. O local escolhido para o registro foram os estúdios da Odeon, no Rio de Janeiro. Nivaldo Duarte, técnico de gravação do disco, se lembra dos primeiros momentos: "Eu não me lembro se a tabela de marcação de horários de gravação no estúdio já tinha escrito Clube da Esquina ou se ainda era Milton Nascimento. Eu sei que nós, os técnicos, quando chegávamos e olhávamos a tabela, sempre tínhamos uma impressão sobre como iria ser a sessão. E quando víamos Milton Nascimento marcado, todos gostávamos. Era o 'Mito Nascimento', como eu gostava de chamá-lo".

No início da década de 70, quando o disco foi gravado, o que existia de mais moderno em se tratando de equipamentos de estúdio no país era o que estava disponível para a gravação de Clube da Esquina: gravação em rolo, em dois canais, sem mixagem ou masterização. "A gente usava fita magnética, gravava e ia gravando as outras tracks por cima, num complicado sistema de superposição de áudio. Era playback por cima de playback. Cada vez que copiávamos para uma outra fita para podermos encaixar mais uma track, perdia-se um pouco a qualidade sonora, mas a gente gravava assim mesmo". A explicação de Nivaldo Duarte pode parecer um pouco técnica, mas é necessária para se entender o contexto em que o disco foi feito. Tudo era muito artesanal e costurado nos mínimos detalhes. Se Clube da Esquina fosse gravado hoje, em sistemas digitais multitracks, seria bem mais fácil encaixar instrumentos, equalizá-los e trabalhá-los melhor individualmente, mas no início da década de 70 o processo era bem mais rudimentar e exigia bastante dos músicos. Não havia muito espaço para erros. Nivaldo continua: "A gente começou a ver um bando de garotos entrando no estúdio. Daí eu ficava olhando e me perguntando: 'Quem são estes garotos? Tudo de calça jeans e tênis!'. Ficava brincando, também: 'Olha os caras de tênis sujos aí!'". O clima de amizade foi então transferido para o momento de gravação propriamente dito. Era comum um, dois ou três músicos estarem tocando e o resto da "turma" do outro lado do "aquário" observando, dando palpites, de uma maneira harmônica, interferindo sem interferir.

Parecia que todos sabiam o que deviam fazer e onde estavam os limites dessa interferência. Um trabalho bastante coletivo, como todos os envolvidos gostam de ressaltar. Havia poucos papéis definidos, e todos eram livres para se envolverem no que quisessem. Graças a isso, Beto Guedes, Lô Borges e o guitarrista Toninho Horta ― antigo companheiro de Milton desde Belo Horizonte e conhecido por seu virtuosismo ― se aventuraram em instrumentos que não eram os seus, como percussão e baixo. Robertinho Silva também se lembra dessa característica de liberdade: "Tínhamos total liberdade, podíamos exercer a criatividade, não havia imposição. Então tudo que eu sabia de ritmo, eu empregava ali. Foi uma conquista assim, uma troca de experiência, tudo muito bem cuidado. As pessoas dizem que eu sou um baterista diferente. Mas foi por causa dessa música que eu me tornei diferente. Adquiri até um estilo através da música mineira".

Nivaldo também se lembra de alguns momentos marcantes da gravação do disco: "O Milton tocou 'Clube da Esquina nº 2' sozinho no estúdio, só com voz e violão. Tocando maravilhosamente. Depois fomos colocando os outros instrumentos e criando aquela atmosfera maravilhosa. Já em 'San Vicente' aconteceu uma coisa engraçada, uma interferência minha. Minha esposa tinha família numa cidade do interior de São Paulo chamada São Vicente e quando eu ia esperá-la no ponto de ônibus, voltando de lá, ficava ouvindo um sino de uma igreja perto. Daí, na minha cabeça, o nome 'San Vicente' era ligado a barulho de sinos. Sugeri então ao Wagner Tiso que colocássemos um sino ao final da música, aproveitando um carrilhão que havia sido alugado pela Odeon para outra gravação. O Wagner gostou da ideia e mandou trazer o sino para ver se estava no tom certo. E por um destes milagres, o sino estava exatamente no tom da música. O resultado está lá no disco".

O Som Imaginário acabou sendo a banda base de gravação do disco e Wagner Tiso um dos responsáveis pelos arranjos de base. As bases instrumentais propriamente ditas eram feitas pelos músicos. Os arranjos de orquestra foram feitos por Eumir Deodato, com exceção de "Nuvem Cigana", que foi feito por Wagner, que relembra o episódio: "Quando definimos o repertório, eu falei para a turma: 'se quiserem, eu posso fazer as orquestrações'. Mas o Bituca já tinha se apalavrado com o Eumir. Nas músicas do Lô, como em "Girassol", ele me pediu ajuda para ir na casa do Eumir mostrá-las. Ele estava inseguro. Daí eu escrevi as cifras, fomos lá e mostramos para ele. O Eumir anotou tudo e pronto. No caminho, eu convenci o Lô que eu poderia fazer alguma orquestração. Ele reservou para mim, então, a "Nuvem Cigana". Eu já havia feito outras orquestrações, mas essa foi a primeira com Milton e a turma do Clube da Esquina. Fiz a orquestração com o Lô na casa do Paulo Moura. Anotei a harmonia, dei umas ideias e fiz como achei que deveria ser".

Wagner Tiso também conta um fato curioso, ocorrido durante a gravação de "Trem Azul": "Nesta música, eu toquei órgão e no final, quando a música estava terminando, eu fiquei com a impressão que íamos gravar de novo e fiz uma brincadeira no piano. Acontece que não regravamos, o pessoal gostou da brincadeira e a brincadeira está lá no disco até hoje. Uma espécie de erro que deu certo". É também nessa música que está um dos solos de guitarra mais famosos da música brasileira, de Toninho Horta, que foi gravado quase de primeira: "Eu fiz um solo na hora em que foi gravada a base. O Wagner e o resto do pessoal gostaram, eu fiz mais um e foi este que ficou. Na época eu não tinha muita técnica, misturava notas soltas, terças, oitavas e quartas. Fiz um solo diferente que agradou. Fiquei muito entusiasmado com aquilo tudo, parecia que eu estava querendo contar uma história no solo, de acordo com a musicalidade dele", relembra Toninho. Além do solo de "Trem Azul", ele participou de outras faixas do disco como músico convidado, ajudando a organizar as músicas, a ordem delas, as levadas, a formação das bases e das músicas propriamente ditas. Posteriormente, Toninho chegou a integrar o Som Imaginário, graças à convivência com os músicos do grupo nesse período.

Lô Borges também se lembra da gravação de Clube da Esquina como uma grande responsabilidade. Afinal, ele era o garoto convidado por Milton para dividir um disco e, de repente, estava ali em meio a todos aqueles músicos gabaritados, reconhecidos até no exterior. "Eu ficava no estúdio o tempo todo. Dava palpite total nas minhas músicas. Eu apresentava as músicas no estúdio, dizia como achava que deveria ser o arranjo da base, o baixo, a bateria e quando todo mundo pegava, íamos gravar. Era uma responsabilidade enorme. Me lembro da gravação de "Um girassol da cor do seu cabelo", em que havia uma orquestra, regida pelo Paulo Moura, com arranjo do Eumir Deodato. E eu lá, no piano, fazendo a marcação para a orquestra. Eu nunca tinha lido uma partitura! E consegui fazer tudo direitinho. Se errasse, derrubava todo mundo. Se não me engano, não teve repetição, foi de primeira. Me lembro também de estar no estúdio sozinho tocando algum instrumento com a Alaíde Costa, aquela mulher maravilhosa que participou de 'Me deixa em paz'. Imagina eu, aos 17, 18 anos, no estúdio com aquela mulher maravilhosa!".

Beto Guedes é outro que olha para trás e não se cansa de ressaltar a importância que o processo de confecção do disco teve em sua vida: "Eu lembro que eu toquei bastante naquele disco. Toquei contrabaixo, bateria, guitarra, percussão. Acho que eu toquei em 20 faixas, das 21 do disco. O Milton me convidou para fazer um vocal em "Nada será como antes", que foi uma coisa muito importante pra mim". Já Rubinho Batera, convocado por Milton para dividir as baterias com Robertinho Silva, se lembra bem mais do clima do que de detalhes: "O Milton era muito assim: 'Olha, não gostei disso. Então eu acho que a rapaziada tá meio cansada. Hoje eu não vou...' Isso era um cuidado que ele tinha. 'Aquilo não ficou bom, vamos deixar pra amanhã, gente?' A gente parava, no dia seguinte a gente fazia e ele gostava. Então foi um trabalho muito bem realizado. E nessa gravação do disco aconteceu muito disso. Acho que isso influiu muito no trabalho do Milton".

O guitarrista Nelson Ângelo, ao se lembrar dessa época, prefere se centrar na descontração de todo aquele período: "Nada era muito ensaiado; é claro que, para falar 'gravando', a gente já tinha tocado a música muitas e muitas vezes antes, mas às vezes também não. A gente sentava de frente um pro outro, ouvia aquilo ali, olhava, olhava... E na segunda passada já estava todo mundo tocando, invertendo o acorde, fazendo outro som, buscando o efeito no instrumento. Foi um trabalho coletivo maravilhoso que aconteceu. Aí vinha a facilidade do Milton com aquele vozeirão! Houve uma generosidade muito grande por parte do Milton, que misturou sua própria carreira com a dos amigos convidados. Ele sempre valorizou muito a sonoridade humana. Eram muitas pessoas cantando. E nunca houve censura de nada, nem de ninguém. Mas sempre com muito cuidado para aquilo sair bonito e musical". Tavito também tem lembranças desse clima de harmonia e amizade: "Esse disco é uma experiência única na minha vida. Na época, era um grupo muito unido e feliz. Gente de muito talento que ia pro estúdio fazer coisas novas. O que importava era a música. Eu nem me lembro de como fomos remunerados. Claro que fomos, mas isso não era o que mais importava, porque era uma coisa secundária; em primeiro lugar vinha a música, a amizade, o prazer em tocarmos juntos. Tenho muito orgulho de ter participado dessa torrente de criatividade".

Toninho Horta tem boas recordações da gravação do álbum Clube da Esquina. "Da preparação do disco em 'Mar Azul' não pude participar; eu já era um músico de estúdio e, na época, estava gravando, tocava com a Gal (Costa) e com a Elis (Regina). Mas o Ronaldo falou: 'Você tem que ir lá'. Na véspera de iniciar a gravação do disco, cheguei na casa com o Ronaldo, num fusquinha branco. Eram muitas pessoas no estúdio, e o que foi marcante na gravação do disco foi a liberdade que todo tínhamos. Porque o Wagner já era considerado o grande maestro da turma, ele dava aquele retoque pra todos os arranjos e orquestrações. Eu participei muito dos arranjos de base. O Milton chegava no estúdio e dizia qual música seria gravada. Quem estava ali na hora ia 'passar a música'. E gente dava ideia aqui, outro dava ideia ali, e a música ficava pronta. Era tudo muito espontâneo. Várias vezes já cheguei e a coisa já estava pronta, então eu pegava um caxixi, fazia uma percussão. Tudo acontecia de uma forma muito livre, e resultou numa obra original. Clube da Esquina foi uma grande felicidade. O repertório todo de alto nível musical, e com aquela pulsação da juventude e de várias influências musicais. A junção disso tudo é a riqueza do Clube da Esquina".

Enquanto nos estúdios da Odeon, Clube da Esquina estava sendo gravado, fora dali um outro processo estava sendo deflagrado: a criação da capa, que também se tornou um marco na época, por não trazer o nome do disco nem dos artistas estampados nela. Tanto a foto como o projeto gráfico foram de Cafi, ao contrário do que ficou marcado no senso comum, que o credita como fotógrafo apenas. Na verdade, Cafi havia sido convidado para fazer umas fotos para um disco que não se sabia como se chamaria. Nesse processo, fez fotos em Mar Azul, nos estúdios da EMI, foi a Belo Horizonte e fotografou dezenas de pessoas indicadas por Milton e os demais membros do Clube. A ideia era fotografar muita gente e incluir todas aquelas pessoas no disco de alguma forma. Além de Cafi, outro fotógrafo, Juvenal Pereira, também participou desse processo, retratando pessoas que tinham algum tipo de relação com membros do futuro Clube.

Terminado esse processo, Cafi e Ronaldo Bastos deram uma passada na fazenda dos pais de Ronaldo, em Friburgo/RJ. Na volta para o Rio de Janeiro, encontraram aqueles dois meninos sentados na terra, e Cafi fez a foto famosa ali mesmo, de dentro do carro. "Quando bati a foto, de cara eu pensei nela para a capa e me veio também a ideia de não ter nada escrito", conta Cafi. "Mesmo porque, para mim, esse disco tinha uma característica que fazia contraponto ao preciosismo plástico, uma coisa de morosidade, de encontro de mineiros com cariocas etc. Tinha uma relação de Milton com Lô na capa, mas nem era essa a intenção. Era mesmo uma coisa de arame farpado, de estrada, de mineiridade".

A ideia foi aprovada com louvores por Milton e Ronaldo Bastos, os únicos a verem a capa antes. Mas ao finalizar o processo, Cafi se deparou com dois problemas: o mosaico das fotos internas não tinha como ser feito em cores, como ele havia criado, e o pessoal da Odeon não entendeu muito bem o conceito da capa sem os nomes. Não era algo comum e muito menos mercadológico. "Daí eles me obrigaram a fazer um letreiro na contracapa para indicar que era o Milton, o Lô e o disco. Para isso, contei com a ajuda do Noguchi na criação das letras, principalmente. Quando distribuíam nas lojas, eles indicavam a contracapa, mas, com o tempo, os próprios lojistas foram mudando e colocando a capa propriamente dita nos displays das lojas". Cafi também recorda que, por algum motivo, o disco iria se chamar Clube da Esquina ― Documento Secreto nº 5 e que na hora de fazer a composição das letras na contracapa, ele achou o título grande e resolveu tirar por conta própria o tal Documento Secreto nº 5, deixando só Clube da Esquina. "Talvez o Ronaldo tenha falado com o Milton e o Marcinho para mudar o título. Eu não sei. Só sei que eu mudei por minha conta". Pela realização desse trabalho, Cafi ganhou respeito por parte dos membros do recém-criado Clube e foi responsável pela concepção visual não só do posterior, Clube da Esquina nº 2, em 1978, como de trabalhos solo de Milton, Beto e Lô.

Nos estúdios da Odeon, o trabalho estava sendo finalizado dentro do mesmo clima de amizade e liberdade reinantes durante todo o processo. Sempre coordenado por um Milton Nascimento coeso e certo de que o trabalho que estava fazendo ali era importante. A generosidade dele fazia com que os músicos tratassem o disco de uma maneira mais relaxada e, em função disso, não havia discórdias nem maiores problemas durante as sessões de gravação. Eles chegavam a hora em que quisessem, gravavam no turno em que quisessem e eram livres para experimentar outros instrumentos, relaxar da maneira que bem preferissem.

Clube da Esquina, o álbum, foi lançado em 1972 e, a princípio, a reação da crítica foi de espanto. A impressão dos músicos que participaram do disco, em relação ao trabalho da crítica na época, é a de que ele causou uma estranheza geral e não foi compreendido como deveria ter sido. Era um tipo de som que não se fazia no país e, por isso, o processo foi mais difícil. Pouco a pouco, as barreiras foram sendo quebradas e a aceitação foi acontecendo. "O mais engraçado era que a crítica falava mais das letras e não da música. Sinal de que não estavam entendendo muito. Mas aí veio a resposta do público e vimos que era um algo mais", relembra Fernando Brant. Ronaldo Bastos corrobora com essa visão e acrescenta: "Na época não houve esta percepção de que a crítica disse que era uma mudança. Pelo que eu me lembre, a crítica inicial foi totalmente desfavorável. Porque era um choque muito grande, aquilo rompia com tudo. Com o tempo e a aceitação por parte do público, a coisa foi mudando. Me lembro de andarmos pelo Rio de Janeiro e ouvirmos o disco sendo tocado dentro das casas, pelas janelas dos prédios".

"O mais engraçado era que a crítica falava mais das letras e não da música. Sinal de que não estavam entendendo muito. Mas aí veio a resposta do público e vimos que era um algo mais", relembra Fernando Brant. Ronaldo Bastos corrobora com essa visão e acrescenta: "Na época não houve esta percepção de que a crítica disse que era uma mudança. Pelo que eu me lembre, a crítica inicial foi totalmente desfavorável. Porque era um choque muito grande, aquilo rompia com tudo. Com o tempo e a aceitação por parte do público, a coisa foi mudando. Me lembro de andarmos pelo Rio de Janeiro e ouvirmos o disco sendo tocado dentro das casas, pelas janelas dos prédios". A primeira audição do disco pela turma aconteceu na casa dos Borges, em Belo Horizonte, e foi um momento de muita emoção. Quase todos os envolvidos reunidos, prestes a ver o filho recém-nascido. Além de Milton, Márcio, Fernando e Ronaldo estavam também alguns amigos da trupe incorporados ao Clube, como Tavinho Moura e Murilo Antunes, além de músicos consagrados, como Paulinho da Viola. A empolgação com o trabalho que haviam feito era enorme; o resultado final emocionou a todos e serviu para estreitar os laços de amizade criados durante o período de gestação do trabalho e prenunciar que um algo mais estava por vir. Todos estavam extremamente orgulhosos de pertencer àquele grupo, de terem realizado um trabalho que sabiam que seria importante e, sobretudo, de terem se tornado grandes amigos.

Toninho Horta lembra-se bem de uma audição que aconteceu no Rio de Janeiro. "Me lembro de uma audição na casa do Ronaldo Bastos. Acho que essa foi a primeira vez que eu ouvi o disco Clube da Esquina. Foi aquela choradeira, ouvir uma música atrás da outra, vendo o resultado final da coisa. Todo mundo era jovem, naquela empolgação para ouvir. O Clube da Esquina só poderia ter sido gravado por aquelas pessoas mesmo. Tudo aconteceu de forma muito verdadeira, estava todo mundo muito junto, muito amigo. Não tinha como dar errado.

Com o passar do tempo, Clube da Esquina foi conquistando músicos ao redor do mundo, como Edu Lobo, Tom Jobim e Caetano Veloso, que ficaram impressionados com o álbum e não se cansam de dizer que Clube da Esquina é um dos discos mais importantes da história da música popular brasileira. E a opinião dos outros músicos também é compartilhada pelos membros do Clube. "O Clube da Esquina é uma coisa avassaladoramente genial e se as pessoas não sabem disso é problema delas. A gente fez esse disco com uma precariedade de meios, uma falta total de organização e foi provavelmente um dos discos mais influentes, mais bem acabados, mais geniais da história da MPB, e pelas características dele, mais geniais e influentes da história da música no mundo", decreta Ronaldo Bastos, com um visível orgulho de ter participado do trabalho. Toninho Horta é igualmente orgulhoso: "Eu acho que o disco foi um divisor de águas. Um dos discos mais criativos que já foram feitos no planeta. Se tivesse sido feito nos Estados Unidos, seria mais conhecido do que discos de Emerson Lake & Palmer, Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd, James Taylor e tantos outros".

A impressão de Toninho Horta é compartilhada pelo escritor americano Robert Dimery, que em 2005 editou o livro 1001 discos para ouvir antes de morrer e incluiu o Clube da Esquina neste rol. No verbete dedicado a ele, assinado pelo também escritor Andrew Gilbert ― um especialista em música brasileira e colaborador jornais como o San Francisco Chronicle e Boston Globe ―, o disco é descrito como uma mistura de "sons de oníricos, letras surrealistas e uma ampla variedade de influências sul-americanas. É um marco da música popular, que abriu as portas da criação para outros artistas". Clube da Esquina figura no livro ao lado de poucos porém incontestáveis clássicos da música brasileira, como Construção, de Chico Buarque, África/Brasil, de Jorge Ben Jor e o primeiro dos Mutantes.

Para Lô Borges, o sucesso do disco transpira liberdade. "Ele é soltão, mistura as coisas do Milton Nascimento e do jazz com as coisas de um cara que trouxe influências diferentes. Costumo dizer que minha contribuição foi levar a palheta para os discos de Milton (risos). Eu acho que aquilo ali estava determinado pelas forças cósmicas, não tem muita explicação". A influência de Lô e Beto no disco também é lembrada por Wagner Tiso: "O Lô e o Beto trouxeram leveza para a música do Milton. Todos viram um Milton renovado e achavam um disco bem diferente de tudo que se fazia no Brasil". Já Fernando Brant destaca a universalidade do trabalho: "Acho que é um tipo de música que sempre vai ter gente interessada para ouvir. A influência do Clube está em tudo: música do interior, de igreja, Folia de Reis, jazz e Beatles, por causa do Lô e do Beto". A importância dos dois garotos que amavam os Beatles também é ressaltada por Tavito: "Esse disco foi idealizado para apresentar o Lô, e o Beto veio junto, dois roqueiros, eles são pessoas por quem o Bituca tem uma amizade enorme. O Bituca é tão generoso que dividiu esse disco com o Lô, na época um talento desconhecido. Foi esse encontro de brilhos que tornou possível a produção desse álbum eterno".

A universalidade e os laços de amizade criados entre os envolvidos também são ressaltados por Beto Guedes: "Eu acho que o primeiro Clube, como um todo, é mais bonito pra mim. As pessoas também vestiram muito a camisa. Parecia que o disco era meu, do Wagner, de nós todos. Não parecia que era um disco do Lô e do Milton. A gente tomava aquilo como nosso. Acho que isso fez a diferença".

A influência destacada por Fernando Brant foi tão grande que o disco deu origem a um movimento chamado Clube da Esquina, que gerou inúmeros frutos e virou uma espécie de rótulo para toda a música feita em Minas Gerais, por mineiros fora do Estado e que, para alguns, é exagerado. Sobre isso, Lô Borges decreta: "Clube da Esquina, para mim, é um disco que eu fiz com o Milton Nascimento. O que veio depois é rótulo". Rótulo ou não, o fato é que o disco se tornou referência para gerações futuras e até hoje é revisitado por músicos e público em geral interessados em desvendar os mistérios que estão por trás da música e da figura de um dos gênios da música brasileira chamado Milton Nascimento. Ou, como bem definiu Nivaldo Duarte, "Mito Nascimento".

Ninguém imaginava que o disco iria se transformar neste sucesso estrondoso, mas todos os envolvidos nele sabiam, na época, que o trabalho que estavam realizando seria, no mínimo, importante para suas vidas. Vidas que foram definidas a partir dele. Não seria exagero dizer que Clube da Esquina mudou os rumos da vida, da carreira de muita gente e que deu um outro colorido à música brasileira. Colorido que só foi possível graças a um sentimento presente em cada segundo musical e que, nos dias de hoje, se encontra cada vez mais esquecido: a amizade. A vontade de fazer um disco com pessoas amigas e de levar esse sentimento adiante regeu todos os músicos, letristas, técnicos agregados daquela trupe, gerando um filho genial, lindo e absolutamente atemporal.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no livro Coração Americano, organizado por Andréa Estanislau. Rodrigo James é publicitário e jornalista, graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Rodrigo James
Belo Horizonte, 4/5/2009
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