O jornalismo cultural vive um momento contraditório. Há vários aspectos da vida contemporânea que apontam para sua valorização, mas o que de fato se vê é a perda de seu tônus, de sua qualidade. O principal aspecto é a presença cada vez maior das atividades culturais no cotidiano das pessoas de diversas classes. Dos anos 90 para cá, com DVD, CD, MP3, internet e outras tecnologias, as artes como a música e o cinema fazem companhia a elas nas situações mais inusitadas do dia a dia. A quantidade de eventos em grandes cidades é tal que os leitores, ouvintes e espectadores querem do jornalismo que os oriente, que os ajude a filtrar o que ver ou não ver. Mas ele tem falhado. Está alinhado com a mentalidade publicitária, da "divulgação", e rebaixado à prestação de serviço, de escassa criatividade.
Lembro um tempo, nos anos 80, em que a TV dava as novelas e em seguida os enlatados americanos (Magnum, Casal 20 etc.). Hoje há vários programas brasileiros de boa qualidade, de A Grande Família até minisséries literárias, e a TV por assinatura oferece dezenas de canais com algumas séries americanas ou até europeias de muita qualidade, como Roma ou John Adams, da HBO. A TV melhorou muito. O número de salas de cinema, ao contrário dos prognósticos, voltou a crescer. Com os iPods da vida é possível baixar músicas de todos os gêneros para escutar no carro, na ginástica, no metrô. As grandes exposições são frequentes nas capitais do mundo todo, assim como os shows e concertos dos melhores intérpretes internacionais. E a internet permite acesso não apenas ao que é feito hoje, mas também a quase tudo que já se fez, com vídeos no YouTube, bibliotecas digitais etc. Ter acesso a ótimas publicações estrangeiras, como livros e revistas, também ficou ao alcance do mouse.
No entanto, o jornalismo cultural não consegue dar conta dessa oferta quantitativa e qualitativa de produtos e acontecimentos culturais. As resenhas se limitam a fazer resumos comentados por meio de alguns adjetivos. As colunas adotaram o tom da crônica, da conversa "engraçadinha", e são em geral escritas por personalidades, não por intelectuais ou jornalistas realmente cultos. A reportagem cultural praticamente saiu do mapa, exceto por um perfil aqui, outro ali. Mesmo revistas que se pretendem sofisticadas, no Brasil, demonizam o ato da opinião, a postura crítica; preferem contar histórias pitorescas. E a internet, que seria a libertação das pequenas e dissonantes vozes abafadas pela "mídia mainstream", não tem nada que se pareça com o jornalismo independente ou nanico dos anos 70; no fundo, parecem todos ressentidos pelo fato de não estar numa grande vitrine de papel.
Mas no cenário internacional há muitos exemplos de resistência, de um jornalismo cultural que não faz concessões ao tal "leitor médio", esse desconhecido. É um jornalismo que parte do princípio de que nomes como Shakespeare, Rembrandt ou Beethoven não são verbetes de enciclopédia, mas criadores vivos que muitas pessoas continuam a absorver e admirar com fervor ― porque sentem prazer diante da riqueza e vivacidade de suas obras, não porque é obrigatório ou chique. Antigos bastiões como New Yorker, Times Literary Supplement e New York Review of Books continuam mantendo seu alto padrão. Mesmo a internet tem sites como More Intelligent Life, Edge e Slate, além de blogs temáticos ou generalistas. No caso da New Yorker, revista que dá ênfase aos textos, isso tem significado um aumento de vendas: são mais de 1 milhão de exemplares por semana. E por quê? Entre outros motivos, porque tem poucos concorrentes. E porque seleciona seus assuntos, de modo cético e charmoso. O nome disso costumava ser jornalismo cultural.
Você pode alegar que, apesar da explosão de mídias e acervos, as pessoas continuam ou estão cada vez mais preguiçosas intelectualmente, apressadas demais para ler algo que tenha mais que quatro parágrafos ou trate de assuntos que exigem dos miolos. Mas sempre foi assim e a tarefa do grande jornalismo cultural é exatamente contrapor esse conformismo, seduzir o leitor e fazê-lo pensar sob diferentes ângulos. Os exemplos estão aí para mostrar que isso é possível. Um crítico como James Wood, agora atuando na New Yorker, é um antídoto contra aquele tipo de frase que diz "Não existem mais Edmunds Wilsons" ou, na versão brasileira, "Ottos Marias Carpeaux"... Existem, sim, com as diferenças de tom e abordagem que a mudança dos tempos exige.
Mais importante ainda é que o jornalismo cultural perceba que não está à altura nem mesmo da produção cultural de sua época. Em todos os momentos fundamentais da cultura, o debate em revistas e suplementos foi causa e efeito desses momentos. Desde a Inglaterra do início do século XVIII, quando a Spectator era lida por todos os homens e mulheres civilizados de Londres, até o movimento modernista de 1922, que se espelhava na Klaxon, o jornalismo refletia o vigor das artes e ideias. Hoje existe, sim, um público bem-informado e requintado que leva uma vida cultural ativa ― ouve jazz no iPod, vai a exposições em outros países, frequenta as grandes livrarias, assiste a documentários no cinema ― e que pode, portanto, ser capturado pela crítica bem elaborada, pela entrevista bem pensada. Desde, naturalmente, que elas sejam feitas.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Continente Multicultural, em abril de 2009.
Daniel: Esse título já diz tudo. Faz tempo que é usado pelos jornalistas que substituiram os Críticos Literários, ainda nos anos 60, e ganharam o rótulo de Articulistas. Na Folha sumiu o Antônio Cândido e entrou um povo concretista bradando Vanguarda. Pouco importava se havia ou não uma Retaguarda que a justificasse. A partir de então vieram os articulistas portando novos termos como Metalinguagem etc. Estava nascendo o atual e consagrado Veja Bem. A partir de então a qualidade dos profissionais foi baixando até o registro do evento cultural virar esse papo de Salão de Beleza hoje visto. O que mais anima nessa história é a busca do mais jovens pela informação cultural perdida pela crítica ao longo dos anos. No meu Sapiens os leitores buscam mais as análises de construção poética do que de texto. Buscam a história da composição, não a informação sobre a cor dos olhos do compositor. A Cultura ainda interessa sim, e muito, só não tem mais gente capacitada para transmití-la, infelizmente.
Penso que a cultura está muito viva e presente na criatividade de todos os seres de nosso tempo, apenas temos um sucateamento empresarial na área da comunicação, e os nossos críticos estão sendo enterrados pelo mercado...
"(...) e são em geral escritas por personalidades, não por intelectuais ou jornalistas realmente cultos." Cadê os intelectuais e os jornalistas realmente cultos? E qual é o público que terá conteúdo e sensibilidade para absorvê-los? Devem estar todos em Nova York, agora mesmo, e a gente que leia em inglês...
Acho que há problemas dos dois lados. Tanto de quem produz quanto de quem lê. Edito um caderno de cultura no jornal mais velho aqui de Foz, e olha... é complicado. Já cheguei a contabilizar o número de leitores!
Odeio crônicas engraçadinhas. O neoliberalismo acabou com a profundidade e a incisiva análise do ser humano e da sociedade em que vive. As coisas ficaram tão "fáceis" que ninguém mais quer saber de ter a corrosiva e sofrida filosofia reflexiva de uma Clarice Lispector, de um Carlos Drummond de Andrade ou de um Guimarães Rosa. Todo mundo só quer saber de ser engraçadinho, pra daqui a alguns anos estar roteirizando algum programinha de uma emissora famosa de televisão ou a coluna, por mais pequena ou medíocre que seja, de uma revista de celebridade. Abaixo a mediocridade. Façamos ressuscitar do chão a boa e velha crônica cultural!!!
É claro que existe público! Talvez não por muito tempo (tudo depende da visão pessimista ou otimista em relação ao futuro), mas ainda existe. Basta que se procurem aqueles que fogem do estigma do homem-massa de Ortega y Gasset, autor tão controverso quanto incompreendido. Procurem estes seres pensantes principalmente naqueles que não culpam o que está fora, mas o que está dentro, ou seja, não é o "sistema" ou o "neoliberalismo" ou o que quer que seja, mas o próprio homem que fabrica seus próprios detratores. Não se põe a vender nada que não haja quem compre. Então, a culpa é de quem vende ou de quem compra?... É só colocar a mão na consciência.
Essa coisa da plateia vai ter que se dissolver um dia. Estas outras coisas chamadas críticos culturais não fazem mais o menor sentido. Todas as obras, culturais que sejam, persistem em alguma teimosia semântica (in)contemporânea. Sobre a beleza doutras épocas, nesse uníssono de referência não há consenso estético. Dentre manifestações típicas ao 6º sentido, terceiro olho, telepatia, clarividência, telecinese e tantos outros, estaria a internet como mais um elemento extrassensorial?